Matéria publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 03.01.2015
Um ano de grandes textos para crianças
Uma retrospectiva dos melhores espetáculos infantis de 2014, sob a ótica exclusiva da dramaturgia
Para o teatro feito para crianças, foi um ano muito produtivo esse que acaba de ir embora. Com uma qualidade artística acima da média. Os poucos e louváveis prêmios que existem para reconhecimento desse setor, dos quais participo como jurado, não deram conta de abarcar uma gama tão boa de concorrentes, deixando gente importante de fora. Se isso valoriza ainda mais os vencedores, por outro lado evidencia o quanto premiações são e serão sempre subjetivas e limitantes, embora de uma importância fundamental, sobretudo em um ramo artístico que ainda sofre tanto preconceito e ainda não conquistou o espaço merecido nas mídias.
Reli todas as críticas que escrevi em 2014 e faço agora um balanço do que mais me chamou a atenção durante todo o ano passado no teatro infantil produzido e apresentado na cidade de São Paulo. Escolhi fazer esse balanço sob a ótica dos textos, pois a riqueza de adaptações que desfilaram pelos palcos foi notável. Que me perdoem todos os diretores, grandes maestros de espetáculos primorosos, mas hoje vou falar dos autores.
Logo nos primeiros meses do ano, fiquei encantado com a adaptação de Rapunzel, feita pela dupla Carla Candiotto e Alexandra Golik, da Cia. Le Plat Du Jour. As brincadeiras nonsense com as palavras, os trocadilhos divertidos, as frases de efeito humorístico, os nomes hilários dos personagens– todo o texto, enfim, segurava o interesse tanto do público mirim quanto do adulto.
Em O Jovem Príncipe e a Verdade, baseando-se em livro do francês Jean-Claude Carrière, a tradutora, adaptadora e atriz Amanda Banffy foi inteligente em manter os enigmas e as incertezas de uma história baseada na incansável busca pelo que seja a verdade. Teor altamente filosófico também foi o que vimos em Mania de Explicação. Adriana Falcão transformou suas mágicas palavras em peça de teatro, em parceria com Luiz Estellita Lins. A solução encontrada pelos adaptadores para levar ao palco um livro sem diálogos nem situações concretas, com conteúdo altamente poético, foi uma solução bem esperta. Também baseado em livro de Adriana Falcão, Sete Histórias para Contar, do grupo Abigail Conta Mais de Mil, teve sua adaptação feita com muita graça e competência por Maristela Chelala. Ela teve a feliz ideia de ‘costurar’ os enredos dos sete contos narrados no livro em uma trama que se passa no cotidiano de duas garotas sapecas.
Já no primeiro minuto de texto de O Rinoceronte, a Lua e o Tonel, revelava-se uma força e um encantamento que durariam até o fim da peça, e sempre num crescendo de criatividade. O diretor e adaptador Ramiro Silveira foi certeiro ao selecionar três contos do escritor alemão Peter Bichsel. Depois, foi a vez de eu me emocionar com Oscar Wilde, lindamente adaptado por Gustavo Bicalho, em O Gigante Egoísta. Havia uma história dentro da história, enriquecendo as camadas da narração do conto com o recurso da metalinguagem.
Primeiro infantil da trajetória da Cia. São Jorge de Variedades, o espetáculo de rua São Jorge Menino privilegiava um clima ritualístico de celebração. A eficiente dramaturgia foi assinada por ninguém menos do que o veteraníssimo Ilo Krugli, do Grupo Ventoforte. Ele também foi responsável, em 2014, por uma vigorosa adaptação de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para nos levar às lágrimas: Migrações e Itinerâncias de Baleia e Graciliano.
