Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Eliana Yunes – Rio de Janeiro – 28.02.1987
História para Crianças?
O Menino e o Tuim
de Rubem Braga, Quinteto Editorial, 16 páginas
Assistimos, em dezembro, ao lançamento pela Nova Fronteira de um conto de Oswaldo França Junior – A Árvore que pensava – ilustrado para crianças por Angela Lago, que acaba de receber o prêmio NOMA da UNESCO por seu livro
Chiquita Bacana e as outras pequetitas (Lê, BH, 1986).
Polêmica muitas. Não foi escrito para crianças, serve para crianças? A literatura infantil que se preza considera obsoleto este ponto de vista preconceituoso. Serve para criança se ela pode se tornar um interlocutor da obra, na leitura. Já se tem dito à exaustão que literatura infantil não é adaptação ou reedição, mas obra que também seja “legível” por crianças. E isto nada tem a ver com conteúdos morais ou definidos previamente pelo social como “adequado” ao espírito infantil. A reação a este equívoco inclusive gerou outros, diretamente opostos, como a sofreguidão com que muitos se lançaram em obras dos anos 70 a falar “de modo cru e nu” às crianças sobre temas que se julgavam tabus, pensando que faziam literatura realista.
A questão é mais complexa e facilmente contornável quando a obra tem o indispensável – qualidades literárias e além disto inclui uma perspectiva de mundo vista da infância. É por exemplo o que ocorre no lançamento da Quinteto
Editorial, de São Paulo, O Menino e o tuim, de Rubem Braga, com excelentes desenhos de Denise e Fernando. Crônica antiga, foi adequadamente transposta para a forma de conto e ganhou um irresistível apelo para leitores de todas as idades. Todo mundo já teve um bicho de estimação e pelo próprio desvelo, às vezes, o perdeu.
Desta dor que ninguém escapa na infância, fala Rubem Braga. E a coordenadora da série, Ruth Rocha, logo percebeu, como Angela Lago, que havia um ângulo pelo qual era possível ler a história, como criança. Evidente que, em ambos os casos, a questão linguagem (que não é só vocabulário!) é fundamental, pela narrativa direta e singela, capaz de materializar os sentidos sem subterfúgios. Problema do final feliz? Vamos reler os contos de Grimm para retornar o debate. E ler outras obras que começam a trocar de mãos, em sentidos inversos: rotuladas infantis, tem surpreendido gente grande, inteligente e sem preconceitos.
Amor e Fantasia
O Caminhão Mágico de Chico Beija-Flor
de Mariza Mokarzel, Mercado Aberto, 44 páginas
Com a obra Caracol Tirou o Casco; Serpente Aproveitou (Melhoramentos), premiada na Bienal de Literatura Nestlé de 1986, a autora e ilustradora Mariza Mokarzel já tinha se revelado como uma escritora de excelente potencial na literatura infantil brasileira. Neste texto, ela envereda por um terreno pouco explorado que é o do amor e da sexualidade entre crianças, numa linguagem poética e clima de fantasia onde um caracol e uma serpente aparecem como contraponto para a paixão de Ana e Pedro e imagem do mito da sedução feminina. Seu estilo original reutiliza os arquétipos e expressões que se tornaram lugares-comuns em nossa cultura para dar-lhes interpretação e uso modernos.
Esta capacidade de mesclar espaços e tempos reaparece em O Caminhão Mágico de Chico Beija-Flor (Mercado Aberto, 1986), desta vez tendo como ponto de partida o Nordeste e como horizonte a América Latina. Se o menino tem pés descalços não importa, a cabeça anda nas nuvens, com o chifre de prata do Bumba-meu-boi e um caminhão de buriti, réplica do velho Ford que a mãe dirige de Procopô a Tumtumlerolero com suas sacas e caixotes. Pelas viagens se puxa o fio mágico dos desejos e Mariza com ele costura os sonhos latino-americanos de liberdade e justiça na pele de heróis como Jesuíno e Zapata que se encontram na noite de São João, ao pé de Brinquinho, contador de histórias. A linguagem justa, justinha para esboçar a dura realidade dos camponeses em perspectivas das paisagens soberbas da natureza, no colorido imaginário que liga homens e bichos em ancestrais metamorfoses. Frases curtas, ritmadas, com restos de rima, em prosa trabalhada e ligeira a um só tempo que viaja mitos do Piauí ao México, dos cânticos indígenas às fogueiras juninas do sertão.
