O Chamado do Oriente
Existem dois tipos de viajantes que visitam a Índia. Ambos são atraídos pelo mesmo fascínio que o Oriente desperta em nossos áridos espíritos ocidentais. Ambos, ao pisarem naquele país padecem a inevitável e triste decepção: ali não se respira incenso e magia, nem se encontram as sensuais dançarinas, nem os encantadores de serpente, nem os sábios, nem os lugares místicos para meditação. O que existe imediatamente é um inferno de miséria e caos urbano, animais soltos pelas ruas e montes de seus excrementos, um trânsito enlouquecedor e a sinfonia ensurdecedora e contínua de suas buzinas. Além dos aproveitadores que rodeiam estrangeiros como moscas e que não os deixam em paz até o momento de partir. O primeiro tipo de viajante, não toca em nada, não come nada, não bebe nada, quase não sai do hotel, só anda de táxi e pega o primeiro vôo para um outro lugar qualquer. Já o segundo tipo pensa exatamente a mesma coisa mas, por uma incrível debilidade de espírito ou mental, parece “gostar” daquilo. E pior, insiste em voltar. E todas as vezes que deixa a Índia, promete a si mesmo nunca mais retornar. Como nós o fizemos.
Sobre o Oriente e seu terrível encanto, Edward Kipling resume: “Se ouvires o chamado do Oriente, já não ouvirás mais nada”. E nada mais pode ser dito.
Dragões
Em um de seus relatos fantásticos e oníricos, Jorge Luis Borges fala de um homem que durante dez anos de sua vida estudou a lendária arte de matar dragões e desde então não se encontrou com um dragão sequer. Este ano o Teatro Mínimo completa dez anos dedicados ao Teatro, esse universo povoado por seres fantásticos e espantosos. Os encontros inevitáveis com os monstros que habitam esse universo renderam experiência e calos. Num território assim, a luta maior acaba sendo consigo mesmo.
Desde 1990 o Teatro Mínimo pesquisa sobre a técnica do ator tendo como base a milenar tradição do Kathakali, estilo masculino de Teatro-dança Clássico da Índia. Essa pesquisa, que tinha como objetivo procurar descobrir e utilizar criativamente as fontes de energia do ator em cena e suas possibilidades expressivas máximas, nos levou também a questionamentos bem mais profundos sobre nós mesmos e sobre a natureza do trabalho ao qual decidimos nos dedicar.
Conta a lenda dos primórdios do Islamismo que o Profeta Maomé vê retornar à casa seu terrível exército que havia partido em uma expedição de conversão e saques. Ele recepciona seus bravos guerreiros, orgulhosos de suas vitórias e botins, e diz: “Agora que vocês terminaram sua Pequena Jihad (“Guerra Santa”), podem se dedicar completamente a Grande Jihad, aquela que realmente importa: a que tem lugar no coração de cada um de vocês”. O profeta apontava que o maior inimigo, o pior dos dragões, mora dentro de cada um. É assim com o Teatro. É assim com as pessoas.
Desde o início, percebemos como é difícil construir um trabalho técnico desse lado do mundo. Os trabalhos na área teatral se baseiam, quando muito, na sucessão de montagens de peças, muitas vezes desencontradas, calcadas unicamente no trabalho criativo de um diretor e em sua capacidade de inventar coisas novas e surpreender. Para os atores que perambulam entre uma montagem e outra é ainda pior. A cada novo projeto é como recomeçar do zero.
Convivemos também com a impertinente questão do ‘talento” , esse valor incomensurável e definitivo para a nossa arte. Digo “nossa” porque, no Oriente, o conceito de talento nas artes é algo que não faz parte nem do processo de formação artística, nem do de criação. O que significa, afinal, a palavra “talento”? É um Dom recebido por Deus? Talento, como o entendemos hoje, é algo que se tem ou não. Logo, é um Dom, algo intrínseco àquele felizardo indivíduo. Mas o que é, objetivamente, “talento”? Que qualidades definem quem tem talento? Como se definem estas qualidades? Quem é capaz de julgar a quantidade de talento em uma pessoa? E, afinal, se o talento não é algo que se possa instrumentalizar, para que serve então?
