As Mil e uma Noites: montagem que ganhou Mambembe em 1998 está de volta, no Teatro Sesi


Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 03.07.2004

 

 

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Tudo pode ser dito

Um jeito de se falar de morte e de sexo para crianças

A peça As Mil e uma Noites, ganhadora do Prêmio Mambembe de Melhor Espetáculo Infantil, em 1998, retorna aos palcos, no Sesi. O espetáculo é uma realização do Teatro Mínimo, que desenvolve há quinze anos um trabalho de pesquisa sobre o teatro clássico oriental.

Grupo Teatro Mínimo conta a história de Sherazade 

O espetáculo não conta nenhuma das histórias narradas pela princesa Sherazade – mas sim a história da própria Sherazade. O rei Shariar, que reinava sobre ilhas da Índia e China descobre que sua mulher o havia traído e, para se vingar decide que dali em diante mataria suas esposas na manhã seguinte à noite nupcial.

Foi assim por três anos, até que Sherazade, a filha mais nova do Vizir, encarregado de escolher as noivas para o Rei, se oferece para ser a próxima esposa, dizendo ter um estratagema que poria fim à mortandade que dizimava as virgens do reino.

Após a noite nupcial Sherazade começa a contar fascinantes fábulas, mas, antes que a manhã rompesse, ela interrompia o relato, prometendo que o continuaria na noite seguinte. Durante 1001 noites, o rei, levado pela curiosidade de saber a continuação das histórias, vai adiando a execução de Sherazade, até que ele a perdoa, e assim  ela salva sua vida, outras jovens e o próprio reino do caos.

A história de Sherazade, talvez a mais antiga contadora de histórias do fabulário universal, fala da força da narrativa, capaz de mudar a trajetória das pessoas, a vida de um reino inteiro. A dramaturgia e a direção do espetáculo, de Almir Ribeiro, consegue manter o fio invisível que encanta e prende o contador ao seu ouvinte, numa linguagem minimalista, em ritmo absolutamente adequado às origens da história. O ponto de partida é acreditar que a força de uma narrativa bem desenvolvida seja capaz de prender a atenção da criança, sem a utilização de recursos fáceis.

É um espetáculo solo,  uma opção do Teatro Mínimo, a partir de seu trabalho de pesquisa. Aglaia Azevedo vive e conta a história de Sherazade. O contar mágico domina a cena e os recursos desta atriz e dançarina são colocados a serviço da contadora.

Aglaia caminha da sóbria narradora a uma sensual Sherazade. “Natya” é a expressão do Teatro de Kathakali, da Índia, que significa, para eles,  uma unidade indissolúvel: teatro e dança – presentes em cena. Almir Ribeiro agrega a este elemento, a linguagem do  contador de histórias. E, dentro desta estrutura, Aglaia Azevedo compõe diversos personagens, e vai narrando a história, utilizando-se de seus recursos de atriz e de contadora. Mas estas passagens de narrador para personagem e para o personagem-narrador, poderiam ser pontuadas de um forma mais adequada.

Privilegiando a narração está um espaço cênico simples e eficiente, com panos translúcidos, que servem ao excepcional  desenho de luz, criado por Alan Minas, sublinhando, com extrema delicadeza, os climas e os diferentes passos da história. Figurinos, bonecos e adereços trazidos da Índia ajudam a revelar o mundo real e fascinante de uma civilização e cultura bem diferente das cristãs – e isto é mais um ganho do espetáculo, que nos aproxima de uma cultura ancestral e fantástica, como a cultura oriental, colocando-a ao alcance das crianças.

O eixo vital das histórias que compõem o fabulário das Mil e uma Noites é a relação homem-mulher que se faz presente no palco através da sensualidade de Sherazade e da dicotomia fiel-infiel, que estão nas origens contos orientais. Cenas brilhantemente resolvidas como o assassinato das esposas, confirmam que para a criança não há assunto que não se possa discutir, tudo depende da forma como é contado ou encenado. A dramaturgia toma realmente o texto e o espetáculo em seu significado de obra de arte. E, sob esta perspectiva, tudo pode ser dito.