Cristiane Muñoz

Bate papo com Cristiane Muñoz

Com o intuito de gerar reflexões e novos entendimentos sobre questões como inclusão e acessibilidade, o CBTIJ/ASSITEJ Brasil convidou Paula Gotelip para um bate-papo com Cristiane Muñoz, ambas pesquisadoras na área do teatro para a infância e juventude. A publicação deste bate-papo e a publicação concomitante de um vídeo breve em nossas redes sociais são ações que buscam chamar a atenção para o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, dia 02 de abril.

Paula: Cris, primeiro gostaria de agradecer ao CBTIJ a oportunidade de levantar estas questões para que você responda, esclareça e nos oriente a pensar em um teatro e em práticas teatrais cada vez mais inclusivas. Falar em inclusão e acessibilidade é também falar das famílias das pessoas neurodiversas. Precisamos oferecer espaços de compartilhamento de arte, cultura e educação para as famílias de pessoas neurodivergentes. Gostaria que falasse um pouco sobre o assunto.

Cristiane: O tema da inclusão é mais complexo do que, em geral, as pessoas imaginam. É impossível pensar em Inclusão sem pensar os contextos. E o primeiro contexto em que insere-se qualquer pessoa e também aquelas neurodivergentes é o familiar. Sobre esse aspecto é inevitável dizer que a questão da inclusão perpassa obrigatoriamente pelo acesso à cidadania – representatividade, acesso à Educação, Saúde e Cultura, acessibilidade arquitetônica, de serviços, mobilidade, etc – que, por sua vez, num país de desigualdades extremas como o Brasil, é muito raro. Portanto, é imprescindível refletir também acerca da inclusão dessas famílias que, para além de terem realidades socioeconômicas díspares, ou seja, enquanto uma minoria tem alguma estrutura que permite o diagnóstico e a terapêutica adequada de alguém neurodivergente, a grande maioria está ou na linha economicamente instável da classe média ou na vulnerabilidade social. A chegada de uma pessoa autista, considerada pessoa com deficiência, demanda da família uma base estrutural minimamente estável, uma vez que essa pessoa tende, pela sua própria condição, a desestabilizar financeira e psicologicamente seus cuidadores e tutores. Portanto, se pretendemos falar sobre inclusão essas famílias precisam de suporte. Concordo plenamente que precisamos com urgência criar esses espaços de compartilhamento de Arte, Educação e Cultura, como também adaptar aqueles que já existem para receber pessoas neurodivergentes com necessidade de suporte e suas famílias. Adaptar espetáculos teatrais, shows, exposições, concertos, eventos para esse público também é uma necessidade emergencial.

Paula: Você é mãe de uma criança neurodivergente. Como as artes, em especial o teatro, contribuíram para o desenvolvimento da comunicação e social da Sofia, sua filha, dentro do espectro autista?

Cristiane: Quando Sophia nasceu eu era autônoma e precisei voltar a trabalhar aos seis meses dela. Minha filha nasceu prematura extrema: 27 semanas gestacionais, 32 centímetros e 975 gramas. Foram 97 dias de UTI, o pouco que eu havia juntado para ter alguma garantia nos primeiros meses após seu nascimento foi embora. Nunca tive babá nem pude ter o apoio dos meus pais, então, muitas vezes Sophia ia junto comigo pro trabalho. Dormiu nas coxias do Sesc Copacabana, Madureira, no Teatro Gláucio Gill, no Teatro do Planetário, etc. Desde o início da vida esteve rodeada de gente de Teatro, ou seja, de certa forma, devido ao nosso contexto ela foi obrigada a interagir com muitas pessoas. Essa interação era rodeada de luzes, música, efeitos sonoros, bonecos, atores, figurinos, todo um universo lúdico foi apresentado a ela desde os primeiros anos. Sophia é autista de nível 2 ou 3 de suporte, o que significa que precisa de muita ajuda para coisas que para a maioria das pessoas são corriqueiras, como ir ao banheiro, por exemplo. Minha filha é não verbal, não fala. No entanto, desenvolveu uma comunicação extremamente eficiente, é muito mais sociável que eu, por exemplo, que sou considerada autista de nível 1 de suporte. Acredito plenamente que o convívio direto com as Artes ajudou para que ela desenvolvesse o principal para qualquer via de comunicação: a vontade de comunicar-se!

