(INFORMAÇÕES DO PROGRAMA)
(Capa)
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Culturas
CECÍLIA CENTENÁRIA
(Interior)
O Centenário de Cecília Meireles
Cecília Meireles, que deixou um legado cultural da maior importância o país, se viva fosse, estaria completando 100 anos neste mês de novembro. Para homenagear o centenário da escritora, a Diretoria de Bibliotecas do Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural está realizando uma programação com o Grupo Repertório, formada por Maria Pompeu, Amaury de Lima e Márcia Bloch, contando prova e verso de Cecília.
O roteiro incluiu, entre outros, os poemas Desenho, Beira Mar, Estripe e O Motivo da Rosa; as crônicas Escola de Bem-te-vis, A Arte de ser Feliz e Camelô Caprichado; as poesias infantis, A Língua do Nhem e Menino Azul, além de momentos do Romanceiro da Infância, interligados por referências biográficas, trechos de entrevistas e curiosidades sobre a personalidade de Cecília Meireles.
Dez bibliotecas populares, de Botafogo a Campo Grande, passando pelos bairros do Leblon, Glória, Gamboa, Méier, Grajaú, Jacarepaguá e Ilha do Governador, estarão apresentando o espetáculo com entrada franca as partir de 4 de setembro, até o dia 7 de novembro, data do Centenário. O encerramento será Biblioteca de Jacarepaguá, batizada com o nome de Cecília Meireles.
Apresentações
Setembro
Dia 04: às 14h – Biblioteca Popular de Botafogo, Rua Farani, 53
Dia 18: às 15h – Biblioteca Popular de Campo Grande, Praça Thelmo Gonçalvez s/nº
Dia 19: às 15h – Biblioteca Popular da Glória, Rua da Glória, 214 2º andar
Dia 31: às 15h – Biblioteca Popular de Irajá, Rua Monsenhor Feliz, 512
Outubro
Dia 03: às 15h – Biblioteca Popular do Grajaú – Rua José Vicente, 55
Dia 10: às 15h – Biblioteca Popular do Méier – Rua Castro Alves, 155
Dia 17: às 15h – Biblioteca Popular da Ilha do Governador – Pça. Danaides, s/nº – Cocotá
Dia 24: às 15h – Biblioteca Popular do Leblon – Rua Bartolomeu Mitre, 1.297
Dia 31: às 15h – Biblioteca Popular de Gamboa – Rua Pedro Ernesto, 80
Novembro
Dia 07: às 15h – Biblioteca Popular de Jacarepaguá, Rua Dr. Bernardino, 218 – Pça. Seca
Maria Pompeu
Amaury de Lima
Márcia Bloch
(INFORMAÇÕES DO PROGRAMA)
(Capa)
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Educação
Departamento Geral de Educação
Diretoria de Educação Fundamental
CECÍLIA CENTENÁRIA
Coletânea
(Logo) Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / Secretaria de Educação
Desenho de Cecília Meireles, desenho de Apard Szènes
(Página 01)
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
César Maia
Secretaria Municipal de Educação
Sonia Maria Corrêa Mograbi
Departamento Geral de Educação
Sonia Maltez Fernandez
Diretoria de Educação Fundamental
Leila da Rocha Cerqueira
(Página 02)
Em comemoração ao centenário de nascimento da poeta Cecília Meireles a Secretaria Municipal de Educação ofereceu a dez escolas da Rede Pública em espetáculo onde atrizes “contam”, em prosa e em verso de suas obras mais representativas.
O Grupo Repertório – Maria Pompeu, Márcia Bloch e Amaury de Lima – organizou o espetáculo Cecília Centenária cujo roteiro inclui, entre outros, os poemas Desenho, Beira Mar, Estripe e O Motivo da Rosa; as crônicas Escolas de Bentevis, A Arte de Ser Feliz e Camelô Caprichado; as poesias infantis A Língua do Nhem, Menino Azul e momentos do Romanceiro da Inconfidência, interligados por referências biográficas, trechos e entrevistas e curiosidades sobre a personalidade de Cecília Meireles.
Professor, esperamos que aproveite o espetáculo enriquecido suas possibilidades s trabalhe com seus alunos os textos que fizemos questão de registrar.
Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2001
E/DGED/DEF
(Página 03)
Fragmento de Ilha de Nanja
(in Ilusões do Mundo)
Na ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso. Lá ninguém celebra o Natal como o aniversário do Menino Jesus, mas sim como o verdadeiro dia do seu nascimento. Todos os anos o Menino Jesus nasce, naquela data, com nascem no horizonte, todos os dias e todas as noites, o sol e a lua e as estrelas e os planetas…. Na Ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando pela chegada do Natal. Pelo Natal, todos vestem uma roupinha nova – mas uma roupinha barata, pois ninguém é pobre – apenas decoro de participar de uma festa que eles acham ser a maior da humanidade. Além da roupinha nova, melhora um pouco a janta, porque nós, humanos quase sempre associamos à alegria da alma um certo bem-estar físico, geralmente representado por um pouco de doce e um pouco de vinho. Tudo, porém moderadamente, pois essa gente da ilha do Nanja é muito sóbria. Durante o Natal, na ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho – antes, todos se saúdam com grande cortesia, e uns dizem e outros respondem no mesmo tom celestial: “Boas Festas! Boas Festas!” E ninguém pede contribuições especiais, nem abonos nem presentes. Ninguém pede nada. Mas todos dão qualquer coisa, uns mais, outros menos, porque todos se sentem felizes, e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar uma flor, um pintinho, um caramujo, um peixe – trata-se de uma ilha com praias e pescadores! – uma cestinha de ovos, um queijo, um pote de mel… Há mesmo quem dê um carneirinho, um pombo, um verso! Foi lá que me ofereceram, certa vez, um raio de sol! É um grande consolo possuir-se a Ilha do Nanja, uma ilha que não se vê no mapa, mas que descansa tranquilamente no meio do oceano, do vasto oceano das solidões. Apenas uma vez visitei a minha ilha, usufruto de outros, que a julgam sua. A ilha, porém, é totalmente minha…. Qualquer dia vou para lá.
(Página 04)
Desenho
(In Vaga Música)
Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
E comia mamãe, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.
Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.
Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
Fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo
E minha avó cantava e cosia. Cantava
Canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
E palavras de amor em minha roupa escritas
Minha vida começa num vergel colorido,
Por onde as noites era só de lar e estrelas.
Levai-me aonde quiseres! – aorebdi com as primaveras
A deixar-me cortar e a volta sempre inteira.
(Página 05)
Beira Mar
(in Mar Absoluto)
Sou moradora das areias,
De altas espumas: os navios
Passam pelas minhas janelas
Como o sangue nas minhas veias,
Como os peixinhos nos rios
Não têm velas e têm velas;
E o mar tem e não tem sereias;
E eu navego e estou parada,
Vejo mundos e estou cega,
Porque isto é mal da família,
Ser de areia, de água, de ilha…
E até sem barco navega
Quem para o mar foi fadada.
Deus te proteja, Cecília,
Que tudo é mas e mais nada.
“Ela temia ser devorada pelo mar, virar água. Adorava rosas, Mozart e violinos.”
(Página 06)
Improviso
(in Vaga Musica)
Cecília, és libérrima e exata
Como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria,
E a matéria mata.
Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga:
Tu, não és enxuta.
Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar ?
Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
Ar com sentimento.
– Brisa, viração
Da asa de uma abelha.
(Páginas 07 e 08)
Escola de Bentevis
(in O que se diz e o que se entende)
Quando ouço um gorjeio nestas mangueiras e ciprestes, fico atenta, mas não consigo traduzir nada. No entanto, bem sei que os pássaros estão conversando. O papagaio e a arara, esses aprendem o que lhes ensinam, e falam como doutores. E há o bem-te-vi, que fala português de nascença, mas infelizmente só diz o próprio nome, decerto sem saber que assim se chama.
Anos e anos a fio, os bem-te-vis do meu bairro nascem, crescem, brigam, falam… ? Depois deixam de ser ouvidos: não sei se caem nas panelas, se arranjam emprego, se viajam, se tiram férias, se fazem turismo. Não sei.
Mas, enquanto andam por aqui, são pacientemente instruídos por seus pais ou professores, e parece que tão cedo começam a voar, já vão para as aulas, ao contrário de muitas crianças que antes de irem para as aulas já estão voando.
Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos? Ah! Principalmente os gatos… Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só: “Bem-te-vi” “Bem-te-vi!”, que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas.
Antigamente era assim. Agora porém, as coisas têm mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: “Bem-te-vi!”? O aluno, preguiçoso, relapso, ou turbulento, respondeu apenas “Tevi!” Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. “Bem-te-vi” Bem-te-vi!”, tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de “Te-vi! Te-vi! Te-vi!”
