Crítica publicada em O Globo
Por Mànya Millen – Rio de Janeiro – 15.06.2002
Cosquinha: Heloísa Perissé e Ingrid Guimarães reafirmam talento em espetáculo para toda a família
Deliciosa visão do mundo dos adultos
Versão para crianças de Cócegas, megasucesso de público que confirma, em muitos esquetes, o talento de duas excelentes atrizes,Heloisa Perissé e Ingrid Guimarães, Cosquinha poderia ser encarado apenas como um típico espetáculo nascido com a única (e louvável) intenção de fazer rir. Mas não é bem assim. Ou melhor, faz rir muito, mas felizmente vai além.
Cosquinha, em cartaz no Teatro das Artes, conta uma história linear que deixa o público vislumbrar, entre as muitas gargalhadas, e com surpreendente delicadeza, as dores e dificuldades presentes no cotidiano da cada vez mais numerosa “nova família”, formada por homens e mulheres que já levam para o segundo casamento os filhos do primeiro.
Infantil, sim, mas não infantilóide
Contada de um jeito ao mesmo tempo hilariante e comovente, sob a batuta experiente de Sura Berditchevsky, Cosquinha é um pequeno retrato desse dia-a-dia algo turbulento visto pela ótica de duas meninas, a insegura Amanda (Ingrid) e a espevitada Luísa (Heloísa). Unidas pelo casamento de seus respectivos pai e mãe, elas vão descobrir, entre brigas e brincadeiras, que ser “irmigas” (mistura de irmã com amiga) pode ser muito mas legal do que estarem unidas apenas por laços biológicos. E durante o breve tempo em que se vêem sozinhas em casa, reconhecem de forma prazerosa uma nova e bonita amizade.
Um dos principais trunfos da peça é seu texto saboroso, amoroso, debochado, inteligente, “irado”, perfeitamente sintonizado no dial infantil. Quicando pelo palco em brincadeiras diversas e entabulando de maneira angelical conversas que acontecem quando não há adultos por perto (como nomear as partes genitais femininas e masculinas), Heloísa e Ingrid esbanjam fôlego e graça em cenas bem marcadas pela diretora. O resultado é óbvio: ambas conquistam as crianças sem dificuldade, pois se transformam em duas delas e falam a língua delas.
Para valorizar este ponto-de-vista infantil, nada melhor do que concretizá-lo no ótimo cenário (de Clívia Cohen), que assina também figurinos me adereços. Os móveis construídos em escala maior do que o normal ajudam a reduzir a figura de Heloísa e Ingrid no palco, reforçando naturalmente a idéia de que são crianças. Funcionais, eles são essenciais em cenas como a da cozinha (na qual as duas meninas se aventuram com um certo medo) e do quarto, em que o guarda-roupa dos pais vira um glorioso e pródigo camarim.
Neste, por exemplo, acontece aquele mágico faz-de-conta de mudar de figurino e ”interpretar” a mãe, o pai ou a chata da professora de balé. Multiplicando-se em diversos personagens presentes nesse cotidiano (como a empregada metida a boazuda e o porteiro com quem ela namora), elas vão expondo não só seus medos e carências (Amanda só vê o pai nos fins de semana e quer mais atenção), como também montando o retrato fiel e deliciosamente exagerado dos adultos e suas cobranças.
A química entre Heloísa e Ingrid é tão forte, assim como a presença de ambas no palco, que alguns recursos parecem sobrar em alguns momentos, como as músicas e os móveis falantes. Mas é evidente que eles são um grande atrativo para a garotada, assim como o gigantesco cão cenográfico Rex.
Cosquinha é, por todo o seu conjunto, um daqueles espetáculos que conseguem mostrar, com raro equilíbrio, que teatro para crianças também pode ser a maior diversão para toda a família. Infantil sim, mas não infantilóide.