Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 1985

Barra

Psicologização da cor

A própria coleção a que pertence o livro 7 Cartas e 2 Sonhos, de Lygia Bojunga Nunes, que serviu de ponto partida para o Ensaio nº 2; O Pintor (SESC da Tijuca), de Bia Lessa, ronda uma falácia. A de que é preciso criar um enredo extrapictórico para dar “sentido” ao abstracionismo. A de que é preciso psicologizar a cor e arranjar correlatos emocionais ou analogias com objetos ou sensações conhecidos, para facilitar a recepção dos volumes, formas e cores que compõem uma tela abstrata. No livro em questão, telas de Tomie Ohtake. E explicações do tipo: azul é “o meu pedaço de céu, o meu pedaço satisfeito, vermelho é cor da coisa que eu queria entender, como o amor e a morte, amarelo ora é  cor de batida de relógio, ora cor de síndico. Há, ainda, cor de saudade, cor de morte, ”um pingo de coisa que também doeu em você”.Todas as variações cromáticas explicada em função da expressão de estados de alma ou de quem pinta ou de quem olha para o quadro.

“Em vez de dizer feito todo mundo, eu estou triste, eu estou contente, ele falava: hoje eu estou roxo! / hoje eu fiquei tão amarelo! / hoje eu acordei meio roxo, mas fiquei amarelado lá pro fim da tarde”, diz a certa altura o menino Cláudio sobre o seu amigo morto, o pintor. Como se as cores e suas gradações obedecem, sobretudo a um jogo psicológico. Como se para entender ou explicar um trabalho pictórico fosse necessário criar todo um enredo para ele e todo um conjunto de regras de tradução cujo resultado fosse aproximar de imediato cada movimento cromático de um tipo específico de sensação (saudade, dor, alegria, amor) ou “cada figura complexa de figuras conhecidas da natureza”, como costumava criticar Paul Klee.

É bem verdade que as analogias de Lygia Bojunga Nunes procuram fugir aos referentes demasiado simplificadores. Como, por exemplo, associar formas arredondadas a bolas, vermelho apenas sangue, ou coisas do gênero. Mas terminam funcionando de modo simplificador, sim. Como se o livro colasse as telas um outro colorido (de tons predominantemente psicológicos) e um outro desenho: o de uma personalidade romantizada de artista, aquele que, dentre outros conflitos, sucumbe à percepção de que seu próprio “talento” pode ser apenas mediano e suas telas uma simples sucessão de “formas mortas”.

Nunca um azul é apenas um azul, um vermelho um vermelho, um amarelo apenas um amarelo e assim por diante. Nunca os volumes das telas abstratas deixam de ser associados a fantasmas, a unhas, a um “coração chateado”. É como se a abstração fosse tematizada apenas para deixar de ser abstração. Para que se lhe empreste “sentido” via realismo psicológico. Para que um desenho altere o jogo propositadamente resistente a “interpretação” das cores e formas que se mesclam num quadro. E, como responsável pela versão teatral de 7 cartas e 2 sonhos, que se torna mais próxima do ensaio do que da narrativa epistolar original, Lygia Bojunga transporta para as telas de seus personagens teatrais psicologização idêntica a que domina o seu livro.

E, no caso de atores ainda iniciantes como os de Ensaio nº 2, este convite ao psicológico é um verdadeiro abismo. O menino Léo Tomassinio, por exemplo, que interpreta Cláudio e a quem cabe o maior número de falas, mal consegue dividir corretamente suas falas. Aliás, não é o que diz a sua maior preocupação, mas sim a exibição, de angustia. Todas as suas falas rigorosamente lembram “soluços”. O mesmo se pode dizer de Magda Moura (que faz Clarisse), Wagner Coelho (o pai do menino) ou Suzana Castro (a irmã). A vontade de “passar emoção”, de revelar o “drama íntimo” de cada um acaba levando a um tom próximo do melodrama. O que poderia ser até curioso se fosse levado às últimas conseqüências. Mas não é o que acontece. Por outro lado, os interpretes parecem completamente incapazes de se observar em cena, de emitir suas falas deixando que elas tenham “emoção” por si, ou não, sem sobrecarregá-las, e muito menos de usar mais humor, mais ironia. Seja com a própria interpretação, seja com o texto, seja com o próprio assunto tematizado na peça: a morte. E, ao invés de uma reflexão afiada sobre a arte, o espetáculo embarca, assim, muitas vezes na pura e simples pieguice. O que é pouco, sobretudo quando se pensa na qualidade do trabalho de Bia Lessa.

O que é preciso aprimorar, além do ritmo, é fundamentalmente a direção de ator. Porque, de um ponto estritamente plástico-teatral, Bia Lessa, obtém resultados muito bons mesmo. Desenha muito bem os atores pelo palco. E encontrou soluções extremamente inteligentes para tematizar a cor e as formas pictóricas teatralmente. As aparições do vermelho, por exemplo, são ótimas. Tanto num dos corredores do prédio com Janaína (Fernanda Tomassini) vestida com capa vermelha, molhada por chuva artificial e ao som de When I wish upon a star, entrando pela casa de Cláudio adentro, quanto, numa cena posterior, escondida, ainda de capa, na geladeira. Verdadeiras irrupções de vermelho no palco. Num palco dominado pelo bege e marrom quando é a família de Cláudio que está em cena. Quanto às transformações por que vão passando as três formas com que sonha o menino também receberam boa solução cênica. Passam de três encapuzadas de negro a três nadadoras, que citam de longe as nadadoras de Olhos Ardentes. Como o violinista que percorre a cena lembra menos de longe Antunes Filho.

Aliás, músico (Joaquim de Paula) e direção musical de Caíque Botkay se mostram de extrema eficácia. Caíque citando de Satie a Terezinha de Jesus, deu um queda…, de hinos patrióticos a Edith Piaf e à trilha de Branca de Neve, de Walt Disney, imprime ao espetáculo um humor que Bia Lessa hesita em soltar. E quando solta é ótimo, como na cena da geladeira ou na ironia da repetição pelo pintor de sua fala talvez mais desesperada, mais mitificadora do perfil do artista: a da própria irrealização. Crítica que apenas Paulo Miranda (o pintor) e Fernanda Tomassini conseguem emprestar em parte a sua interpretação. E com a qual se poderia ter trabalhando um pouco mais nesse Ensaio nº 2 que, podemos a parte, mostra uma vez mais, nesta época em que tão pouca gente experimenta alguma coisa fora do comercial e do óbvio, o fôlego e a dignidade de Bia Lessa e do grupo de atores e profissionais que a acompanham.