As perguntas foram elaboradas pela Dra. Luciana Comin (*), sobre a dissertação de Paula Gotelip (**)
Luciana Comin: O Grupo Comédia Cearense tem 61 anos de existência e, ao longo desses anos, realizou espetáculos para crianças que ganharam remontagens e novas versões. Há que se considerar que dos anos 60 para cá, o teatro para crianças vem sofrendo mudanças no que diz respeito à dramaturgia, à encenação e signos visuais. Em um trecho, você chega a citar um comentário de Hiroldo, filho do casal fundador, sobre a trilha sonora de um dos espetáculos, que em sua visão, já merecia uma certa atualização. De que forma você acha que o grupo acompanhou essas mudanças? Há uma preocupação na escolha de novos textos? Os espetáculos de repertório sofrem atualizações na encenação, interpretação dos atores, cenários, figurinos?
Acredito que só a análise da história do teatro para crianças em paralelo com a história dessa companhia já seria uma tese!
Paula Gotelip: Pois é, a Comédia Cearense ganhou um lugar muito especial no meu coração e nas minha falas. O trabalho que o grupo desenvolveu e desenvolve seja no teatro adulto ou para infância, na opereta e também na memória é algo impressionante e que precisa ser estudado. Fiquei muito dividida no meu doutorado, pois gostaria muito de seguir estudando a trajetória do grupo paralelo a história do teatro brasileiro. Quem sabe não faço dois doutorados!
Durante a pesquisa e acompanhando alguns registros de fotografias e gravações, até mesmo na entrevista realizada com Haroldo Serra, Hiramisa Serra e Hiroldo Serra percebi que sempre houve uma busca e uma preocupação em se manter atualizado, vide a própria trajetória do Haroldo Serra no teatro, o grupo busca novos atores e posterior a passagem deles pelos espetáculos da Comédia Cearense muitos conseguiram visibilidade nacional. O trabalho desenvolvido por eles coloca em um mesmo espetáculo atores iniciantes e atores com uma jornada profissional consagrada. Há alguns documentários na internet na qual demostra a importância do grupo na formação de uma nova geração de atores.
Existe uma preocupação com a escolha dos textos, na escolha dos autores (no momento da escrita da dissertação eles haviam realizados 180 montagens, de 97 autores diferentes). O figurino sempre foi outro ponto muito importante para o grupo, eles investigam, contratam profissionais, buscam novos materiais e possibilidades. Olha, estou escrevendo estas linhas, mas não tem como mensurar a grandeza do acervo do grupo, recomendo muito que em algum momento que estiverem em Fortaleza que façam uma visita à Casa da Comédia, que é um pedaço do acervo.
Destaco ainda o trabalho desenvolvido por Hiroldo Serra como autor e adaptador. Hiroldo atua como professor de teatro no ensino formal e não formal, e publicou livros com adaptações de textos para serem trabalhados em sala de aula. Este contato de Hiroldo com as crianças e jovens no seu cotidiano corrobora para que o grupo mantenha uma atualização constante na linguagem.
Luciana Comin: Em outro momento, os artistas da Comédia Cearense falam bastante sobre as referências utilizadas em suas obras para garantir a atenção e participação das crianças. Por exemplo, nas montagens dos contos de fadas, o momento em que decidiram trabalhar com menos referências aos contos originais e mais referências ligadas aos desenhos da Disney. Gostaria de saber um pouco mais sobre o critério do grupo ao adotar tais referências e como se dá esse diálogo com as crianças durante os espetáculos.
Paula Gotelip: Sobre as adaptações é importante falar de um dos trabalhos do grupo intitulado A lenda do sapatinho de cristal, adaptação de Emiliano Queiroz a partir do conto original, foi encenado pelo grupo em 1958, 1966 e 1975, sendo a primeira e a terceira montagem dirigidas por Haroldo Serra e a segunda montagem dirigida por B. De Paiva. O mesmo conto foi adaptado por Walden Luiz e encenado em 1991 e 1996 e nestes sob o título de Cinderela. Durante muitos anos o grupo realizou adaptações a partir dos contos originais e não a partir dos desenhos. A produção da Disney passa a ser uma referência quanto a alteração de linguagem, um necessidade de nova montagem. Mas, na última montagem para crianças do grupo, eles criaram um texto a partir da cultura popular.
A presença das crianças na cena é uma constante no grupo, seja porque eram filhos do Haroldo e da Hiramisa, ou porque eram sobrinhos. O teatro para crianças sempre caminhou junto ao teatro com crianças. Em alguns momentos os textos propiciavam esta interação, em outros partiam de estímulos da cena e a criança se via no palco construindo junto.
Eu presenciei isso em um espetáculo que acompanhei. O filho caçula do Hiroldo Serra viu a mãe e o pai atuando e em determinado momento entrou no palco e começou a participar, menos de um minuto depois havia outras crianças. Os atores não interromperam a cena, pelo contrário, deram sequência ao espetáculo com a participação das crianças. Jogaram junto. Mas outros trabalhos partiram da participação das crianças na cena, as crianças foram preparadas para atuar, o que é muito diferente de uma montagem de final de curso.