Paulo Rogério Lopes fez lindas estripulias dramatúrgicas no ano passado. Destaco três. Em Classificados, com La Mínima, ele falou do fim dos bichos de verdade como atrações de circo e caprichou nos números de plateia (o leão sonâmbulo vai em direção ao público), de interatividade (“Onde ele foi? Pra lá ou pra cá?) e até nas brincadeiras musicais (com ótima canção adaptada de Luiz Gonzaga: “Que diferença do animal o homem tem?”). Em As Três Penas do Rabo do Grifo, Lopes se uniu à atriz e contadora de histórias Ana Luiza Lacombe e, juntos, não tiveram pudores em evocar o amor e a generosidade típicos de uma relação avó-mãe-neta. O resultado era lindo e delicado. E em Procurando Luiz, o dramaturgo usou a história e as canções de Gonzagão para compor um lindo painel sobre a amizade entre dois homens.
Em Círculo das Baleias, com a Pia Fraus, Beto Andreetta, um dos veteranos da companhia, assinou concepção e texto do espetáculo, tendo antes viajado até Abrolhos, na Bahia, para estudar a migração da baleia mais brasileira do mundo, a jubarte. A trama criada por ele ficou bem construída, envolvente, engraçada e emocionante, ou seja, uma fábula feita de bons ingredientes, outra que prendeu a atenção de adultos, inclusive. Beto também se envolveu na dramaturgia de Intolerância, para o projeto Buzum. O trio composto por ele, Miguel Vellinho e Mariane Gutierrez criou um dos mais criativos textos que já vi sobre um tema batido, o bullying.
Com concepção de Vanessa Bruno e apoio dramatúrgico de Michelle Ferreira, Brincar de Pensar foi criado a partir de oito contos e crônicas de Clarice Lispector, publicados no extinto Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Os textos bem escolhidos marcavam uma inquietação quase pueril da escritora, retratando assim com competência o agitado universo de questionamentos das crianças. Agora Eu Era o Herói, escrito e dirigido pelo estreante Rodrigo Audi, tinha um texto forte, pleno de simbologias, diálogos bem construídos, demonstrando bastante preparo e um cuidado especial com a síntese. Nada do enredo podia ser encarado de forma realista.
Para marcar dos 20 anos da dupla musical Palavra Cantada, Marília Toledo criou uma ágil dramaturgia para o espetáculo de bonecos Palavra Cantada Sem Pé Nem Cabeça. O texto girava em torno de 17 canções do repertório consagrado da dupla, como Rato, Sopa, Menina Moleca e Criança Não Trabalha. Por sua vez, Henrique Sitchin, veterano da Cia. Truks de Animação, mais uma vez brilhou com sua dramaturgia altamente poética e quase sem palavras. Foram dois espetáculos encantadores: Construtório e Última Notícia.
Também foi ótima a homenagem do grupo A Digna Companhia ao ‘street artist’ britânico Banksy, em Denise Desenha nas Paredes. O texto eficiente de Victor Nóvoa mostrava que desenhar não tem sentido se não brotar do coração. Um dos melhores do ano no quesito ‘altamente recomendado para escolas’. Nessa linha, entram também A Caixa Encantada, da cia. Paideia, em que o autor Amauri Falsetti fez séria crítica às atuais instituições de ensino, que mantém bibliotecas inoperantes, espaços que viraram verdadeiros cantinhos sinistros, mofados e desocupados dentro da estrutura escolar, e O Lugar de Onde se Vê, com dramaturgia de Lara Hassum e Paulo Marcos. Há tempos eu não via um texto para crianças tão bom sobre o difícil tema da iniciação teatral.
Ângelo Brandini, eleito na semana passada por este colunista como o ‘Sr. Talento 2014’ no teatro infantil paulistano, buscou inspiração no conto Divertimento Forçado, do húngaro Jókái Mor, para escrever o texto do espetáculo de rua A Condessa e o Bandoleiro. A adaptação, sob encomenda para a cia. Barracão Cultural, foi hábil em trazer a trama para o universo brasileiro de danças e canções populares regionais. Para seu grupo, o Vagalum Tum Tum, Brandini adaptou com incrível criatividade a tragédia Macbeth, de Shakespeare, que virou Bruxas da Escócia e arrebatou público e crítica.
