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Ser Jovem – As palavras significam: lembrar que juventude < juvene < Jove (Júpiter), o deus supremo do Olimpo, nos faz perceber que o sonho humano de imortalidade vê no (rejuvenescimento ou na “eterna juventude” a possibilidade mesma de uma vida mais plena e fecunda. Também, a palavra infância, tendo à sua raiz jante = criança, associa o termo à ideia de criar, gerar, tirar do nada. Pois se infante é aquele que ainda não fala, a palavra marca, porém, em sua raiz, a relação com a fantasia ou o sonho que estão à base mesma de toda criação.

Assim, no imaginário humano, expresso em suas palavras, a associação de infância e juventude à ideia de criação e inovação é permanente, em todos os povos e culturas, nas quais os deuses sempre foram seres concebidos como imortais, isto é, como aqueles que escapam ao ciclo vital humano de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. Também Eros, o ela vital, a força agregadora e impulsionadora do desejo humano, é representado, na mitologia ocidental, por uma criança brincalhona que se diverte com os “mortais”. E nesse divertir (= revirar ou vir-a-ser) torna visível a possibilidade última e maior de toda diversão: abrir a uma versão outra e diferente a própria visão e a própria ação.

Criação, inovação, diversão estão, pois, tradicionalmente ligadas a infância e juventude. Mas, como não é a tradição o que aqui nos interessa, nossa pergunta vai além e passa a ser o que significa Ser jovem, hoje – Aquele enraizamento de termos nos permite entender por que a juvenilização se tornou tão importante na sociedade ocidental deste final de século. Eric Hobsbawm, um dos mais famosos historiadores de nosso tempo, assinala em A era dos extremos – O breve século XX, a importância que tem, atualmente, o fato de “ser jovem”:

A novidade da nova “cultura juvenil” é tripla. Primeiro, a “juventude” passa a ser vista não mais como estágio preparatório à vida adulta, mas, em certo sentido, como o estágio final do pleno desenvolvimento humano. […] Até a década de 1970, o mundo do pós-guerra era governado por uma gerontocracia, em maior medida que os períodos anteriores, sobretudo por homens – dificilmente por mulheres ainda – que já eram adultos no fim, ou mesmo no começo da Primeira Guerra Mundial. Isso se aplicava tanto ao mundo capitalista (Adenauer, De Gaulle, Franco, Churchill,) quanto ao comunista (Stalin, Kruschev, Mao, Ho Chi Minh, Tito), bem como aos grandes estados pós-coloniais (Gandhi, Nehru, Sukarno). Um líder com menos de quarenta anos era uma raridade, mesmo em regimes revolucionários […] Daí o impacto internacional de Fidel Castro, que tomou o poder aos 32 anos […] Também a “aposentadoria antecipada” tornou-se o método favorito de cortar custos com mão de obra: executivos com mais de quarenta anos que perdiam o emprego achavam tão difícil arranjar novos postos quanto trabalhadores braçais ou funcionários de escritório. A segunda novidade da cultura juvenil provém da primeira: ela era ou tornou-se dominante nas “economias de mercado desenvolvidas”, em parte porque representava uma massa concentrada de poder de compra, em parte porque cada nova geração de adultos fora socializada como integrante de uma cultura juvenil autoconsciente e trazia as marcas dessa experiência […] Qualquer que fosse a estrutura de idade da administração da IBM ou da Hitachi, os novos computadores eram projetados e os novos programas criados por pessoas na casa dos vinte anos […] O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se menos óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos sim. Inverteram-se os papéis das gerações. A terceira peculiaridade de uma nova cultura jovem nas sociedades urbanas foi seu espantoso internacionalismo. O blue jeans e o rock se tornaram marcas da juventude “moderna”, das minorias destinadas a tornar-se maiorias […] Passou a existir uma cultura jovem global. […] a cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural, no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos.

constatação é também de outros historiadores, como Philippe Aries, que qualifica o próprio século XX como “o século da adolescência”:

[…] passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo.

Mesmo a uma visão superficial ressaltam fatores de mudança, que vão da rejeição à velha ordem estabelecida, gestadora de duas guerras mundiais, à maturidade precoce da criança posta pelos meios de comunicação em contato direto com os objetos da cultura sem a interveniência diretriz dos intermediários tradicionais – família, escola, religião; aos dados de mercado/consumo acima apontados, que fazem da juventude uma massa com poder de compra atraente ao produtor; à entrada maciça da mulher no espaço público, causando grandes mudanças na chamada célula mater da sociedade – a família -, nas relações de gênero e, consequentemente, nas relações sociais como um todo.

Até em termos quantitativos a mudança é significativa: no Brasil, pelo censo do IBGE de 1991, a faixa etária que vai dos 10 aos 19 anos representa hoje 25%, ou seja, a quarta parte da população nacional – percentual que triplicou na população urbana dos últimos 25 anos. E assim como 1/4 dos domicílios brasileiros têm hoje uma mulher como chefe de família, o número de jovens que entram cedo para o mercado de trabalho cresceu muito. E, nele, o desemprego – desafio hoje nacional inatendido pelos governantes, cresceu também: segundo o DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos -, até 1996 o desemprego cresceu 21% para a faixa entre 18 e 24 anos e 38,7% para a faixa entre 15 e 17 anos.