No Teatro Indiano, a rígida formação à qual o futuro artista é submetido, visa fazê-lo senhor de um arsenal técnico tão poderoso que, independente da existência ou não dessa qualidade chamada “talento”, exista para ele a possibilidade concreta de construir um trabalho artístico subjetivo, rico e fecundo. A técnica funciona como um veículo de seu desenvolvimento como artista, em nível criativo e pessoal. Este desenvolvimento pode tomar a vida inteira, até do mais dedicado artista. Kalamandalam Ramakutty Nair, um expoente do Kathakali, com seus quase oitenta anos, resume atualmente todas as qualidades que se espera de um ator de Kathakali. Ainda que não tenha sido seu aluno, nosso mestre Nanda Kumaran, de 55 anos, também ele um grande ator, não deixa de tocar os pés do velho ator a cada encontro.
Ramakutty Nair foi aluno desde os sete anos de idade, aprendeu sob a rigorosíssima maneira tradicional de ensino e após décadas como ator, especializou-se em um único personagem da pequena dramaturgia do Kathakali: Hanuman, o deus-macaco. Suas esparsas performances públicas levam centenas de pessoas aos templos. Na sua chegada ao local do espetáculo, podemos vê-lo se dirigir, alquebrado, se apoiando em um bastão, para a sala de maquiagem. No entanto, uma vez em cena, suas poderosas batidas de pés fazem tremer o chão em que sentamos, ao mesmo tempo que nos enleva com a delicadeza e precisão com que delineia as expressões em seu rosto.
Ramakutty Nair costuma dizer que ainda não conseguiu definir com a precisão que gostaria algumas nuances do personagem Hanuman, mas que gosta de continuar tentando. Ramakutty Nair demonstra, sob todos os aspectos, uma atitude com relação à arte teatral estranha a nós. O Teatro é a única área artística onde possuir o “Dom do talento” pode bastar. E a aquisição, detenção e aprimoramento de um conhecimento técnico próprio de sua profissão, são, quase sempre, menosprezados. Um exemplo notável de discípulo que entendeu que o desenvolvimento da arte de matar dragões é mais importante que a própria existência dos dragões.
Kerala
Durante dois anos vivemos na Índia e não conhecemos nenhum ponto turístico do país. Ou pelo menos nenhum que estivesse a mais de 30 Km do minúsculo vilarejo de Cheruthuruthy, no estado de Kerala. No entanto, convivendo com famílias e compartilhando com o cotidiano das pessoas mais simples, pudemos ver as pessoas se casando, nascendo, morrendo, comemorando, rezando e, também, é claro, brigando.
Desembarcamos na Índia no aeroporto de Cochin que, de tão modesto, parece ser na verdade uma pequena casa de três cômodos, com uma pista para aviões em seu quintal. De lá tomamos um trem para Cheruthuruthy, onde ficamos oito horas por dia, seis dias por semana, dentro de uma pequena sala, treinando como loucos em frente ao mestre.
As semanas escorrem velozes e, mesmo depois de infindáveis sessões de batidas rítmicas com os pés, os resultados mostram-se relutantes em aparecer e a rotina não se altera. Por dentro nos perguntávamos o motivo de tantas batidas e de tão árduos exercícios. Por que não nos dedicávamos logo às danças? Buscando resistir à armadilha fácil para os estrangeiros, motivo de constantes piadas entre os artistas, pois querem a tudo “entender” antes de se “dispor”, mantínhamos o silêncio. Como nosso mestre não parecia disposto a explicar, um dia a pergunta acabou surgindo: “Por quê?” Ele sorriu um pouco irônico e ficou em silêncio. Caminhávamos pela rua e tive a impressão que ele ignoraria a pergunta. Finalmente, ele se virou e falou: “O Kathakali não tem nada para te falar aqui ( e bateu em minha testa); ele quer escrever em você aqui e aqui ( e riscou com o dedo meu braço e minha perna)”.
O Kathakali não é uma experiência fácil. Além de possuir uma rotina incrivelmente árdua, deve-se conviver na Índia com uma realidade avessa, onde tudo para nós é estranho: a comida, a roupa, os costumes, as regras de “boas maneiras”, etc. Um vilarejo do sul indiano é uma máquina do tempo que nos leva à Índia do século passado. Em 1989 não existia, em todo o vilarejo, nenhuma casa com televisão ou geladeira. E apenas um posto telefônico público. Atualmente, dada a tendência indiana ao paradoxo, não me surpreenderia encontrar em Cheruthuruthy computadores lado a lado a elefantes.
