Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 23.07.1977
Os paulistas e os mineiros: espantalhos e retalhos.
Curitiba – Procurando dar ao leitor carioca uma visão do que esta acontecendo com o teatro infantil nos demais estados esta coluna analisou sábado passado, dois espetáculos paranaenses presentes ao terceiro Encontro Nacional de Teatro Infantil, encerrando domingo, em Curitiba. Hoje vamos procurar dar novas informações a partir de mais duas montagens, sendo uma mineira (Os Espantalhos Querem Andar) e uma paulista (Praça de Retalhos). Como não pude ficar em Curitiba todos os dias, não assisti a A Máquina da Felicidade (Paraná), O Rapto das Cebolinhas (Rio Grande do Sul), No Mundo Encantado da Música, O Palhaço do Planeta Verde e Torre de Papel – essas últimas paulistas. Os demais espetáculos apresentados já foram analisados por esta coluna: Piuim, a História de um Indiozinho (Paraná), quando da realização do festival de Teatro de Bonecos de Brasília; e os cariocas A Princesa do Mar-Sem-Fim, Cantarim de Cantará, A Fantástica Estória de Melão City e Pluft, o Fantasminha.
Os Espantalhos Querem Andar, de Rodrigo Leste e Nely Rosa, é uma peça que busca estabelecer uma discussão sobre a liberdade. Os dois autores procuram partir de uma relação explorador-explorado para o desenvolvimento de sua tese de que o ser humano tem inalienável, o direito de ir e vir, de parar, de se movimentar, de pensar, de fazer, de se transformar, de voltar atrás, de refazer. Tudo isso, entretanto, é defendido por um texto e uma montagem tão equivocados que a respeitável e sempre defensável ideia central acaba definitivamente comprometida. O texto parte de um esquema bem pobre: dois atores fazem vários personagens, o que determina que grande parte do tempo da encenação seja perdido em embromar o público a fim de dar tempo aos atores para a troca de roupa. Essa embromação era visível tanto nas cenas das botas que às vezes comentavam ação (filhas longínquas e bastardas do coro grego), como quando um dos atores ficava em cena (enquanto o outro trocava de roupa) e perguntava muito sintomaticamente à plateias: “E Agora? Quem me Ajuda? Como é Que Vamos Fazer?” Só que essas perguntas eram referentes à trama e não a real dificuldade do ator em prosseguir o espetáculo…
O texto mostra-se altamente apelativo, procurando uma participação da plateias na base dos massificantes programas de auditório. A direção de Bernardo Machado se caracteriza pela ausência de qualquer noção de unidade. Não existe relação entre as imagens criadas, o trabalho dos atores, o cenário, o filme, os figurinos e o texto. E tudo desconexo e descosido. O próprio cenário de Liliane Dardot e Roberto Leste e composto de elementos que não se harmonizam – se contradizem, até.
Os autores-atores Rodrigo Leste e Nely Rosa se apresentam como dois artistas que trabalham basicamente a partir do intuitivo. Parece claro ter chegado a hora de colocar, no trabalho, um pouco de raciocínio lógico.
A Praça de Retalhos, de Carlos Meceni, e um texto que, visto isoladamente, pouco tem a acrescentar. Lído, não tem muita significação. Mas, sendo uma proposta de espetáculo, A Praça de Retalhos é um texto essencialmente teatral, na medida em que vale ao ser encenado. A peça não traz uma trama, não traz um conflito. Ela existe a partir das brincadeiras infantis, do estímulo à tão famosa imaginação criadora da plateia. Incentiva a ação transformadora, ao motivar as brincadeiras com o material considerado lixo e deixando clara a desnecessidade para a fantasia, dos brinquedos fabricados e, principalmente mecanizados. O jornal é à base de tudo. O espetáculo de Roberto Lage se caracteriza pelo tom descontraído, nesse sentido e importante a participação do elenco formado pelo autor, Arlete Ziol, Raul Santos, Eleonor de Brito e Wagner Cavalcanti. Os atores, muito a vontade, estabelecem e mantém um clima alegre de brinquedo e só deixam a desejar nas partes cantadas – quando se nota, mais uma vez, uma das sérias deficiências de nosso material humano. Nestes momentos, a montagem murcha e a plateia volta a ver atores “fazendo teatro” (leia-se fingindo) ao invés de estarem vivendo uma situação – como, aliás, acontece nas demais cenas.
Um dos fatores de destaque deste bom espetáculo é a preocupação de estabelecer quebras na ligação entre realidade e fantasia, deixando sempre claro que isso é uma brincadeira que qualquer um tem condições de fazer; e que se pode, inclusive, parar quando não se tiver mais vontade. É muito envolvente o início, com o crescendo do som; a montagem carrega uma boa dose poética, mais visível no momento em que a praça se forma com o homem da sorte, fonte, o pássaro, a arvore que vira carrossel.
Misto de poesia, brinquedo, descompromisso com a lógica (enquanto brincadeira livre), harmonia e liberdade, A Praça de Retalhos, por caminhos totalmente inversos, consegue atingir o que não foi alcançado por Os Espantalhos Querem Andar: uma mais ampla noção de liberdade (aquilo que nos leva a produzir criativamente para nós e para nossa coletividade), uma carga maior de poesia, uma relação mais verdadeira com a plateia.