Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 15.10.1977

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O Rato Saltador

Os Contadores de Estórias é um grupo que a cada nova peça vem comprovando a alta qualidade de seus trabalhos. Agora, com O Rato Saltador, em cartaz no Cacilda Becker, depois de uma temporada no Planetário, isso se confirma. Se não há a exuberância dos enormes bonecos de Raquel Ribas encontrados em montagens anteriores (Melão City Estória das Cebolas) ainda assim o espetáculo é de muita beleza, envolvendo o público com estímulos visuais e sonoros.

Entretanto, essa montagem representa um grande equívoco. Esta coluna sempre se manifestou contrária aos textos que procuram mobilizar, na criança, um embrutecimento da personalidade; sempre se manifestou contrária aos textos que pregam uma filosofia de vida que esteja em conflito com os lúcidos conceitos trazidos à luz pelo desenvolvimento da psicologia. Os Contadores de Estórias caíram na armadilha. Estimulados pela beleza de uma lenda de índios norte-americanos, eles fizeram uma adaptação teatral e criaram um espetáculo para a criança brasileira. Não levaram em consideração, entretanto, que a lenda norte-americana é fruto de um contexto específico. Ela tem uma força poética e conceitual para uma determinada realidade. Para a criança brasileira a história contada acaba se reduzindo a trama. E o público (infantil ou adulto) é levado pelo espetáculo a concluir; 1) bom é aquele que se sacrifica pelos outros; e 2) Todo sacrifício acaba trazendo uma magnífica recompensa.

Como se vê, o recado não é nada recomendável. Abrindo um parêntese, quero mostrar ao leitor como grassam por aí recados nada recomendáveis, apesar de repletos de boas intenções. Acabo de receber o disco Os 13 Mandamentos da Criança Bacana com o Quarteto Peralta. Repare leitor tanto nas verdades deformadoras como nas mentiras que são utilizadas na tentativa de levar a criança a uma boa adaptação social: “Quem fala a verdade, merece perdão / Pra quem mente a sina é ficar de boca torta”; “Criança obediente sempre tem mais saúde”; “Quem não cuida dos dentes não é boa criatura”; “Não falemos nome feio / Imitemos a Coruja / Que nunca fala nada / Mas não tem boca suja”; “A gula é um pecado que não se perdoa jamais”. Como se pode notar facilmente a criança recebe um verdadeiro bombardeio de como deve viver. E, às vezes, a proposta de vida é absolutamente fora das reais necessidades de um ser humano que, mesmo bem adaptado socialmente, pretenda exercer a sua autenticidade. Nesse sentido, O Rato Saltador, apesar de toda a beleza visual, apesar da envolvente música de Ronaldo Tapajós, apesar do firme trabalho dos atores, apesar da criativa direção, apesar de tudo isso, O Rato Saltador traz uma forte carga negativa. Levar a criança a pensar que dar um olho e depois o outro significa uma conduta que pode ser vista como o positivo “desprendimento” vem de encontro a uma das bases do desenvolvimento psicológico do ser humano: é impossível amar autenticamente ao próximo se você, antes de tudo, não amar a você mesmo. E o amor que temos por nós mesmos pode ser detectado, entre outras coisas, pelo respeito que temos pela nossa individualidade e pela exigência interna de autopreservação.

E dizer que só se alcança o êxtase depois do sofrimento e, além do mais, uma argumentação utilizada pelos governos totalitários ao longo de toda a História do Mundo.