Programa, 1970

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(INFORMAÇÕES DO PROGRAMA)

(Capa – Foto)

HOJE SOU UM, AMANHÃ OUTRO
e
RETÁBULO DAS MARAVILHAS

Programa em Revista
A leitura favorita do público de teatro
Distribuição gratuita

Teatro Tablado

(Interior)

“…a sua cabeça era como centro donde saiam pensamentos que voavam as dos reis de que se alimentava com – com a exceção dos de palha – e destes recebia outros. Era como o coração do mundo…” Qorpo Santo

QORPO SANTO e CERVANTES porque?

Nas duas peças encontro um ritmo de coincidência:

Um casal frente a uma empreitada difícil e o triunfo absoluto no fim, depois de passar por situações extremas. As duas peças acabam com o bom sucesso do casal triunfador, sucesso impregnado de mortes. “O mar repleto de cabeças de nossos inimigos” – diz alegremente a Rainha no fim da comédia de Qorpo Santo e “o sucesso foi extraordinário” exclama a fêmea do casal Cervantino olhando os cadáveres das autoridades do lugarejo onde desenvolveram sua farsa. Ambos os casais vivem frente ao público em situações extremas, constantemente pelo triunfo de si mesmo e contra todos. Representa o poder e seu equilíbrio entre o sentimento e o intelecto. O esquemativo do enredo junto com a riqueza de propostas de interpretação enquadram as duas pequenas peças no esquema da fantasia onírica, onde a valorização moral fica deslocada, não se cogita dela; é extemporânea ou inútil. Isto faz que as duas peças caibam no esquema do que hoje é considerado teatro do absurdo e por isto se transformam em propostas amplamente solicitantes de imaginação e ansiedade criativa. O resultado da junção que fez a escolha de ambas e sua elaboração dentro de um impulso de expressão descompromissada com formas velhas, como nossa época reclama, faz de nosso trabalho um espetáculo nervoso, caótico, entrecortado onde continuamente se dá lugar ao espontâneo se sacrificando a forma tradicional à forma mais forte e atuante.

Brincando, Cervantes descarregou seu ressentimento pelos preconceitos mesquinhos que poluíam parte da sociedade de sua época, e tentava um renascimento de valores mais espontâneos, mais largos, mais detalizadores. Tole brincava com um sorriso amargo. Atualidade dele é simplesmente a que podia ter escrito esta pequena peça em 1970 com as mesmas palavras que o fez quatrocentos anos atrás e não deixar de ser feito assim um jàgo requintado e cáustico.

Que diferença entre uma Espanha inquisitorial e qualquer província americana de fins do século XIX? Que era pior? Tempo e espaço desligado de correspondência cronológica. Consideremos esses dados distanciados como um contexto único que daria lugar a qualquer gênio a se expressar pela única forma permitida, e a mais introspectiva, a mais sem esperança de comunicar, a menos arriscada, a única que evita a monologação mórbida e que liberta na medida em que a imaginação permite fantasiar um leitor hipotético, um leitor do futuro. Qorpo Santo era um humorista cruel na medida justa que era necessário para criticar a sociedade obtusa que via num inovador um louco ao qual se tentava bloquear pelos meios mais ignóbeis como correspondia a mediocridade dos que queriam silenciá-los. Ele se comunicou pese a tudo e a todos, comprou uma imprensa e publicou suas obras, seus sonhos, seus poemas, seus jogos de palavras, e venceu.

Hoje ele está vivo no palco, anticonvencional, aberto, dizendo, valendo.
Pedro Touron

Leste Produção apresenta:

Hoje Sou Um, Amanhã Outro
Qorpo Santo

Elenco

Rainha Matildes e Flageladora: Suzanna Faini
Rei Dourado: Luiz Armando Queiroz, Vicente Rocha, Pedro Touron
Ministra Eulália e Penitente Branco: Ângela Vasconcelos
Dama Tibúcia: Cecília Conde
Guardas e Penitente Preto: Ilo Krugli

Monstros do delírio, Figuras do sonho, Coro do pesadelo, Damas do paço, Carnaval e condecorações: Todo elenco.

Retábulo das Maravilhas
Entremes de Cervantes

Elenco

Luiz Armando Queiroz: Chanfalha
Suzanna Faini: Quirinos
Vicente Rocha: Rabelin e Furriel
Ângela Vasconcelos: Teresa Repolha
Cecília Conde: Joana Castrada
Paschoal Villaboim: Escrivão Pedro Capacho
Pedro Touron: Alcaide Benito Repolho
Ilo Krugli: Governador e João Castrado
Participação Especial de Silvia Aderne

Ficha Técnica

(Dos Dois Espetáculos)

Direção: Pedro Touron
Música: Cecília Conde
Iluminação: Ilo Krugli
Operador de Luz: José Martins
Maquinista: Antônio de Abreu
Operador de Som: Carlos Vieira
Contrarregra: Paschoal Villaboim
Execução de Figurinos: Odaléa Manso
Carpintaria: Humberto
Fotos: Erasmo e Pedro
Técnico de Som: Jorge Cardoso
Administração: Ofélia Santiago
Equipe de Produção: Ilo, Heloísa, Rocha
Divulgação: Sílvia Donato
Bonecos, Figurinos, Ambientação Visual: Pedro Touron

Leste Produção agradece à:

Conservatório Brasileiro de Música, Banco Industrial de Campina Grande S.A., Conservatório Nacional de Teatro, Museu de Arte Moderna, Rio Som, Novo Rio Investimentos

Partindo retilineamente do âmago gerador das fantasias de Qorpo Santo destacado entre seus contemporâneos por sua sensibilidade de criador, esta pequena comédia corresponde à curiosidade do homem moderno, por que pode projetar em seu enredo simples a inquietação de nossa época, julgando o heroísmo como efeito de um acondicionamento contra o qual não tem defesas o ser social, ou assimilando-a pelos valores psico simbólicos, representados nas figuras do Rei e Rainha plasmados na comédia em seus aspectos positivos, mostrando um processamento individual da junção harmoniosa de consciência e inconsciente.

