Matéria Publicada no Jornal Rio Artes
Por Eliana Yunes – Rio de Janeiro – Nov 1994
Ponte para chegar à Cidadania
A leitura não deve apenas se restringir ao campo da alfabetização. Deve ir mais longe ao privilegiar a consciência crítica e comprometer o indivíduo no seu percurso em direção aos direitos da cidadania.
A questão da leitura, conquanto pareça simples – um problema de ineficiência do sistema escolar – tem, no entanto, implicações de maior complexidade. Do contrário, uma Itália, com uma tiragem anual de 250 mil títulos, não estaria às voltas com o baixíssimo número de leitores.
Mesmo nos chamados países desenvolvidos, um modelo hegemônico de base político-econômica, apressou-se em refutar a cultura para a esfera do lazer ou da erudição – assimilando-a ao aspecto diletante do desfrute ou ao caráter
olímpico do conhecimento, com acentos personalistas. A cultura, por isso mesmo, deixou de ser percebida como o fermento da educação e das práticas sociais para se constituir no coroamento intelectual de acadêmicos e bem econômico da indústria cultural. O saber ficou confinado ao campo científico-tecnológico para onde convergem as atenções e as verbas públicas. No entanto, a história de um povo, desde o berço da civilização ocidental, está inscrita em sua arte, em sua literatura, e mesmo conquistas tecnológicas beberam nas fontes de seu imaginário e mobilizaram-se a partir dos impasses e limites evidenciados nas práticas socioculturais.
Esta clivagem acentuou o fosso entre a educação e a cultura. Uma série de conhecimentos desarticulados e distanciados da vivência cotidiana dos homens se impôs como currículo obrigatório nas redes escolares, e a reflexão interativa
cedeu lugar à repetição passiva e monótona de informações úteis.
No entanto, é o próprio avanço tecnológico que está a clamar por uma universalização da educação que qualifique a população para garantir a soberania das nações. Com a emergência dos conglomerados internacionais, deixa de ser
menos importante quem primeiro produziu e patenteou o quê, para ser indispensável franquear a todos o know-how de apropriação e uso dos inventos.
Foi-se o tempo em que poderia ser politicamente interessante manter-se, extensos segmentos da população, alienados, analfabetos e ignorantes. Um país precisa hoje de toda a força de sua inteligência potencial, e não apenas a das
elites. Aliás, o que chamamos “elites” merece um parágrafo de reflexão à parte.
Se tomamos sob este conceito as camadas da população que, podendo desfrutar das benesses de primeiro mundo, ignoram o descalabro do mundo ao redor, e sentem-se inteiramente desobrigadas com relação aos problemas que se avolumam no país, estamos lidando, antes, com individualistas, para quem a vida social é um campo exclusivo de exploração e expropriação. E isto, é evidente, tem a ver com o sistema educacional em que esta mentalidade foi gerada. Nele, não tem havido espaço para a cultura, que, longe de ser o apanágio de poucos, poderia ser a linfa de todo o sistema: é justamente a ignorância crassa das “elites” que tem empobrecido o país, aumentado a marginalidade, que (clamam!) lhes pesa aos ombros.
Como inverter a situação senão revendo a educação, já que estes são os quadros que passam pelos bancos escolares? Rever a situação significa mais do que construir prédios e dotá-los de tecnologia de ponta: isto é importante, mas não
o fundamental – no âmago está o homem, o aluno, o professor -, para quem o investimento deve convergir em termos de condições de trabalhos adequadas, salário digno, capacitação permanente, desempenho acompanhado e a avaliação se
evidenciará no cotidiano da sociedade brasileira. A história nacional bem demonstra que nossos políticos nunca estiveram verdadeiramente interessados na educação efetiva da população, abrindo-lhe o domínio da competência, favorecendo condições para conquistas pessoais comprometidas com a responsabilidade social.
A falta de exercício do pensamento crítico tem, certamente, origem nas salas de aula, e recrudesce frente o monologismo dos meios de comunicação de massas. E é aí o espaço onde a leitura, especificamente a da arte e a da cultura, entre outras, poderia se constituir em um recurso revolucionário a serviço da cidadania. Concebida sob a perspectiva da interação texto-leitor, autor-leitor, texto-contexto, a leitura revela os compromissos da produção da obra e induz à interpretação, no mínimo, arguta, senão crítica. A leitura, pelo distanciamento que permite, evidencia as dobras dos discursos e da linguagem, desnudando alusões, pressupostos, subentendidos. O nível de consciência no uso da linguagem evidencia o plano das responsabilidades e competências sociais, embora não garanta, é verdade, seu exercício. Estaríamos, contudo, melhor servidos, se os governos tivessem descortínio para entender esta dimensão
econômico-política da leitura, ao invés de mantê-la (mal) atrelada aos limites da alfabetização.
A leitura concebida neste marco – da palavra escrita às artes e destas aos sistemas sociais – disseminada a partir das bibliotecas públicas como prática cotidiana, no espaço da vida pública, em praças, parques, sindicatos, empresas,
hospitais, estações de transporte, museus, onde quer que o homem esteja; no espaço da família, com condições de acesso ao livro, ao conhecimento; no espaço dos meios de comunicação, etc. A leitura, longe de se confundir como mera
reprodução do sistema induz à consciência crítica e compromete o indivíduo com o percurso em direção à cidadania.
Se tivéssemos líderes visível e consensualmente reconhecíveis, não nos bastariam: o país é seus cidadãos, os que reconhecem seu lugar e função no conjunto, na perspectiva do bem público. Pois o papel da leitura, às portas do
século XXI, é mobilizador para a identificação do sujeito consigo mesmo e com a sociedade que partilha. A literatura também retrata o país e sua história, descobre no caráter e no comportamento das personagens as imagens em que o
leitor se projeta. A revolução social passa pela conversão do indivíduo ao lugar do direito e do dever, comprometidos no corpo da sociedade.
Na verdade, o milagre brasileiro, que não se cumpriu na década de 80 cumprir-se-ia com um investimento continuado e sistemático; coordenado, mas não autoritário; articulado, mas não submetido a quaisquer interesses ideológicos,
que dessem outra dimensão ao trabalho do educador, da agente cultural, do artista, do escritor. Hoje assistimos uma campanha nacional de vulto no combate à fome. Que homens passam fome no país? Todos os que não chegam à educação qualificada. Que homens não tem futuro no país? Os que não leem, não tem formação crítica. Os números da fome e da ignorância coincidem. Há cinquenta anos, Lobato nos advertia: um país se faz com homens e livros. Eu diria que um país se faz com homens que leem. Leitura na dimensão lobatiana, a que ele apresentou às crianças numa visão de mundo em processo crítico.
Justifica-se, pois, a proposta de um programa nacional de promoção da leitura, (Proler), que a Fundação Biblioteca Nacional decidiu implementar. Materializa-se na direção do fortalecimento e articulação de ações e experiências realizadas nas diversas regiões do país, por iniciativa de grupos governamentais e não-governamentais.
Ação do Proler se desenha numa primeira instância política, a de afirmar a corresponsabilidade e a descentralização.