A Personagem Contemporânea
A dificuldade de o narrador falar à criança, no texto literário, advém do plano da linguagem, não apenas entendido como léxico e sintaxe adequados ao domínio de expressão infantil, mas, sobretudo como ponto de vista e visão de mundo a partir da infância.
Para que esta visão esteja materializada na obra, o narrador – doublé do autor adulto – precisa sintonizar seu ângulo de abordagem com o da personagem-criança. Esta por sua vez deve estar diretamente ligada ao eixo das questões que atravessam a narrativa.
Mas não foi sempre que as crianças tiveram o lugar de protagonistas na literatura que a elas se dirigia. Basta rever boa parte dos contos de fadas em que fadas e bruxas como personagens maravilhosos e reis, rainhas, príncipes e princesas são adultos. Somente por identificação psicológica, como bem demonstrou Bruno Beltelheim, a condição infantil poderia ser recuperada pelo pequeno leitor na situação vivida pelas personagens adultas. Também por projeção de sua situação, crianças consagram Robinson Crusoé e Gulliver entre outros.
A contemporaneidade, no entanto, aponta novas perspectivas e novas considerações em torno da literatura infantil. A partir de Alice no País das Maravilhas, Tom Sawyer e Reinações de Narizinho – onde as personagens centrais sendo crianças permitiram à narrativa escapar dos estreitos cânones da norma e da exemplaridade – é que a literatura infantil se reorienta pelo espírito transgressor, inventivo e imaginário da criança, alcançando súbitos patamares de qualidade artística e cativando leitores não infantis.
É esta a tese central do pequeno volume As personagens da Literatura Infantil, de Sônia Salomão Khéde (Ática; São
Paulo, 1986, 96 págs.). A partir da constatação histórica do lugar da personagem infantil nas obras infanto-juvenis em seus primórdios, em que a univocidade e didatismo prevaleciam frente ao contexto, evitando a problematização, a não ser superficialmente, a ensaísta assinala o perfil da personagem/criança no texto contemporâneo.
Sendo mais semelhante à própria crise de crescimento e identidade que move o leitor infantil, questionando valores autoritários que o submetem e optando pelo discurso lúdico que rearticula as contradições – tudo numa linguagem capaz de expressar de fato sua concepção do mundo e de sua própria história – a personagem nas obras infanto-juvenis contemporâneas cativa leitores sem limite de idade.
Pelo menos é o que procura demonstrar Sônia S. Khéde que avança, em sua tese, uma qualidade muito particular da literatura infantil brasileira – a capacidade de articular os diferentes níveis de cultura: erudita, popular e de massa que,
em alguns textos, a personagem infantil demonstra. Talvez por isso se explique em parte o interesse no país pela literatura infantil entre pais, professores e crianças de níveis sociais diversos. Deixando de lado o estereótipo e a
caricatura, vivendo a relatividade e ambivalência dos valores contemporâneos, longe das idealizações piegas, a personagem torna-se extremamente criativa, mesmo em textos de estrutura simples e incorpora uma perspectiva dinâmica das coisas, ponteada pelo caráter marginal que o Malasartes e a Emília bem representam na cultura brasileira. A habilidade de ser múltiplo sendo um só é a marca da infância que o adulto tenta domar.
Obras como as de Ziraldo, Ana Maria Machado, Joel Rufino, Sílvia Orthof, Lígia Bojunga Nunes são passadas em revista a partir deste ângulo.
A contribuição mais decisiva do volume está, contudo, na observação de que tais personagens infantis forçam no contexto da narrativa o aparecimento de outra geração de personagens adultos que, longe da repressão autoritária, se dispõem a dialogar e mudar posições ortodoxas. Esta diluição das faixas etárias e universalização do debate em situações muito peculiares da relação criança/adulto aponta o gênero como o de uma possível iniciação à leitura entre adultos sem familiaridade com a literatura.
Para contemplar um roteiro de abordagem dos personagens infantis na literatura brasileira faltaria, apenas, seu exame na literatura não-infantil onde, mesmo sendo protagonistas, as crianças raramente escapam de um ponto de vista do
narrador que fala sobre a infância e não com ela. Neste sentido pode-se verificar a vanguarda da literatura infantil que incorporando todos os elaborados recursos de linguagem da literatura não-infantil, e sem fazer censuras temáticas, deixa falar a criança e através deste personagem recupera para o adulto a complexa dinâmica da infância.
Comprova esta análise o prêmio dado a Lígia Bojunga Nunes pela transposição de 7 Cartaz e 2 Sonhos (Vertecchia e Berlendis, Rio, 1984) para o palco: Ensaio nº 2, o Pintor. Com o aplauso unânime da crítica, foi uma peça vista por grandes e pequenos e cuja construção da personagem infantil permitia uma abordagem de problemas graves e cotidianos na ótica do adulto e da própria criança.