Crítica publicada na Folha da Tarde
Por Ricardo Voltoline – São Paulo – 17.10.1987
A poesia moleca de um gato pardo vai à cena
Expressões como “Que desenho, que delícia: desenhar uma carícia” e “Toda cabeça é um ovo, sempre sai um pinto novo” parecem, à primeira vista, pinçadas de um poema infantil de Cecília Meireles. Ou dos cadernos de rascunho do anjo torto Mário Quintana. Estranha e deliciosa arte está de cunhar frases cheias de ritmo e verdade, soltas, redondas e vivas, apenas pelo prazer de provocar o espírito curioso da criança com imagens, as mais divertidas.
Nem tanto à Cecília, nem tanto à Quintana. Desde a semana passada, a poesia moleca dos livretos infantis botou máscara, subiu ao palco e batizou-se com o nome de O Gato Pardo de Patrícia e Leonardo. O autor, João das Neves, é figura tradicional da dramaturgia para os pequenos e, certamente, muita gente o conhece de O Leiteiro e a Menina Noite, de 1985. Este novo espetáculo, promovido por Expressão e Bottega Dell’Arte, com direção de Vilma Desouza e trilha sonora de Gilda Vandembrande, promete agradar principalmente as crianças menores, em fase de exercício pleno do ato lúdico.
Quase tão mais gostoso que pronunciar o título da peça – experimente o leitor – é entregar-se ao enredo como quem aceita o convite para uma brincadeira de representar por representar. Tarefa fácil para espectadores não maiores de 10 anos, repletos de energia e sem os preconceitos comuns a quem desaprendeu os segredos de tomar a tampa da panela e o cabo de vassoura por escudo e espada.
A eles, frágeis e desinteressados, será mais fácil partilhar da graça embutida no cotidiano desta família classe média concebida por Das Neves com intenção de espelhar um padrão de comportamento. Leonardo é o dono do gato que some na chuva, Patrícia a irmã desenhista. Martim e a Dona Sofia, os pais, ora rigorosos e castradores, ora trapalhões. A história se conta por intermédio de situações fortuitas. De tal forma que o texto vira pretexto para empurrar um “nonsense” em que se alinham cenas como a da troca de papel entre mãe e filha ou a da literal perda de cabeça do pai.
Os ritmos são os da poesia, da música e da dança, além da leve versificação presente nos diálogos e canções, algumas modalidades de expressão corporal. É neste particular que o cartaz vespertino do teatro Sérgio Cardoso desaba em obviedades. Ao optar por musical-dançado – a linha que amarra frouxamente as passagens -, a direção deveria dimensionar o poder de alcance de seu grupo de atores-cantores-bailarinos. Para sorte do espetáculo, eles suprem as constantes desafinações e também a sofrível coreografia com muita vibração no palco. E divertem – a julgar pela avalanche de gargalhadas fáceis. Menos pelo primor da interpretação, que por uma misteriosa relação de cumplicidade lúdica com a plateia. Feliz João das Neves que conseguiu acertar o alvo mais uma vez. Nem tanto à poesia, nem tanto ao poeta.
Serviço:
O Gato Pardo de Patrícia e Leonardo, de João das Neves. Direção de Vilma Desouza. Músicas e Direção Musical de Gilda Vandembrande. Teatro Sérgio Cardoso, Rua Rui Barbosa, 153, bela Vista. Aos sábados, 16 horas. Domingos e feriados às 10:30 horas e 15:30 horas. Preço único: Cz$ 120,00.