As duas propostas são constantes em toda a obra teatral do autor.

Impulsivamente vai das críticas que seu tempo exigia, às descobertas de maleabilidade nos dogmas religiosos para que estes fossem, degraus à serviço do homem e seu desejo de ligar-se ao espiritual.

Aceitava a verdade do mistério irrevogável da Divindade e bruscamente fazia a explanação dos instintos e sua premência, encontrando naturalmente imediatas relações contínuas entre os opostos. Mudando bruscamente reagindo de chofre a cada nova solicitação, ora do sentimento, ora do intelecto e lançando-se a fundo, derramando-se no ato de descobrir e expor com exaltação; divagando num fluxo surpreendente de novas imagens, lembrando uma escrita automática que transmite bem as riquezas do inconsciente que já foi entrevisto e admirado como território de grandes mistérios, conseguindo registrar e traduzir mediante o certeiro poder de formas de sua inteligência, algumas mensagens de seu mundo interior.

Abordamos Hoje Sou um e Amanhã Outro… sem interrogações. Aceitamos o enredo desenvolvido linearmente que leva rápido de sequência em sequência até o final feliz antecipado desde o início, dado o esquema do par Real em 9 de maio de 1866, e acaba a 9 de abril do mesmo ano e o Rei se transforma no autor, obtendo o “mais completo triunfo”, confiamos todo o nosso trabalho à intuição, descartando tudo o que não parta dela, desdenhando tudo que a cerceie, desconfiando das tentações do psicologismo, de postulações racionais ou quaisquer outras interrupções ressecantes do anacronismo proposital – de um, desenvolvimento progressivo de ações lógicas no plano épico; em contraponto com um tempo que decorre em sentido contrário até culminar num final feliz, anterior ao início do drama – exigia vigilância para afastar tudo o que não fosse contrassenso, tudo o que distanciasse do endossamento da proposta do anacronismo com todas suas implicações poéticas.

A poesia comunica-se continuamente com o humor em Hoje Sou um… dialogam harmonicamente. O humor da comédia é incisivo, brusco, como a força dos nervosos. Os Cantos de Maldoror está impregnado de gargalhadas fixas, gargalhada dirigida a sua pessoa e autodestruindo-se, toca oblibramos Qorpo Santo. Nas entrelinhas de ambos reconhecemos às vezes o mesmo monstro ridente que prenuncia o surrealismo.

No meio da angústia o poeta não pode deixar de desenhar ironicamente o seu próprio perfil; sutiliza criticando com uma gargalhada dirigida a sua pessoa e autodestruindo-se, toca obliquamente à condições que o faz parte de um grupo humano do qual é uma sensibilíssima fração de agudas ressonâncias que detectam o que todos tentam desconhecer em si mesmo: a inadequação para fazer a viagem do autoconhecimento, para assumir todas as possibilidades latentes e poder ser “hoje um e amanhã outro”.

O humor destrutivo contagiou todas as ações, intuitivamente encontramos o lirismo, a crítica, o tempo dinâmico, o divertimento; o jogo visual; intuitivamente achamos o ritmo interior que encerra a mais simples das peças de Qorpo Santo. Teremos objetivado o delírio que sucede às primeiras descobertas do centro psíquico-coletivo. – Ideia Cara a Qorpo Santo – se transmitimos esse ritmo primitivo e íntimo com a acridez que o recebemos e não o quisemos, despojar-se tem a grandiloquência mórbida dum infindável jogo noturno de crianças terríveis que dramatizam neuroticamente usando neologismos, ou palavras novas com sentido não desentranhado ainda, desafiadoramente; auto hipnotizando-se ou rindo – teremos plasmados a intensidade emocional que motivou Hoje Sou um e Amanhã , Outro.

Para os que não tiveram medo de nos acompanhar nesta jornada, fique para sempre o nosso reconhecimento pela pesquisa que fizeram em si mesmo, procurando traduzir em imagens – o grito, a dança, – as difíceis formas arquetípicas que encerra” o coração do mundo”.

O Reino Interior

É este o nosso ponto de vista para. ajudar a expor as alternâncias interiores do homem contemporâneo em face à realidade atual, esquiva e desconcertante, sem tergiversar a linha argumental da comédia e é esta a interpretação que escolhemos:

O Rei afetado por ameaça de conspiração se entrega aos extremos da desconfiança indigitando amplamente e envolve, junto com os que tentam usurpar seu lugar no poder, os seus mais sábios amigos.

Pela imaginosa conversa do ministro se acalma e a pedido da rainha concede o perdão daqueles que julgava inimigos; recuperado do medo dorme e sonha.

É acordado bruscamente pelo conflito da invasão estrangeira que ameaça suas praias. Reage, dá ordens, e volta a dormir vendo em pesadelo monstros que o chamam a combater para que assuma assim o heroísmo que cabe a sua realeza; a Rainha dissipa o pesadelo e o alerta para o combate conduzindo-o à batalha.

O casal Real na adversidade frente a inimigos internos ou externos é levado a trocar suas verdadeiras características e assim a consciência é representada pela Rainha cabendo ao Rei as atitudes instintivas de fuga, temor e violência, agindo ambas as partes, bruscamente e em excesso num Reino ameaçado.