A Cia. Ficadeita de Teatro mistura deuses e mortais para dar sua versão bem-humorada da paixão nacional que é o futebol

Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 02.08.1998

Barra

A cena que bate um bolão 

Mais uma vez, a Cia. Ficadeira de Teatro investe em um tema polêmico – eles já falaram com humor do nascimento do Menino Jesus em De Como Quase Tudo Deu Errado, da vida de um palhaço sem vocação em O Circo Pega Fogo, e de um super-herói carioca em O que não Está no Gibi – escolhendo desta vez a paixão nacional, o futebol, para trazer ao palco sua crítica mordaz.

A peça 150 Milhões em Ação, em cartaz no Teatro Villa-Lobos, ao contrário do que o título indica, não tem indica, não tem bem o ufanismo da tal Pátria de Chuteiras, mas também não é nenhum alerta de que o futebol é o apoio do povo. A peça é feita de detalhes do cotidiano da crônica futebolística, com todos aqueles casos alegres e muitas vezes tristes que todo mundo já ouviu falar um dia, mas que acaba esquecendo a cada vitória do seu time. Num país que se orgulha ter o maior futebol do mundo, mas que tem poucas produções culturais sobre o tema, o espetáculo é mais do que oportuno.

Henrique Tavares, autor e diretor da peça, arma no palco um espetáculo de surpresas que mistura deuses do Olimpo com os deuses do gramado. Tudo se encaixa porque, também nesse caso, “Zeus é Brasileiro”, é ele que desce a Terra com Afrodite para assistir a Copa do Mundo. No palco/gramado, o embate ocorre entre Brasil, Vikings, Império Romano e 3º Reich. Esses adversários tão adversários tão fantásticos, no entanto, não tiram do texto a devida cor local. Na seleção tetracampeã. Arco é o artilheiro que não pode ouvir a palavra pênalti que logo se lembra de como desclassificou o Brasil na Copa passada. Naniker, como é provado pelo técnico, não sabe cantar o hino nacional, e Menkes quer fazer o melhor “se contratado por um time europeu”. Usando todas as gags do noticiário, do noticiário, Henrique Tavares marca mais um tento nessa partida teatral.

Na direção de seu próprio texto, Tavares cria um espetáculo de pausas bem marcadas e deixa que a ação corra suave para que o espectador se envolva com a história. Assim, estão no palco em cenas estanques, mas muito bem ligadas, tramas paralelas que enriquecem o folclore urbano, como o encontro dos orixás com os deuses Olimpo e os fantasmas do Maracanã, representados por “imortais” do Flamengo, Botafogo, Fluminense, Vasco e América, que continuam no estádio pagando seu carma. O fantasma americano não deixará o gramado enquanto não vir o seu time campeão. Difícil exorcismo.

Com narração das partidas em off, Henrique Tavares homenageia antigas astros do microfone. O narrador da partida é Waldir, provavelmente o Amaral, e o repórter de campo é o Oduvaldo, certamente o Cozzi. Pequenos detalhes que fazem parte da nossa memória afetiva e que trazem boas lembranças.

Na mesma linha, o figurinista Maurício Carneiro vestiu o time brasileiro como a seleção canarinho de 70 e deu ao time nazista a bota das chacretes. Os deuses usam plataformas altíssimas como no princípio do teatro grego, só que prateadas como as usadas no nosso carnaval. Uma boa citação. Os adereços de Celestino Sobral dão o toque final nas composições.

No elenco numeroso se destacam Antônio Fragoso, como Arco, o artilheiro inseguro, José Brito como naniker, o indisciplinado, Cláudio Garcia como Meneker, que quer fazer carreira no exterior. No Olimpo, Paulo Giannini é o simpático Zeus, que anima a torcida na plateia, e Carla Faour é Afrodite, que conquista deuses e mortais. Também no Olimpo, Mariana Ferman dá o toque tragicômico à deusa Téstis, principalmente quando amaldiçoada por Zeus a passar o carnaval em Salvador, onde terá que dançar É o Tchan, “Vulgar e previsível”, ela repete como se fizesse uma crítica aos que criticam a inserção da gag dançante no teatro. Tem razão a deusa, é vulgar e previsível mesmo.

Completando esse show de bola e de teatro, Aurélio de Simoni marca a luz homem a homem. Ôla.

Cotação: 3 estrelas (Ótimo)