Crítica Publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Yan Michalski – Rio de Janeiro – 1980
As simpáticas inutilidades de Tardieu
Em vários sentidos, Uma Peça por Outra é uma agradável surpresa. Um grupo novo, que não hesita em incluir a palavra amador no seu nome (TAPA – Teatro Amador Produções Artísticas), composta de gente praticamente desconhecida, e que até agora só tinha realizado um trabalho de teatro infantil, apresenta um espetáculo tabladianamente bem acabado, charmoso, produzido com bom gosto e uma sofisticação – sobretudo no guarda-roupa – rara em produções congêneres, espirituoso, realizado com positiva preocupação de estilo.
Os pequenos textos do Teatro de Câmara de Jean Tardieu já serviram, há alguns anos, a um bom espetáculo do Théâtre de l’Alliance Française, apresentado em francês e português. O TAPA ampliou o repertório de esquetes, costurou-o com pequenos comentários de ligação, enfeitou-o com algumas canções. Do conjunto do trabalho surge, nítida, a personalidade de Tardieu: um caustico gozador, que usa o teatro para questionar o próprio teatro, satirizando os seus recursos e estruturas. Cada minipeça do ciclo é uma elegante mas implacável paródia de uma determinada convenção dramática, que demonstra o vazio e a mentira que podem existir por trás do encanto do jogo teatral. É assim que os personagens de Só Eles o Sabem desenvolvem uma complexa ação dramática cujas motivações e lógica nunca são reveladas ao público; os de Um Gesto por Outro estão reunidos numa festa cujo código gestual é absurdo em relação àquele ao qual estamos acostumados, mas nem por isso menos coerente; e os de Uma Palavra por Outra nos contam, com palavras inexistentes, mas adequadamente orquestradas, uma pequena história que não fica menos clara do que se tivesse sido narrada com palavras conhecidas de todos. Como Henri Lagrave observou corretamente, a obra de Tardieu não é o reflexo de uma verdadeira visão do mundo, como a dos seus contemporâneos Ionesco, Beckett; aliás, ela nem se ocupa do mundo, ocupa-se única e exclusivamente de teatro. Mas, à semelhança de Ionesco e Beckett, Tardieu empenha-se em desmistificar o próprio teatro, fazendo explodir o artificialismo das suas convenções. Só que este aspecto antiteatro de Ionesco e Beckett é apenas um meio para a demonstração de absurdos bem mais amplos, enquanto Tardieu ele constitui um fim em si – pequeno e limitado demais para tornar-se verdadeiramente fascinante.
Em todo caso, a direção de Eduardo Tolentino de Araújo, ajudada pela direção musical de Beto Quartin e pela direção musical de Beto Qaurtin e pelos bons figurinos de Lola Tolentino, manipula a matéria-prima do texto com considerável capacidade de transformar em eficientes imagens cênicas o parti-pris satírico do autor. Alguns exibicionismos desnecessários nas às vezes desnecessárias canções, alguns episódios que poderiam ser cortados, alguns naturais deslizes técnicos em fragmentos que dependem essencialmente de virtuosismo interpretativo, como a engenhosa Conversação Sinfonieta, não deslustram o acerto geral da iniciativa, cuja nitidez formal é bem distante da auto complacência messiânica que caracteriza o trabalho da maioria dos nossos grupos jovens. E o elenco sai-se do desafio com uma segurança e precisão bastante surpreendentes, destacando-se a gama de recursos, a elegância e a inteligência interpretativa de Clarisse Derzié e a espirituosa autoridade do apresentador Charles Myara.
Dito isto, confesso a minha perplexidade: o que pode levar hoje um grupo de jovens brasileiros a investir em Tardieu? Não sou, em absoluto, contra a importação de obras estrangeiras; mas esta aqui abusa do direito de estar alheia à nossa vivência e realidade, e condicionada por uma maneira exclusivamente francesa de encarar as cosias. Mesmo o seu lado crítica teatral não nos interessa, pois parte de uma reação ao artificialismo de certas convenções do teatro francês que não afetam, positivamente, o nosso teatro. O grupo está vagamente consciente do problema, tanto assim que faz piadas sobre o lado colonizado do seu espetáculo, e às vezes brinca à custa de Tardieu, mais do que com Tardieu. Mas mesmo assim o seu trabalho não deixa de ser um luxo cultural que pouco de útil tem a dizer ao público brasileiro. Aguardemos o próximo programa do TAPA, esperando que o grupo descubra acesso a obras menos ociosas em relação ao contexto no qual vive e trabalha.