Matéria publicado no Jornal O Dia
Por Armindo Blanco –  Rio de Janeiro – Jan 1979

Barra

Joãozinho Trinta para crianças

Imagine-se um funil, que vai estreitando, estreitando, até ficar com um diâmetro que não daria passagem nem a um dedo mindinho. E se terá uma ideia aproximada da situação do teatro para crianças: de um lado, vasta massa de potenciais espectadores sem recursos econômicos para consumir o produto cultural; do outro, a minoria privilegiada, com papai rico ou bem remediado, para a  qual o teatro é mais um luxo, entre tantos outros.

Estatísticas que recentemente escandalizaram o País depois de terem sido divulgadas pela revista norte-americana “Time” dão notícia de que, no Brasil, existem, pelo menos, 16 milhões de menores abandonados (ou “carentes”, segundo o eufemismo com que depois se tentou tapar o sol com a peneira). Em contrapartida, existem no Rio, talvez, umas vinte mil crianças que, entre brinquedos caros, alimentação adequada mais do que o conforto doméstico necessário podem regalar-se, de vez em quanto, com espetáculos de teatro em princípio próprios para a sua Idade. É uma faixa de consumo restrita e que não apresenta qualquer indício de crescimento.

Disto, e também da falta de locais específicos, cuja construção jamais se previu, nem em planos-pilotos como o da Barra – resultam as muitas dificuldades com que lutam os produtores do gênero: mesmo os espetáculos de boa qualidade esgotam rapidamente a fração exígua de  público disponível e não conseguem afluência razoável além de dois – três meses de carreira. E as médias de frequência, inclusive nas primeiras semanas, são baixas: 50 espectadores, contando-se aí as crianças e seus acompanhantes.

Ainda assim, embora em nível modesto, há quem se sirva do teatro para crianças como modo de vida. Mas, de modo geral, trata-se de produtores sem maiores escrúpulos, que entre uma Branca de Neve fajuta e um Aladim araqueado, vão impingindo gato par lebre, explorando a desinformação dos pais. Nada se salva: nem os enredos, nem o guarda-roupa, nem a cenografia, nem os elencos, estes quase sempre compostos por amadores, iniciantes ou atores desempregados. Em termos pedagógicos, é uma catástrofe; em termos de espetáculo, uma burla.

As exceções – Maria Clara Machado, Silvia Orthof, Ilo Krugli e poucos mais – não fogem à ideologia dominante nas camadas sociais em que se recruta a sua clientela. Armam espetáculos cujos códigos verbais e visuais obedecem a certo tipo de refinamento que nada tem a ver com a vivência da maioria. Espetáculos só digeríveis e assinaláveis por crianças bem criadas, que durante a semana frequentam colégios particulares e, sábado ou domingo, saltam de carros do ano à porta dos teatros. Espetáculos, em suma, que nada diriam as crianças subalimentadas, se degradando e embrutecendo em barracos de favela ou na promiscuidade dos conjuntos residenciais.

Neste quadro o teatro para crianças nunca passou de um supérfluo que ra o erário público custeia parcialmente através de prêmios e subsídios, e que está longe de exercer qualquer influência transformadora. É uma gota d’água num deserto árido, fugaz momento de recreio para infantes nascidos em berços de ouro ou prata.

Ultimamente – e em decorrência dessa realidade – começou a desenhar-se certa tendência para profissionalizar o ramo, identificando-o cada vez mais com as características dos espetáculos para adultos. Já vimos como um ator cansado e em nítido declínio da criatividade, Grande Otelo, foi usado como chamariz em A Revolução dos Patos. E vemos agora em O Castelo das Sete Torres, de Benjamim Santos, em cena no Teatro Gláucio Gill, como o esquema vai sendo levado às últimas consequências: Elke Maravilha é a estrela, Luís Mendonça o diretor, Laerte Thomé o figurinista, Rachel Levy a responsável corporal, Jorginho de Carvalho pela ilumine Caíque Botkay pela música. Resultado? Uma féerie de alto luxo, que faz lembrar (ressalvadas as devidas proporções) as das escolas de samba. Tecidos caros, bordados laboriosos, muita pedraria lucilando sob os holofotes. Reis e príncipes, damas e cavalheiros, trajando a caráter. Mascaras e adereços em profusão. E uma apoteose como a dos mamulengueiros, que até Walter Pinto gostaria de assinar, nos bons tempos do teatro de revista na Praça Tiradentes.

E daí? Daí, na plateia, crianças de tenra idade, ainda sem tutano a altura das complexidades do enredo e dois achados semânticos do texto, choram, esperneiam, reclamam contra o imobilismo a que as constrangem. E os adultos acham lindo, porque, de fato, é segundo os padrões estéticos que fizeram a glória de Joãozinho Trinta. Talvez ninguém se aperceba de que Elke Maravilha, não obstante uma certa irradiação mágica, pertence a outro departamento e se dirige as crianças no mesmo tom encantatório com que fascina s chamadas Macacas de Auditório no Chacrinha. E que, no elenco, aliás, muito bem trabalhado corporalmente pela eminente professora, que é Rachel Levy, os méritos maiores são de uma atriz desconhecida, Denise Assunção, que faz o Amen de Maktub emprestando ao personagem e ao lance, uma dimensão inusitada e revelando um talento que lhe garantiria rápido estrelato não fosse a cor da pele, que entre nós ainda é limitadora, por escassez de oportunidades falta de um teatro negro e outros óbices.

Sem dúvida, e considerando-se as circunstâncias, são louváveis e nada despiciendos os esforços dos produtores Rodrigo Farias Lima e José Renato Mendes no sentido de elevar ainda que discutivelmente, o gabarito dos espetáculos para crianças, tanto na forma como no conteúdo. Mas eles se dirigem a um certo público, aquele que em princípio, parece disponível e com recursos para pagar Cr$ 50,00 pelo ingresso. Poderiam fazer outra coisa? O povo passa ao largo dessa butique sofisticada, tem de contentar-se com molambos e mixarias ofertex. Não teria, sequer, caso lhe abrissem as portas, como avaliar tais regalos, nem como entender a estória do Pequeno Rei Sonhador que, em vez de governar, preferia distrair-se com a Grande Estrela Luminosa e tirar da vida, o seu prazer individual, indiferente à sorte dos súditos e as contradições do reino.