Crítica publicada na Tribuna da Imprensa – Tribuna Bis
Por Lionel Fischer – Rio de Janeiro – 12.12.1996
Contradições e criatividade
“Algumas pessoas acreditam que trabalhar com Teatro de Bonecos é limitador. Quer dizer que um corpo entre 1,60m e 1,90m, com uma cabeça, dois braços e duas pernas também não é limitador? Dando vida a formas inanimadas, podemos mostrar coisas que o corpo do ator não poderia encenar. E temos a possibilidade de fazer tudo que é produzido no teatro tradicional e muito mais”. Extraídas do release enviado à imprensa pela produção de Ubu! (Espaço Cultural Sergio Porto), estas palavras definem as premissas essenciais do grupo Sobrevento, que escolheu o polêmico texto de Alfred Jarry (1873-1907) para comemorar seus 10 anos de existência.
Escrita em 1896, Ubu Rei (o texto apresentado é uma adaptação do original) provocou tamanho escândalo em Paris que, no dia seguinte ao da estréia, o espetáculo teve que sair de cartaz. Tal fato, por si só incomum, assume conotações ainda mais surpreendentes quando se sabe que nomes importantes do meio artístico local colaboraram na montagem, como o pintor Toulouse-Lautrec, um dos responsáveis pela cenografia. Assim, a que atribuir uma rejeição tão violenta?
Passados 100 anos, a resposta é simples: a sociedade burguesa da época não estava preparada para se ver retratada de forma tão grotesca e excêntrica, praticamente transformada numa caricatura. Mas a peça, graças ao seu espírito lúdico, humor negro e extravagância idiomática, escapou ao esquecimento a que parecia condenada e se tornou o embrião do Teatro do Absurdo, cabendo registrar que os surrealistas também beberam nesta mesma fonte.
Para encenar a história do militar que mata o rei da Polônia, assume o poder e passa a tiranizar seus súditos, o Sobrevento lançou mão de uma linguagem inteiramente diversa da utilizada em espetáculos como Mozart Moments, Beckett ou Theatro de Brinquedo, sempre apoiada na manipulação de bonecos. Aqui, o conceito é o da supermarionete – os atores visam tornar-se, eles próprios, bonecos, atuando inteiramente ocultos por figurinos volumosos e deformados. O impacto, sem dúvida, é avassalador. Passados, porém, os momentos iniciais, começa a aflorar uma contradição que nos parece relevante.
Se o propósito era desumanizar ao máximo os personagens para, quem sabe, tornar ainda mais clara a engrenagem que move o poder ou leva o homem aos extremos do ridículo e do absurdo, os códigos de representação deveriam ser diferentes. Ou seja; ainda que camuflados por todo um aparato visual que sugere criaturas nascidas de um delírio surrealista, todos atuam dentro de uma linguagem bastante próxima da convencional, tanto em termos de gestos quanto de entonações vocais – há, inclusive, passagens que se aproximam do mais puro naturalismo, como algumas das protagonizadas pelo general Lascívio.
Em nossa opinião, tanto o gestual como a elocução verbal deveriam estar em sintonia com a deformação das formas, o que conferiria unidade e coerência à original proposta. Como está, o espetáculo evidencia um permanente conflito entre o conceito que lhe deu origem e sua materialização na cena.
Ainda assim, é inegável que a montagem dirigida por Luiz André Cherubini exibe belas passagens, sendo a mais expressiva aquela em que o protagonista condena ao fosso alguns de seus vassalos. Estes, convertidos em curiosas formas feitas de materiais diversos, são hilariantes e evidenciam a criatividade do cenógrafo Hélio Eichbauer, também apreciável na forma como organizou a ambientação, que sugere um espaço em ruínas mas ainda assim algo ordenado pelo encadeamento de determinadas engrenagens. São igualmente excepcionais os figurinos de Maurício Carneiro, tanto em termos de ideia como de execução. É correta a iluminação de Renato Machado, assim como adequada a trilha sonora no estilo heavy-metal executada ao vivo por uma banda.
Ubu! – Adaptação de Ubu Rei, de Alfred Jarry. Com o grupo Sobrevento. Direção de Luiz André Cherubini. Espaço Cultural Sergio Porto. Ver dias e horários no Roteiro Carioca.