Divertidíssima foi a adaptação do Dom Quixote, de Cervantes, feita pela Fabulosa Trupe de Variedades, com dramaturgia de Nereu Afonso. A Saga de Dom Caixote valorizou o clássico dos clássicos, considerado o maior romance de todos os tempos, sem ser reverente demais na adaptação, mas também sem fugir em nenhum momento da essência dessa encantadora história de um homem delirante e fantasioso e seu fiel escudeiro, aqui chamado de Sancho Manco. Enquanto isso, o grupo As Graças fez coletivamente a dramaturgia delicadíssima de Bessarábia – Uma Feira de Histórias, criada em torno de marionetes restauradas.
Amor de pai por filho. Tivemos também uma dramaturgia eficiente voltada para esse tema do afeto paternal. Pamela Duncan e Rogério Favoretto valorizaram ainda mais a relação entre criador e criatura, na versão de Pinocchio, com o grupo A Peste. O velho Geppetto e seu boneco nos encantaram, com trama inspirada na Commedia Dell’Arte. Apresentado na época das eleições presidenciais, Pinocchio também foi útil como fábula sobre o acúmulo de mentiras nocivas, fazendo dobradinha com outro espetáculo em cartaz na época, Rei Frouxo, Rei Posto, que recuperava o texto do saudoso dramaturgo Perito Monteiro para falar do mau uso do poder pelos governantes.
E por falar em disputa de poder, o único livro infantil escrito e ilustrado pelo italiano Dino Buzzatti (1906-1972) virou o esplendoroso espetáculo A Famosa Invasão dos Ursos Na Sicília. As atrizes da Cia. Delas e a diretora Carla Candiotto assinaram juntas a adaptação desta fábula que também batia na tecla da superação de limites, tema importante na formação das crianças. E mais sobre o poder: O Rei e a Coroa Enfeitiçada, com movimentado texto de Rogério Falabella, falava de um duque que queria usurpar o trono de seu irmão, mas o rei acabava salvo por um desses objetos mágicos que enriquecem as fábulas infantis quando bem utilizados pelos autores.
Mais maravilhas da arte de saber adaptar para o teatro as histórias clássicas e os textos literários de diversas épocas? Sim, tivemos muitos mais casos, além de todos os que já foram citados. O Sonho de Jerônimo baseou-se em uma lenda antiga, O Homem que Vai atrás do seu Sonho, registrada há 750 anos pelo poeta persa Jalal ad-Din Rumi. O autor da adaptação do poema persa é Sean Taylor, nascido na Inglaterra e que sempre foi fã da versão britânica desta lenda, The Pedlar of Swaffham. Para criar o texto, ele contou com o processo colaborativo de todo elenco e direção.
Outra excelente adaptação teatral foi a do livro de Eva Furnari Felpo Filva, com Marcelo Romagnoli à frente do instigante texto, que fazia alusões graciosas às variadas formas de expressão escrita, como carta, poema, fábula, bula de remédio, receita de bolo e autobiografia, dano um toque deliciosamente retrô ao espetáculo. O texto de Romagnoli era cuidadoso e explicava ludicamente ao público mirim da geração atual o que é um cartão postal, por exemplo. O clássico Cinderela ganhou no fim do ano uma versão bem engraçada de Isser Korik, em que dois atores fazem 12 personagens, trocando de roupa de forma ágil e curiosa para o público mirim. Outro clássico infantil, Peter Pan, ganhou uma versão potente, do grupo O Pequeno Teatro de Torneado, rebatizado de Peter em Fúria. A ideia do dramaturgo William Costa Lima foi aproximar por analogias os personagens reais de uma favela/comunidade aos personagens do famoso livro de J.M. Barrie. Ele pesquisou durante três anos uma forma “estética e ética” de falar de temas como preconceito, segregação, violência e tantos outros tópicos sociais latentes em comunidades periféricas brasileiras. Foi lindo.