Neste terreno explorado da fantasia, Mariza consegue passar incólume, sem repetir modelos bem-sucedidos que hoje com frequência se deixam paralisar na discussão de que a criança “vê” mais e melhor que o adulto. Aqui eles vão juntos, heróis homens – que morreram para viver – e meninos, que vivem para sonhar.
Acertos e Contradições
Um Brasil para Criança
de Regina Zilberman e Marisa Lajolo, Global Universitária; São Paulo, 1986
A conturbada área da literatura infantil – são muitos os equívocos, graves as confusões quando se trata de escrever para crianças – está começando a formar um acervo de obras sobre os livros infantis, com o reconhecimento da importância básica desta forma de criação no âmbito das linguagens artísticas que assediam o ensino o ensino formal com acenos de melhores dias. Algumas obras importantes vêm sendo lançadas no mercado tentando reconstituir de ângulos diversos, a história teoria e crítica, da literatura infantil no Brasil, refletindo a chegada do tema às discussões dos cursos de graduação e pós-graduação das ciências humanas e sociais.
Depois de alguns livro-solo, Regina Zilberman (A Literatura Infantil na Escola, São Paulo, Global, 1981) e Marisa Lajolo (Usos e Abusos da Literatura na Escola, Ed. Globo, Porto Alegre, 1982) partiram para um trabalho a quatro mãos que resultou em Literatura Infantil Brasileira: História e Histórias (Ática, São Paulo, 1984) e agora entregam pela Globo outro título: Um Brasil para Crianças, que está longe de ser um roteiro a ser seguido na escola.
Embora no volume anterior tivessem passado em revista com a possível abrangência toda a história da literatura infantil brasileira que desde Leonardo Arroyo (Literatura Infantil Brasileira, Melhoramentos, 1968), não tenha merecido uma revisão substantiva as autoras agora completam o feito. Nos dois, a partir do contexto histórico em que se desenvolvem as produções de literatura infantil, as autoras fazem, na verdade, uma radiografia da produção cultural no país, considerando o processo político, econômico e social do Brasil. Nesta obra mais especificamente, lograram selecionar textos significativos que permitem ao leitor, distante dos raros acervos bibliográficos de pesquisa, alcançar uma visão documental de cada um dos quatro períodos em que dividem a história da literatura infantil brasileira com seus quase cem anos de sistema literário: o do aparecimento dos primeiros títulos e autores nacionais (1890-1920), o de consolidação de novos autores (1920-1945), o da “civilização” (1945-1965) e o da modernização (1965-1985), onde arte, pedagogia e indústria trocam valores e figurinhas.
De permeio, as autoras refletem as contradições, os impasses e a natureza do “gênero”, apontando para seus vícios e para a ruptura nos últimos quinze anos quando chega ombrear em nível de qualidade com a produção não infantil.
Como as pesquisadoras não se propõem a organizar um compêndio antológico apenas, a coerência de sua história e crítica está referendada no último capítulo em que os textos “documentam os rumos e os tons sucessivamente assumidos pela reflexão de que a literatura infantil brasileira tem sido objeto” e oferecem diacronicamente subsídios para uma história mais rigorosa do que a sociedade brasileira entende como literatura para crianças. O que só reconfirma a denúncia feita indiretamente no título da obra, de um projeto oficial ou oficioso de difusão de uma imagem de país e sociedade, camuflado de arte literária para crianças.
Diante da obra anterior, esta é um complemento, com menos teoria e o retrato 3×4 da produção, para o público que não tem acesso fácil aos centros de documentação. A reunião destes textos, cuidadosamente selecionados, completados com bibliografias dos autores é um bom serviço aos que lidam na área.