Luciana Comin: Ainda é muito comum, e pude observar isso em alguns relatos que você trouxe também, artistas considerarem o teatro para crianças como uma “porta de entrada”. Um tipo de teatro que se faz no início da carreira, porque é “mais fácil” ou porque existe uma possibilidade de retorno financeiro mais garantida. A Cia Experimentus parece ter começado a trabalhar com crianças dentro da perspectiva do retorno financeiro, mas encontraram, na medida em que criavam, motivação artística nesse universo, a ponto de afirmarem não fazerem concessões para tornar o trabalho mais “palatável” ou “comercial”. Pensando na experiência desse grupo, como você acha possível equalizar a necessidade de retorno financeiro e a experimentação artística?
Paula Gotelip: Olha, sinceramente acho que isso parte de um comprometimento com a infância. Em momento algum a Cia Experimentus comprometeu a estética dos trabalhos realizados para atrair público. O trabalho de preparação de ator, a investigação dos textos, o trabalho vocal é o mesmo em todos os espetáculos do grupo. Há um envolvimento dos artistas com a arte para crianças, há investigação, há respeito pela infância. Percebe-se uma preocupação com as várias infâncias inclusive pela escolha de repertório que algumas vezes considera temas tabus.
Acompanhando o trabalho dos três grupos que compuseram minha pesquisa: a Comédia Cearense, o Grupo Atrás do Pano e a Cia. Experimentus, e tantos outros, acredito que é possível um equilíbrio. Um outro ponto que percebi que a trajetória, trabalhando com teatro para infância há muitos anos, ajuda nesta conquista, pois houve uma formação de público. Eles contribuíram para formar uma geração, e esta geração já tem filhos e leva os filhos para assistir os espetáculos dos grupos.
Luciana Comin: Depois de investigar mais a fundo a rotina de trabalho e as engrenagens que fazem esses três grupos funcionarem, como você acha que a pandemia pode tê-los afetado? Dentro da estrutura que criaram, você consegue pensar em alternativas para que eles mantenham seus trabalhos?
Paula Gotelip: Pelo que tenho acompanhado dos grupos eles foram afetados pela pandemia. É triste isso, as apresentações e aulas canceladas. No caso dos três grupos, com longa trajetória, há uma estrutura consolidada, em alguns dos grupos parcerias de longa data através de fomento com lei de incentivo ou parcerias privadas. Todos os artistas envolvidos possuem outros trabalhos e acredito que nesse momento, estas outras atividades devem ser a principal fonte de renda.
Luciana Comin: Gostaria que você comentasse a seguinte afirmação:
“Um teatro pensado para crianças requer o acesso ao universo infantil, em seus contextos, conflitos, necessidades e sensibilidades; o que pode envolver também pensar na criança como escolar, com as parcerias entre secretarias de educação, diretamente com as escolas e como essas podem ser possíveis preservando o conceito de criação dos trabalhos.”.
Essa afirmação me remeteu a uma discussão sobre como a criança ainda é vista e colocada em espaços limitantes. No quanto idealizamos a criança sempre no ambiente escolar, como se este fosse o seu cercado e ela não existisse fora dali. No entanto, o universo infantil é o nosso universo. Ele compreende todos os lugares e todos os contextos (bons e maus) vividos por elas, bem como as suas relações com os adultos. Ao fazer a afirmação acima, você pensa não ser possível um teatro para as famílias que possa dialogar com o adulto e a criança, sem que as últimas estejam presas em contextos idealizados por nós, adultos?
Paula Gotelip: Bem, eu acredito que é possível espetáculos para todos, deste que ao conceber um trabalho a criança seja considerada plateia. Compreender contexto é diferente de ter maturidade para lidar com tanta adversidade sem danos. Me incomoda ver espetáculo com classificação livre e cenas nas quais muitos adultos tem dificuldade de assimilar, imagina isso para uma criança que vem de um contexto familiar e social conturbado? Minha filha, hoje com dez anos, me acompanhou em diversos espetáculos mesmo com classificação indicativa, pois há um cuidado da minha parte em ajuda-la na construção de significantes, não uma orientação em como ela deve ler a cena, mas contribuir para que nela seja despertada a construção de saber e correlações a partir dos signos da cena. Visto que temos uma gama de infâncias diferentes, nas quais alguns signos do nosso cotidiano são lidos e interpretados de maneira equivocada, penso, que cabe a nós, artistas pensar na criança como plateia em trabalhos ditos livres e pensar na criança como espectadora e não como educanda.
(*) Participante do Grupo TECA Teatro e Outras Artes, e organizadora do Núcleo Regional CBTIJ em Salvador/BA
(**) A dissertação pode ser encontrado em nosso site no setor de Pesquisas Acadêmicas.