Não é, pois, de surpreender que nos jornais de grande circulação tenha crescido o número e a variedade de “pesquisas” (pois assim se autodenominam) que tentam traçar “o perfil do jovem atual”, que é por eles descrito como alguém com uma permanente propensão ao humor (sem nunca ligar, claro, tal propensão a uma postura sadiamente iconoclasta…); com certo distanciamento em relação a lideranças políticas ou mesmo totalmente “apolítico” (o que faz arranjarem mil explicações outras para os “caras pintadas” e/ou outras formas jovens de manifestação e protesto); individualista e narcisista, preocupado apenas com seu espaço e com a valorização pessoal, com sua inserção no mercado de trabalho, seu status social e econômico e seu culto ao corpo (?…). Não é igualmente de surpreender que se tenham multiplicado e diversificado os discursos – pois, como adiante veremos, é de discursos que se trata – sobre e para o jovem, na mídia e fora dela.

A “cultura jovem” e suas (suas?…) expressões – A partir da década de 60 dá-se o boom da literatura infanto-juvenil, que chega, em três anos (1975 a 1978), a publicar quase 2 000 títulos. Fenômeno que permanece: na Bienal do Livro de 1997, no Rio de Janeiro, a lista dos mais vendidos destacava dois livros dedicados a adoles centes/jovens(Confusões de aborrescente Como educar seus pais) e uma obra destinada a esse público, O mundo de Sofia, do norueguês Jostein Gaardner, publicada em 1995, em poucos meses atingiu cinco edições.

A partir de 1990, os maiores jornais passam a dedicar cadernos especiais semanais à faixa etária que vai dos 12/15 aos 25 anos: Folhateen, da Folha de São Paulo; Zap, doEstado de São Paulo; Zine, do Jornal do Brasil, do Rio; Rio Fanzine, de O Globo; X-Tudo, do Correio Braziliense; Folha Jovem, da Folha de Londrina; Almanaque, de O Popular, de Goiânia etc. etc. Merecem atenção, desde já, duas observações a respeito: a de Ricardo Saboya, do Diário Popular de São Paulo:

Esses suplementos juvenis são alienantes na medida em que afastam o jovem da realidade concreta estampada nas páginas dos jornais.

Ou seja, uma realidade previamente recortada em temas que se supõe serem o interesse único e exclusivo do jovem atual vai contra o esclarecimento/informação que obteriam selecionando eles próprios as matérias que os atraíssem nas páginas dos jornais. No mesmo sentido, o lúcido comentário de Suzanna Kruger a propósito de um desses folhetins:

[…] é uma vergonha nacional: é como se toda a adolescência fosse débil mental, que só gosta de surf ou “daquela gata” […] E o jovem que lê Sartre ou que passa tardes lendo

Fernando Pessoa? Que negócio é esse de ‘é tudo igual, tudo assim ou assado’?

A mesma tendência diretiva e selecionadora se vê nas revistas destinadas a diferentes segmentos da juventude, buscando falar a esse excelente consumidor potencial que é o jovem: as revistas de esportes, automóveis, jogos, informática, sexo, suspense e aventura destinam-se ao público masculino; as meninas são confinadas ao mundo do corpo, da beleza, da moda e do amor – não esquecendo as revistas que ainda exploram um romantismo que se supõe exclusivamente feminino e as estratégias e táticas para conquistar o “homem de seus sonhos”. A música seria o denominador comum a ambos os sexos, variando embora as escolhas entre os diferentes sons, ritmos e letras.

Na TV, passou-se progressivamente de programas específicos (a novela das sete, por exemplo) à inserção de apelos ao jovem em todas as faixas – todas as novelas têm hoje um “núcleo teen” e as TVs por canais dedicam 60 ou 70% de seus programas de “Variedades” à faixa jovem. E de que tratam tais programas? Sob a aparente “variedade” – sexo, drogas, cuidados com o corpo, mercado de trabalho, renda familiar, romances, aventuras… – os temas centrais são a busca /necessidade de realização profissional, a inserção no mercado de trabalho e a satisfação sexual e amorosa, marcando o individualismo e o consumismo que têm sido apontados como traços definidores da nova geração. Pois, como assinalou um estudioso da comunicação: o espaço da rebeldia, da contestação da luta dos anos 60 foi substituído pela palavra: tudo é discurso, tudo é confessado, discorrido, exposto, narrado, analisado. O que importa – nas novelas, nos seriados, nos filmes, nos programas de auditório, em todos os modelos de enunciação – é falar, falar muito, falar sempre, diretamente para a câmera/espectador ou nos diálogos das cenas, nas imagens do texto, nas sonorizações etc, falar de tudo que se sente, pensa e vive – não raro tendo algum expert, ou pessoa mais velha, ou mais “sábia”, que comenta, “explica”, informa sobre tudo, até sobre os acontecimentos mais íntimos, os desejos, as resistências, os desvios existenciais e tudo mais que os discursos exibem.