Paula: Cada vez mais percebemos que os espetáculos e os espaços teatrais estão pensando e criando oportunidades que visem a inclusão e acessibilidade. Você percebe que os artistas e os espaços culturais incluem oportunidades para que pessoas dentro do espectro autista possam experimentar e vivenciar a arte? Quais medidas de você considera que sejam necessárias para a inclusão de autistas?

Cristiane: Sinceramente e infelizmente, ainda percebo mais as intenções do que um movimento em si. Acredito que devemos refletir sobre nossa identidade como artistas e nossos posicionamentos políticos, nosso fazer refletirá o que vier disso. E, quando digo que sinto a necessidade de um movimento, quero dizer que precisamos nos posicionar e exigir editais e políticas culturais com ações e proposições concretas de inclusão.

Alguns grupos, artistas e espaços culturais tentam refletir sobre ser fazer e ser cada vez mais inclusivos, mas ainda é raro ultrapassarmos a ideia de que uma rampa para pessoas com mobilidade reduzida e um intérprete de libras dão conta de incluir todas as pessoas com deficiência. No caso específico do autismo, existe de fato a necessidade de um esforço conjunto da equipe da obra em adaptar a iluminação, o áudio, oferecer mais estímulos sensoriais e menos verbais, aceitar que esse público muitas vezes não consegue ficar parado e precisa de acesso mais livre nos espaços de apresentação, precisa poder levantar-se e circular e talvez precise emitir sons. Nós artistas precisamos adaptar nosso material artístico e humano para lidar com isso sem que seja uma coisa forçada, tipo: “Ai, que saco, eles não prestam atenção.” Claro que prestam!

É necessário também um acordo com o espaço de apresentação para que haja o que eu chamo de “espaço de fuga e autorregulação”. Esse espaço fora do local de apresentação, mas próximo a ele, serve para que o/ a autista que sinta necessidade de sair da sala de apresentação, possa fazê-lo tranquilamente e depois voltar.

Ainda vamos levar um tempo, porque famílias com pessoas neurodivergentes e pessoas com deficiência não estão acostumadas a ser vem recebidas nesses lugares e simplesmente pararam de tentar. Desistem, para não ter estresse ou constrangimento. É um processo e precisa partir de um movimento.

Paula: Em sua pesquisa de doutorado você investiga a relação entre palhaçaria e pessoas dentro do espectro autista. Pode nos contar um pouco sobre essa interação? Como ela se estabelece?

Cristiane: Minha pesquisa chama-se Jogo e atuação na palhaçaria com crianças e adolescentes autistas- uma proposta de formação no contexto da Arte na Saúde Mental. Trata-se de uma investigação acerca de uma possível metodologia de formação para palhaços e palhaças atuarem junto a crianças e adolescentes autistas (entre 10 e 13 anos). A pesquisa aponta para uma interação facilitada por um treinamento sério, imprescindível e contínuo que une o trabalho com a pedagogia da máscara teatral, especificamente do nariz vermelho com exercícios, leituras e discussões sobre como funciona o cérebro do/ da autista e um trabalho de campo com crianças e adolescentes na faixa etária abordada. Palhaços/as e autistas reconhecem-se como vulneráveis, expostos, o que o olhar social chama de inapto ou ridículo. Existem muitos aspectos específicos da abordagem e do jogo, mas a pesquisa tem apontado excelentes resultados nessa interação.

Cristiane Muñoz é mestra e doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Cristiane foi recentemente indicada à primeira edição do Geesche Wartemann Emerging Scholar Award, prêmio concedido pela International Theatre for Young Audiences Research Network (ITYARN), rede mundial de pesquisadores. Desde 2020, Cristiane representa no Brasil a International Inclusive Arts Network (IIAN), rede mundial de teatro inclusivo. Ambas as redes são vinculadas à ASSITEJ Internacional.

Paula Gotelip é mestra e doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), onde desenvolve a pesquisa “Práticas Teatrais como Auxílio a Intervenção de Pessoas com Dislexia”.