Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 30.05.2004
Bom teatro para todas as idades
Texto de Italo Calvino, baseado na história do Barba Azul, ganha montagem inventiva do grupo Oname
Com o nome de uma divindade ianomâmi, o grupo Oname comemora 10 anos de atividades com um espetáculo em que prossegue na sua pesquisa do teatro ritualístico. Nariz de Prata – uma fábula sobre a astúcia – é uma atraente proposta de renovação da linguagem do teatro- infanto-juvenil, em cartaz no Teatro Villa Lobos.
A história é um reconto da fábula de tradição oral O barba azul, de Çharles Perrault, escrito por Italo Calvino, escritor italiano, com forte influência das lendas medievais. O texto de Calvino fala de três irmãs que são seduzidas por um homem rico, Nariz de Prata. Convidadas a trabalhar em seu castelo, têm acesso a toda a sua riqueza, exceto a um misterioso quarto. Uma a uma as irmãs se mudam para a casa do herói e a curiosidade faz com que descubram que ali estão, sem vida, as muitas esposas que Nariz de Prata já teve. Ele prende as duas primeiras no quarto proibido, mas a última das irmãs liberta a todas através de um inventivo estratagema.
Esta versão associa o personagem Nariz de Prata ao demônio e o quarto proibido à revelação do inferno. A carga mítica do texto emerge forte e fala diretamente à emoção e ao inconsciente do espectador. Por isso é um espetáculo para crianças, jovens e adultos, conduzido com competência, sutileza e criatividade.
Em cena, fica evidente a consistência e a qualidade de um grupo de teatro que, sob a direção de Marilena Bibas, desenvolve um trabalho de pesquisa e treinamento permanentes. A homogeneidade do elenco e a cumplicidade dos atores permitem que a direção do espetáculo, também de Marilena, crie belíssimas cenas de abertura que transportam o espectador, de imediato, para um mundo mágico.
Sem abrir mão da emoção, as atrizes demonstram técnica precisa, desde a exploração da teatralidade dos figurinos até a manipulação de panos e objetos, que ganham vida e novos significados a cada cena.
O texto teatral enfrenta inteligentemente as dificuldades de adaptar para o teatro uma história de tradição oral, composta por unidades narrativas que se repetem: a ida, uma a uma, das três irmãs e o retorno de cada uma delas. A direção usa da simultaneidade de cenas como um recurso para evitar o excesso de repetição, apoiada pela direção musical de Luiz Garcia, que incorpora músicas de Strawinsky a Pixinguinha à trilha, construindo um texto musical paralelo ao texto teatral.
A meia-luz de Paulo César Medeiros, que permeia todo o espetáculo, cria o clima de suspense e mistério a que a história se propõe. O espaço cênico, de Ivano Manzan, tem uma simplicidade que remete à origem da fábula recontada e a economia essencial à força dramática. O mesmo acontece com os figurinos, inventados pelos próprios atores, como parte de seu processo criativo.
No elenco, Carla Piske, Anneli Olljum e Ana Luiza Magalhães fazem as três filhas de modo equilibrado. Mas a cena ganha luz quando a “mama” Paola Luna está no palco. Sua presença cênica e excepcional máscara dramática compõem, de forma emocionante, o arquétipo da mãe.
Leandro Lobo, que faz o personagem-título, não tem a força necessária que o papel requer o que tenta suprir com excesso de maneirismos e trejeitos. A economia e precisão de gestos emprestam força dramática aos demais personagens e às cenas, num excepcional trabalho de corpo, marca registrada da direção de Marilena Bibas Nariz de Prata propõe um teatro de linguagem contemporânea, que encena um texto infanto-juvenil com a mesma força e seriedade com que à noite encena o espetáculo adulto Flash Medea. Marilena Bibas, com este trabalho, se insere definitivamente em um restrito clube de diretores teatrais cujo talento e seriedade o público precisa conhecer. Só desta forma a linguagem dos espetáculos infanto-juvenis poderá retomar o vigor e a renovação que apresentou nos anos 80. Um processo que precisa ser retomado.