E a passarinha vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos.
Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviram aquele fraseado clássico dos avós: “Bem-te-vi” Bem-te-vi!”? e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviram a abreviatura dos pais: “Te-vi! Te-vi!” Mas acharam muito comprido ainda. (Que trambolho, a família!) E passaram a responder, por muito favor, “Vi! Vi!” Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato…
Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudam de método. Talvez mudo o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente? Quem sabe ? uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis.
(Página 09)
Jardins
(in Criança Meu Amor)
– No meu jardim há lírios, rosas, margaridas e violetas, dizia Célia. -No meu, dizia Rute, há principalmente cravos.
– Que bom, na primavera, não é? Perguntou Marília.
Podemos fazer grandes ramos para as jarras de mamãe.
– E o papai, então, que gosta tanto de flores!… disse Rute.
E como, enquanto as três meninas conversam, Noêmia pensasse docemente perto delas, sem dizer nada, perguntaram-lhe o que havia no seu jardim.
Ela disse que o seu jardim tivera muitos cravos, lírios, rosas e margaridas, também. Era um jardim tão bonito que fazia parar as criaturas que passavam por ele. Algumas pediam-lhe flores. E ela dava. Outras pediam-lhe flores. E ela dava. Outras pediam-lhe mudas. E ela dava, dava sempre… De maneira que no seu jardim não havia quase nada… A bem dizer, nada mesmo.
Ela, porém, não estava triste – porque as suas flores deviam andar noutros jardins…
E as três meninas abraçaram Noêmia com ternura…
“Vivia na tessitura das cores e se curava com perfumes. Tinha dois lagos azuis-verdes-acinzentados nos olhos…”
(Página 10)
O Último Andar
(in Ou Isto ou Aquilo)
No último andar é mais bonito:
Do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.
O último andar é muito longe
Custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.
Todo o céu fica a noite inteira
Sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.
Os passarinhos lá se escondem,
Para ninguém os maltratar:
No último andar
De lá avista o mundo inteiro:
Tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
No último andar.
(Página 11 e 12)
A Língua do Nhem
(in Ou Isto ou Aquilo)
Havia uma velhinha
Que andava aborrecida
Pois dava a sua vida
Para falar com alguém.
E estava sempre em casa
A boa da velhinha,
Resmungando sozinha:
nhem – nhem – nnhem – nhem – nhem – nhem……
O gato que dormia
No canto da cozinha
Escutando a velhinha, Principiou também
A miar nessa língua
E se ela resmungava,
O gatinho a acompanhava:
nhem – nhem – nhem – nhem – nhem – nhem…
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e a galinha,
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
De modo que a velhinha
Que muito padecia
Por não ter companhia
Nem falar com ninguém,
Nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
“Em seus versos, saía em busca dos arquétipos da língua, aquilo que havia escondido por detrás dos sons, os nomes dos nomes…”
(Página 13 e 14)
Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro no dia 7 de novembro de 1901. Seu pai, Carlos Alberto, faleceu três meses antes do nascimento da filha e D. Matilde, sua mãe, quando a nossa homenageada tinha apenas três anos. Foi criada pela avó materna D Jacinta.
Cecília disse certa vez:
“Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito, em literatura, jornalismo, educação e mesmo no folclore. Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma contemplação poética afetuosa e participante.”
“ Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parece negativas, mas foram sempre positivas para mim : silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo e as bonecas, o jogo do seu olhar Mais tarde, foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seu sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. Foi ainda nessa área que apareceram um dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas, que mergulhada em solidão e silêncio tanto quanto possível.”
(Página 15)
Motivo
Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa
Não sou alegra nem sou triste:
Sou poeta
Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento
Se desmorono ou se edifício,
Se permaneço ou me desfaço
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mas nada.
“Acontece que Cecília apareceu em novembro e desapareceu em novembro. Era uma deusa.”.
Carlos Drummond de Andrade
(Página 16)
O Menino Azul
(in Ou Isto ou Aquilo)
O menino quer um burrinho
Para passear.
Um burrinho mando,
Que não corra nem pule,
Mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
Que saiba inventar histórias bonitas
Com pessoas e bichos
E com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
Que é como um jardim
Apenas mais largo
E talvez mais comprido
E que não tenha fim.
V (Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever para a Rua das Casa
Número das Portas,
Ao Menino Azul que não sabe ler.)
