Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 09.07.1999
Projeto do Calouste Gulbenkiahn volta a investir no teatro popular de inspiração circense
Melodrama para distinto público
Pelo segundo ano consecutivo, o circo invade o Teatro Gonzaguinha. A temporada que começa hoje e vai até dia primeiro, sempre às sextas, sábado e domingos, às 20 horas, traz de volta à cena os melodramas de picadeiro, projeto ousado do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, que mais uma vez investe no teatro popular para conquistar seu público. A função começa no foyer do teatro, onde estarão à mostra divertido os cartazes do circo teatro dos anos 40 e 50 e fotos dos autores pioneiros nessa arte teatral.
Cristiana Maia, responsável pelo projeto, diz que a ideia é mostrar logo ao público o que eles irão ver no palco: “esse é um projeto voltado para as camadas populares, com enredos envolventes. É para fã de melodrama e para quem nunca pisou no teatro. A nossa mostra de cartazes e fotos, com curadoria de Alice Viveiros de Castro, dá uma ideia do que o público ver a em cena. Dê mais interessante de estar com as fotos de Benjamim Oliveira, um palhaço negro, filho de escravos que nasceu em 1870, o precursor do teatro no circo, e as imagens de 1881 do pavilhão François, um francês que transformava o picadeiro no lago e apresentava a pantomima aquática, conta.
Se no foyer já está tudo resolvido, o palco não está menos animado ponto para a direção geral do evento foi convocada mais de uma vez a atriz Vic Militello que começou sua carreira, ainda criança, nos anos 40. No teatro pavilhão onde eram apresentados dramas, farsas e altas comédias pelas companhias itinerantes. Satisfeita com a qualidade do evento de 98, onde a Cia dos Atores de Laura e a Cia do Paraíso e as Oficinas de Criação do Calouste apresentaram os melodramas A Vida se Leva, O Mundo não me Quis e O Tigre, mas somente as quartas-feiras, a diretora encontrou seu público na classe artística e em alguns estudiosos do gênero.
Na seleta plateia ficou faltando o público comum: “Ano passado, fizemos os melodramas mais como peças arqueológicas e a classe artística nos prestigiou muito. Agora queremos atingir o público em geral, como era feito no teatro pavilhão. Os melodramas do circo representam o que as novelas são hoje em dia, tinha público certo e foi uma pena acabarem com esse gênero de teatro circo.”
Esse público não estava totalmente perdido para Vic. Se nos anos 40 e 50 os diretores e autores do teatro pavilhão copiavam das telas do cinema os diálogos para seus textos, a atriz, mesmo achando que falta as novelas mais dramaticidade, diz que obras como o Rei do Gado da Globo Louca Paixão, da Record ficariam ótimas se reproduzidos no picadeiro “Hoje em dia o ator faz muita análise do personagem, o ator popular deixa fluir. Outro dia me emocionei com a prisioneira que sai da cadeia na novela da Record. Era drama para chorar mesmo. E nos melodramas de picadeiro a gente faz assim mesmo.”
Reduzidos para apenas duas peças, a farsa A Morte do Cadáver e o drama as Rosas de Nossa Senhora – que ficaram em cartaz cada uma por duas semanas -. os melodramas de picadeiro apresentam ainda na nova versão ou entrosamento das companhias. Em a Morte do Cadáver estão em cena, dirigidos por Ernesto Piccolo, seus atores das oficinas de criação, mais alguns integrantes da Cia dos Atores de Laura e outros da Cia do Paraíso já Daniel Herz fica com seus atores da Cia dos Atores de Laura e com os da oficina de criação.
Os dois diretores se deliciam com as possibilidades do gênero, como diz Daniel Herz: “o melodrama é o fundamental para a formação do ator brasileiro, que é muito quente. Fiquei duas semanas em Londres vendo teatro e notei que eles são tecnicamente perfeitos, mas completamente frios com a plateia. Não é esse o tipo de relação que o nosso ator quer com o público, é a entrega de amor total. Tudo isso veio do circo, queremos fazer espetáculos para o público, não para juris especializados.”
Ernesto Piccolo, e aceita a crítica de que como diretor é o mais charmoso dos tiranos, está agora as voltas com elenco misto, tendo que respeitar o tempo dos “novos” atores e o gênero cômico que escolheu: “fiquei com uma comédia de costumes, mais nada na linha Martins Pena. É uma comédia com tempo diferente, as pausas são mais dramáticas e menos ligeiras.”
Sobre essa mistura de estilos, Xando Graça, ator de a Morte do Cadáver, diz que pode ter tudo isso, mas o importante é a retomada com o Teatro popular: “chega de psicologismos, nesse gênero as coisas são o que são. O interessante nessa forma teatral é poder estilizar a verdade. acho que nesse projeto os diretores vão poder brincar de exagerar, mas sempre mantendo o estilo do picadeiro.”
A Morte do Cadáver, farsa de picadeiro com texto de Gilberto Fernandes, o Gibe, ator sinistro das pegadinhas do topa tudo por dinheiro e cunhado de Vic. É uma história de quiproquós, explica Ernesto Piccolo: “é uma comédia de encontros e desencontros. O marido está armando de se divertir em outras bandas e manda para ele mesmo um telegrama avisando da morte de um tio. A mulher vê o carimbo local do correio e resolve desmascarar o farsante, mandando outro telegrama a confusão de encontros envolve a compra de um cadáver e, posteriormente seu assassinato. É surrealismo puro”.
Já as Rosas de Nossa Senhora é o melodrama lacrimoso de Celestino Sobral, como explica Daniel Herz: “é a história de um ingênuo campônio que se apaixona pela filha do capataz, que se apaixona pelo filho do senhor de engenho. Esse rapaz tão puro em seus sentimentos é manipulado por todos o seu amor. No final apoteótico ele se encontra com o coração de nossa senhora, que sangra na última cena. Uma característica dos melodramas. Apoteose, o final catártico, onde o público se identifica com uma dor maior que a sua”.
E no teatro que se reinventa, não ficou faltando nem a famosa figura do ponto (profissional que passa o texto para os atores inferno). Para exercer esse papel, muito usado nas companhias de repertório do começo do século, a atriz Heldi Lopes pesquisou o tipo na biografia do autor Leopoldo Fróes: “o ponto às vezes podia mudar o rumo de uma peça, principalmente quando os atores não tinham a menor ideia do que eu dizer em cena. Eu estou aqui atenta, fico dentro da minha caixinha e só apareço no final para agradecer. Morro de calor, mas vale a pena”.