Roma
Durante um ano de trabalho na Itália, tivemos a primeira oportunidade de convidar nosso mestre Nanda Kumaran a vir se juntar a nós para algumas performances. Apresentamos o Kathakali em Roma e em algumas cidades italianas. Um episódio acontecido na cidade de Ascoli Piceno, reflete a atitude de nosso mestre em relação a sua arte. O espetáculo seria ao ar livre e deveríamos andar cerca de 30m por uma ruela estreita, escura e pedregosa, até chegar a praça onde estava o palco. Nanda, ao ver chegar sua hora de ir, abriu a grande porta do local onde estávamos e, segurando com as duas mãos as echarpes de seu figurino, fez todo o trajeto caminhando com os potentes passos do Kathakali, onde as bordas dos pés massacram com força o chão. Sem que ele se desse conta, pude vê-lo, iluminado apenas por furtivas luzes que cintilavam no imenso figurino, caminhar os 30m batendo impiedosamente os pés no chão de pedras da viela medieval, sem ser visto por mais ninguém. Exatamente como devia ser.
Brasil
Em 1997, Nanda Kumaran visitou o Brasil e percorremos com ele algumas cidades e festivais do país com o espetáculo Kathakali – Teatro Sagrado do Malabar. Com 75 minutos de duração, era apenas um fragmento de uma famosa peça de Kathakali chamada Duryodhana Vadham (“Morte de Duryodhana”), cuja história foi retirada do Mahabharata e reescrita em meados do século XIX. A encenação completa do texto requereria, em média, quatro horas.
Sempre condicionamos a apresentação desse espetáculo à presença do mestre Nanda Kumaran. Com sua ajuda, obedecemos a todos os preceitos condizentes à performance do Kathakali, exatamente como é feita na Índia. Mesmo porque Nanda não permitiria que não fosse feito assim. Em Ouro Preto, durante o festival de Inverno de 1997, Nanda Kumaran conferiu todo o material, antes do que seria nossa primeira apresentação no Brasil. Ao final ele disse: “É, vocês têm tudo aqui”. Retruquei em tom de brincadeira: “Só o templo não está aqui”. Ele sorriu: “Oh, mas Deus está!”.
Com o início do espetáculo marcado para as 21:00h, nossa rotina de preparação devia começar às 11:00h, com a separação e arrumação dos ornamentos e peças do figurino. A enorme quantidade de pequenos objetos e substâncias (pedras, pós, óleos) a serem utilizados na maquiagem fazia com que fosse necessário nunca menos que uma hora para esta separação. Depois, acendíamos a lâmpada, Nanda Kumaran fazia uma prece silenciosa presenciada por todos, e começávamos o processo de maquiagem. A maquiagem inclui as linhas no rosto que limitarão as cores, o preenchimento desses espaços e, por último, o belo disco de papel que emoldura a face do ator, fazendo com que suas expressões pareçam saltar do rosto. Essa verdadeira “escultura” de papel deve ser feita na hora, bem como as linhas brancas, feitas com pasta de arroz que, ao final, contornarão as cores no rosto. Na Índia existem profissionais dedicados exclusivamente à maquiagem do Kathakali. Ao todo ficávamos, em média, de quatro a cinco horas apenas no processo de maquiagem.
A próxima etapa era o figurino. Eram necessárias duas pessoas para vestir os atores, os quais deviam se aprontar um de cada vez, levando-se quase uma hora em cada vestimenta. Uma seqüência minuciosa na colocação das peças devia ser obedecida. Primeiro os guizos nas pernas. Em seguida a imensa saia com seus 30 ou 40 pedaços de algodão, rígidos como madeira pela goma, amarrados, um a um, na cintura, por baixo da saia. Depois a camisa, com todas as inumeráveis “jóias”, enfeites e, por fim, a coroa. O momento mais solene era, sem dúvida, a colocação da coroa. Nanda Kumaran a tomava em suas mãos e, fechando os olhos, rezava longamente. Depois, aspergia com água o seu interior e a colocava sobre sua própria cabeça, em um único e ágil movimento. Ao todo, gastávamos dez horas de trabalho ininterrupto.
Todo o material (roupas, adereços, cortinas, objetos) foi confeccionado na Índia especialmente para nós. Obviamente, não existem lojas para Kathakali. Algumas pedras utilizadas na feitura de algumas cores da maquiagem, deveriam ser compradas em locais especiais e em determinadas cidades. Alguns tipos de tecidos utilizados no figurino são característicos de uma região ou vilarejo e deve-se ir até lá para comprá-los. Ao todo, foram gastos seis meses na confecção de todo o material que precisávamos para que nada faltasse. Uma única coisa nos foi impossível trazer: a semente encontrada em uma flor característica de Kerala que, massageada com óleos e colocada dentro da pálpebra, liberta uma forte tintura avermelhada, dando um aspecto ainda mais fantástico à face do ator. Apesar de seu poderoso efeito cênico, a substância é inócua para o organismo e seu efeito desaparece algumas horas mais tarde. Infelizmente, a minúscula semente se deteriora dias depois de ser colhida.