(Página 17 e 18)
A Arte de Ser Feliz
(in Escola o seu Sonho)
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal, onde oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? E que jarraa, em que sala diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias – e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era numa época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era um rega; era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caiam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar cumprido o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
“Cecília acreditava num Reino da Poesia, aonde todos os poetas viveriam de brisas, descansaria em nuvens e seriam presenteados com ramos de música.”
(Página 19 e 20)
Camelô Caprichado
(in Escolha o seu Sonho)
“Senhoras, senhoritas, cavalheiros! – todos os que vivem pena, para a pena, pela pena ! – esta é a caneta ideal, a melhor caneta do mundo (marca Ciclope!). (E custa apenas um real!)
A caneta marca Ciclope, munida de um curioso estratagema, permite mudar a cor da escrita, com o uso de duas tintas, o que facilita a indicação de grifos, títulos, citações de frases latinas, versos e pensamentos inseridos no texto! A um simples toque, uma pressão invisível (assim!), a caneta passa a escrever conforme a fantasia do seu portador (e custa apenas um real!)
Adquirindo-se uma destas maravilhosas canetas, pode-se dominar qualquer hesitação da escrita: a canela Ciclope escreve por si! Acabaram-se as dívidas sobre a crase, o lugar dos pronomes, as vírgulas e o acento circunflexo ! Diante do erro, a caneta para, emperra – pois não é uma caneta vulgar, mas uma caneta atômica, sensível, radiativa. Candidatos a concursos, a cargos públicos, a lugares de responsabilidade ! – a caneta Ciclope resolve todos os problemas ortográficos e caligráficos! E ainda esta caneta não apenas escreve, mas pensa! (E por um real!)
Não mais dificuldades de rima nem de concordância! Tudo rápido, correto, limpo! A caneta Ciclope não mancha nem enferruja; não acaba nuca – é a caneta de escritores, escrivães e escriturários, de jornalistas, radialistas, desportistas – de todos os que vivem da pena, para a pena e pela a pena !(Por um real!)
Senhoras, senhoritas cavalheiros, aqui está um bloquinho de papel: experimentem ! Experimentem! Apreciem as tintas, experimentem a maciez, a presteza, a velocidade, a exatidão! (Por um real!)
Qualquer pessoa pode ficar célebre de um momento para outro com o simples uso da caneta Ciclope: uma caneta que escreve, uma caneta que pensa! Exclusiva! Original! Sem precedentes! (E apenas por um real!) ”
(Ainda não pude comprar a caneta maravilhosa, porque há multidões em redor do camelô. Mas sua arenga – como as dos tempos eleitorais não rica só de esperanças, mas também de severas ameaças apara os que vivem da pena, para a pena e pela pena!…)
(Página 21)
O Motivo da Rosa
(in Mar Absoluto)
Não te aflijas com a pétala que voa:
Também é ser deixar de ser assim.
Rosas verás, só de cinza franzida,
Mortas intactas pelo teu jardim.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
Ao longe, o vento vai falando em mim.
E por prender-me é que me vão lembrando,
Por desfolhar-me é que não tenho fim.
“…cantava a beleza que morre, se esvaí entre os dedos, o espasmo do céu, os olhos de Deus a brilharem no firmamento para transformar os efêmeros humanos em permanência, eternidade.”
(Página 22)
Quanto o meu rosto contemplo
(in Canções)
Quando meu rosto comtemplo
O espelho se despedaça:
Por ver como passa o tempo
E o meu desgosto não passa.
Amargo campo da vida,
Quem te semeou com dureza,
Que os que não se matam de ira
Morre de pura tristeza ?
Retrato
(in Viagem)
Eu não tinha esse rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
A minha face?
(Página 23)
Montagem de textos sobre viagem
(acompanha o convite da exposição da ABL)
O tempo que navegaremos os quatro cantos da terra não se calcular. Viajar é uma arte de admirar. É amar loucamente cada aspecto do caminho. É ir em peregrinação, participando intensamente de coisas, de fatos, de vidas com as quais nos correspondemos desde sempre e para sempre. Para qualquer lado que vá, tudo será maior que qualquer sonho.
Há um momento feliz em todas as viagens: quando na bruma da distância já se advinha a presença dos amigos, quando se descobre o primeiro sorriso de boas-vindas e o coração se emociona sobre o primeiro ramos de flores.
