Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 23.04.1977
Os Cigarras e os Formigas
Uma obra de arte significa sempre uma tomada de posição do artista perante a vida. Isso fica muito fácil de ser detectado nas peças escritas para crianças. Hoje em dia verifica-se a existência de dois pensamentos muito nítidos norteadores do teatro infantil. Inicialmente há os autores que procuram influenciar as crianças no sentido de que existe algo melhor, maior e mais importante do que liberdade, autenticidade e criação: a segurança. Esta visão fica muito clara em repetidas frases do tipo “A floresta (o desconhecido) é perigosa. É melhor ficar brincando na casa da vovó”. A este tipo de teatro chamei de formiga.
A outra tendência mostra uma visão de mundo mais aberta, mais dinâmica e que estimula a criança a crescer através da experiência, a conhecer o mundo com os próprios pés e não pela mão (cabeça) dos pais. Correndo junto com os mais evoluídos conceitos de educação, esses autores sabem que é mais importante motivar a criança para a explosão de suas potencialidades do que ensiná-las a se comportar bem, principalmente se este bom comportamento significar apatia, submissão ou total ausência de consciência crítica. Hoje, no Rio de Janeiro, os mais talentosos autores, diretores e atores fazem apenas este segundo tipo de teatro. Esse seria o teatro cigarra.
Os Cigarras e os Formigas, de Maria Clara Machado, é a demonstração prática (e artística) desta divisão. É evidente, ao contato com o texto, que as coisas são extrapoláveis: do autor ao teatro, do teatro para a expressão artística em geral, da expressão artística para a educação, da educação para a política, da política para ávida estamos rodeados de posições cigarras e de posições formigas.
Este texto mostra uma clara evolução da dramaturgia de Maria Clara Machado: mostra que a autora procura ir atualizando sua vida (leia-se obra) com sua época, absorvendo conclusões da Psicanálise e da Antropologia. Esta nova linha de Maria Clara foi iniciada com A Verdadeira História da Gata Borralheira e prossegue agora com Os Cigarras e os Formigas: uma análise crítica e bem – humorada da sociedade em que vivemos e das relações que se processam entre os seres humanos; e entre os seres humanos e as instituições. A autora ainda permanece muito firme na sua visão maniqueísta, mas é visível que os elementos já começam a se misturar. Não há só preto e branco. Há cinza também: e em diversas tonalidades. Mesmo assim os personagens de Maria Clara ainda passam esquemas de vida, aos invés de seres humanos complexos e contraditórios. De qualquer forma são perceptíveis os desejos da autora de não permanecer nas alternativas ortodoxas de mau e bom.
Os Cigarras e os Formigas, de qualquer forma, é um texto inteligente, extremamente atual e que consegue estimular a consciência crítica das crianças (principalmente das maiores) sobre falsos conceitos de vida e de felicidade.
A direção de Wolf Maya elabora uma linguagem cênica correspondente à essência do texto. Com uma boa utilização do elemento musical o espetáculo tem um tom alegre, colorido, movimentado e procura estabelecer vários níveis de leitura para que possa ser assimilado tanto pelos menores, como pelos adolescentes e adultos. Nesse sentido, os adolescentes são os mais beneficiados, tanto pela proposta musical como pela trama que lhes diz muito respeito. Bastante criativa, a direção de Wolf Maya tem seu ponto alto no rendimento homogêneo e firme do elenco, sem atuações destoantes. A falha que se observa de modo mais forte é a utilização do playback, que faz acena cair e içar sem verdade. Repito que é melhor errar na dublagem, mas ter uma interpretação cheia de vida do que dublar, direitinho e parecer um autômato em cena.
Os Cigarras e os Formigas é um dos melhores momentos do atual panorama do teatro infantil carioca. Deve ser visto.