Como tudo na vida, desmanchar era fácil e rápido. Ao final do espetáculo, levávamos apenas uma hora para desfazer o trabalho de um dia inteiro. Como uma mandala, toda aquela beleza se transformava em pequenos objetos espalhados sobre o pano negro, completamente desprovidos de sentido agora. Encarávamos todo este trabalho como uma lição de humildade, respeito e dedicação ao momento sagrado de estar em cena, afinal, a serviço dos deuses.
Ética e Estética
Os espetáculos criados pelo Teatro Mínimo, Viagem a Jericó (1995), Índia (1996), Mil e Uma Noites (1998), O Livro de Júlia (1999) e Antônio (2000), para citar apenas os mais recentes, e a permormance de Kathakali, trazida da Índia, ocupam lugares distintos em nosso trabalho. A técnica pura e a criação artística convivem em nossa pesquisa, mas não se misturam. Não foram poucas as vezes que, ao se depararem com o espetacular figurino do Kathakali, nos perguntaram por quê não nos utilizamos destes elementos tão incrivelmente coloridos e de tão forte impressão. Devemos sempre repetir que, apesar de nosso fascínio, nosso interesse sobre o Kathakali é primordialmente técnico. Utilizamos seus princípios, não sua formalização.
Alguns encenadores ilustres do Teatro mundial, gostam de se utilizar de “pedaços” de manifestações culturais de outros povos. Como num grande supermercado cultural “globalizado” , lançam mão ora de um apetrecho de cena, ora de um detalhe de maquiagem, de um arremedo gestual, ou ainda de um cocar ou coroa. Arrogantemente descompromissados e sem se importarem minimamente com o sentido do que usam, e sim unicamente com a justificativa estética, buscam, lamentavelmente, remediar a esterilidade de seu Teatro com o exótico.
Teatro Mínimo e Kathakali
O Kathakali, bem como todo o Teatro Clássico da Índia, desconhece o dilema entre o drama e a dança. Os dois princípios encontram-se reunidos de forma simbiótica em uma única manifestação. Da mesma forma passamos a lidar com nosso material criativo. E, assim, elementos de dança e Teatro se entrelaçam desde o início de nossa pesquisa. O desenvolvimento desta linguagem particular do trabalho do grupo parte do estudo contínuo dos princípios contidos nas técnicas de Teatro da Índia.
Já ouvimos muitas vezes que a técnica aprisiona. Nossa experiência nesses dez anos nos aponta justamente o oposto: a técnica liberta o ator para criar o que lhe é mais fundamental, a vida em cena. O Kathakali nos oferece uma base sólida e concreta onde podemos alicerçar nossa pesquisa e desenvolvê-la. Obviamente não é possível, nem nunca nos interessou, formar um ator de Kathakali ocidental. Nem os estrangeiros que passam a viver na Índia e se dedicam integralmente ao Kathakali ( e conhecemos alguns deles) conseguem este objetivo. O Kathakali pode nos oferecer suas fontes, seus alicerces, seus princípios técnicos, seus procedimentos, sua ética, sua dedicação, sua estruturação, para que, com estes elementos, possamos construir um Teatro que fale às pessoas de nosso lugar, de nosso tempo, sem imitações, sem saudosismos estéreis, mas conscientes do sentido profundo, original e essencial da profissão que nos metemos a abraçar. Todo o Teatro, de todo o mundo e de todo o tempo, pertence àqueles que se dedicam e lutam por ele.
O Kathakali tem sido a matéria prima de nossa pesquisa ao longo desses dez anos. Na prática desse trabalho, algumas respostas se traduziram em espetáculos que, ao final, mais perguntas acabaram levantando. A natureza árdua desse caminho pressagia que, por trás de cada resposta, espreitam sempre outras duas perguntas. E por trás de cada novo projeto, o maior de todos os dragões.
Almir Ribeiro
Ator e diretor teatral, é um estudioso das formas de Teatro Clássico Oriental e suas relações com a religião. Após um longo período de moradia da Índia para estudo e pesquisa do Kathakali, Almir divide seus conhecimentos no livrro Kathakali – Uma Introdução ao Teatro e ao Sagrado da Índia.