Perguntaram-me para onde vou agora. Quem sabe para onde vai? Caminhamos sobre enigmas. Já deixamos para trás o sol enterrado no deserto; já descobrimos as estrelas e a lua veio ao nosso encontro.
O que me espera não sei.
“Coisas que Cecília ama: crianças, objetos antigos, flores, música, praia deserta, livros, livros, livros…”
(Página 24 e 25)
Xica da Silva
(in Romanceiro da Inconfidência)
(Isso foi lá para os lados
do Tejuco, onde os diamantes
transbordavam do cascalho.)
Que andor se atavia
Naquela varanda?
É a Chica da Silva:
É a Chica-que-manda!
Cara cor da noite,
Olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
Para conhecê-la.
(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)
Vestida de tisso,
De raso e de Holanda,
– é a Chica da Silva,
é a Chica-que-manda!
Escravas, mordomos
Seguem, como um rio,
A dona do dono
Do Serro do frio
(Doze negras em redor,
– como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)
Um rio que, altiva,
Dirige e comanda
A Chica da Silva,
A Chica-que-manda.
Esplendem as pedras
Por todos os lados:
São flechas em selvas
De leões marchetados
(Diamantes era, em jaça
por mais que muitos quisessem
dizer que era pedras falsas.)
Mil luzeiros chispam,
À flexão mais branda
Da Chica da Solva, da Chica-que-manda!
E curvam-se, humildes,
Fidalgos farfanteeis,
À luz dessa incrível
Festa de diamantes.
(Olhava para os reinóis
e chamava-os “marotinhos”!
quem viu desprezo maior?)
Gira a noite, gira
Dourada ciranda
Da Chica da Silva,
Da Chica-que-manda
Gira a noite, gira,
Douradora ciranda
Da Chica da Silva,
Da Chica-que manda.
E em tanque de assombro
Veleja o navio
Da dona do dono
Do Serro do Frio.
(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)
A onda leva a brica
Sobre a leva panda?
– À Chica da Silva:
à Chica-que-manda.
À Vênus que afaga,
Soberba e risonha,
As luzentes vagas
Do Jequitinhonha.
(À Rainha se Sabá
nun vinhedo de diamantes
pode-se ia comparar.)
Nem Santa Ifigênia,
Toda em festa acesa,
Brilha mais que a negra
Na sua riqueza.
Comtemplai, branquinhas,
Na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!
(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto rei famoso,
Não tive mulher assim!)
“A poesia de Cecília é intemporal, diáfana e cristalina, e, além de nobre e discreta, delicada e dotada de musicalidade que lhe acentua a leveza.”
(Página 26)
Da Reflexão dos Justos (Romance LIX)
(in Romanceiro da Inconfidência)
Foi trabalhar para todos…
– e vede o que lhe acontece!
Daqueles a quem servia,
Já nenhum mais o conhece.
Quando a desgraça é profunda,
Que amigo se compadece?
Tanta serra cavalgada!
Tanto palude vencido!
Tanta ronda perigosa,
Em sertão desconhecido!
– E agora é um simples Alferes
louco, – sozinho e perdido.
Talvez chore na masmorra,
Que chorar não é fraqueza.
Talvez se lembra dos sócios
Dessa malograda empresa.
Por eles, principalmente,
Suspira de tristeza.
Sábios, ilustres, ardentes,
Quando tudo era esperança…
E, agora tão deslembrados
Até de sua aliança!
Também a memória sofre,
E o heroísmo também cansa
Não choram somente os fracos.
O mais destemido e forte,
Um dia, também pergunta,
Contemplando a humana sorte,
Se aqueles por quem morremos
Merecerão nossa morte.
Foi trabalhar para todos…
Mas, por ele, quem trabalha?
Tombado fica seu corpo,
Nessa esquisita batalha.
Suas ações e seu nome,
Por onde a glória os espalha?
Ambição gera injustiça.
Injustiça, covardia.
Dos heróis martirizados
Nunca se esquece da agonia.
Por horror ao sofrimento,
Ao valor se renuncia.
E, à sombra de exemplos graves,
Nascem gerações opressas.
Quem se mata em sonho, esforço,
Mistérios, vigílias, pressas?
Quem confia nos amigos?
Quem acredita em promessas?
Que tempos medonhos chegam,
Depois de tão dura prova?
Quem vai saber, no futuro,
O que se aprova ou reprova?
De que alma é que vai ser feita
Essa humanidade nova?
Maria Pompeu
Amaury de Lima
Márcia Bloch