O Embarque de Noé: sem salvação para os Protozímios. Foto: Antonio Andrade

Crítica publicada na Veja Rio
Por Marinho Azevedo – Rio de Janeiro – 06.06.1973

Barra

A Volta da Arca

O Embarque de Noé, peça infantil de Maria Clara Machado; direção de Maria Clara Machado; com Germano Filho e Martha Rosman, Teatro Tablado, Rio.

Dezesseis anos depois de se salvar, pela primeira vez, do dilúvio ordenado por Jeová e organizado por Maria Clara Machado, o patriarca bíblico volta aos palcos transformado em musical.

Uma das primeiras peças infantis da autora, O Embarque de Noé, está, certamente, entre as melhores. A história é a que todos conhecem, com acréscimos do imprevisível humor e criatividade que fizeram Maria Clara famosa. No caso, Noé (Germano Filho) ganha uma mulher (Martha Rosman). E os personagens bíblicos recebem o acréscimo de um casal de grã-finos, vestidos a rigor (Bernardo Jablonski e Vânia Velloso Borges), que tiveram preguiça de construir sua própria arca e tentam subornar Cam (Paulo Reis) a fim de entrar na embarcação de Noé, como clandestinos. Para facilitar a manobra, matam um casal de animais e disfarçam-se de Protozímios Pintados.

Numa peça infantil, porém, o mal nunca triunfa. Razão que faz o cruel casal morrer afogado e os estranhos animais desaparecerem do rol das espécies conhecidas.

Só reprises – os atores da atual versão do Embarque nada têm a acrescentar à qualidade da peça. Com exceção de Germano Filho, Martha Rosman e Ronald Fucs, que, em seu papel de melancólico pinguim sem companheira, se limita a expressar a tristeza de sua condição de celibatário condenado ao afogamento com um quase imperceptível levantar de ombros.

Também não há destaques na música de Ubirajara Cabral, embora, sem dúvida, ela contribua para alegrar o espetáculo. Assim, a maior novidade do novo “Noé” fica sendo o cenário de Joel de Carvalho: um belo barco de madeira e metal que, além de plasticamente bem resolvido, se adapta com engenho às exigências da ação.

Como enredo, em todo caso, um bom exemplo da melhor fase da carreira de Maria Clara. O Embarque é quase uma síntese das qualidades que permitiram que ela fosse a renovadora do teatro infantil brasileiro. A história bíblica não perde nada de sua força legendária, e ainda se enriquece de mil pequenas observações da banalidade do cotidiano.

Dirigido a um público de crianças e pretendendo que elas se emocionem, o texto é bastante eficaz a ponto de a plateia invectivar os personagens maus e tentar ajudar os bons. Ao mesmo tempo, os adultos se aproveitam de uma vasta reserva de humor e soluções teatrais inteligentes, como a da delicada mímica do pinguim.

Houve quem criticasse o Tablado por ter insistido, ultimamente, em reapresentar peças antigas de Maria Clara. No caso de Noé, a distância, no tempo, da estreia e a qualidade do texto justificam a reapresentação. Mas não deixa de ser melancólico constatar que, nos últimos anos, suas melhores montagens tenham sido as reprises.