Ou seja, o verdadeiro lugar de avaliação ou valorização de fatos e pessoas seria o grande espaço público, gerido, ao mesmo tempo, pelo individual e pelo massivo e pautado por um valor que se torna dominante: o da “publicidade”, em seu sentido etimológico, de “tornar público”, de ser “de todos”. Dominique Wolton estabelece uma relação evidente entre essa estandardização da sociedade de massas e o individualismo dos valores, o desmoronamento das legitimidades intermediárias e o reino da “publicidade individual”: tudo se passa como se as legitimidades parciais precisassem da legitimidade geral, hoje dada pela mídia, que estabelece o que é bem aceito, normal, desejável, legítimo.

Para as considerações que vamos adiante levantar, interessa-nos aqui perguntar – e deixar as respostas à reflexão do(a) leitor(a): até que ponto aquelas expressões configuram assim um “modo de ser” criança, adolescente ou jovem que define o tipo de “normalidade” socialmente desejável e/ou constrói, de fora para dentro, uma subjetividade, uma relação do sujeito consigo mesmo? Até que ponto isto representa uma possibilidade de controle, através dessa “normalização” assim introjetada, da própria sexualidade, da relação do sujeito consigo mesmo, de suas vivências mais íntimas, mais profundas e pessoais, de cada uma de suas expressões mais vitais, de seu desejo, enfim? Até que ponto, assim, consagram e aprofundam mecanismos de exclusão ou marginalização, característicos desta sociedade – estigmatizando os que se desviam das “normas” dominantes, ou os que se quer manter à margem, com um controle trabalhado de forma repressora ou coercitiva, porque não interessa lhes dar espaço maior? Basta lembrar o tratamento diferenciado que recebem, na mídia, os personagens classe média, a quem toda aquela produção se dirige – até pelos mecanismos de projeção e identificação que as produções acionam ao reproduzirem sua gestualidade, linguagem, aparência, situações de vida etc. – e o tratamento que é dado a meninos de rua, favelados, trabalhadores de menor idade, drogados, sem terra etc, enfim, a “esses marginais” cuja violência e periculosidade são sempre destacados.

Em suma, até que ponto, nesse discurso sobre e para a juventude, se pode perceber, semi-latente, uma nova relação de forças ou de poder dentro da sociedade atual?

Tais perguntas nos importam, e muito. Pois se teatro é, por definição, “lugar de ver”, que papel tem, está tendo, ou pode ter o teatro dentro desse contexto?

Ao começarmos a analisar os depoimentos dos sete primeiros grupos que se apresentaram em 1997 no Seminário Permanente, vimos que neles se pode perceber, de imediato, “uma virada no panorama geral, que mudou as formas de produzir e fazer espetáculo nos anos 90.” (Dudu Sandroni)

A primeira constatação significativa, expressa em diferentes momentos e formas, mas constante em todos os grupos, foi uma unânime recusa em ver seu teatro definido a partir da rotulação de “infantil” ou “juvenil”:

– O objetivo é fazer teatro […] Procuro estar sempre pesquisando, pensando e vendo o que mexe com a gente. O que a gente tem vontade de falar. (Daniel Herz – Cia. de Teatro Atores de Laura)

– Tenho a sensação de que o teatro, na realidade, é para qualquer idade. Não acho que direcionamos os espetáculos exclusivamente para a lente do jovem. (Suzanna Kruger – Cia. de Teatro Atores de Laura)

– […] eu aposto é na comunicação através do teatro, com uma galera que nunca foi ao teatro […] Que você vem formatado de um mundo e se vê diante de um monte de problemas diferentes, com maneiras diferentes de expressar a vida. É uma loucura […](Rogério Blat – Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian)

– A gente não tinha muita ideia de onde iria dar o trabalho da companhia […] queria construir uma linguagem […] que não é infantil ou adulta: é teatro. (João Batista – Cia. Dramática de Comédia)

– […] nunca a ideia de fazer teatro só para a criança e, sim, para o público. E uma companhia de ator: por isso escolhemos a farsa, que é a quintessência do teatro, que mostra o tempo todo que aquilo é teatro, que trabalha uma relação direta entre ator e plateia – é esse o jogo que nos interessa. (Márcia Frederico – Cia. de Teatro Medieval)

E, realmente, nas diretrizes e escolhas de trabalho dos diversos grupo encontramos desde peças com reis e rainhas e outros temas considerados característicos do universo infantil, a adaptações de peças ditas adultas (Goldoni, Gogol, Molière, Shakespeare, Brecht); à linguagem de outras épocas (a farsa medieval, por exemplo); a temas que seriam considerados excluídos da visão/preocupações jovens (pelo menos naquele “perfil jovem” descrito na mídia) – desemprego, violência, AIDS, drogas; à peça, na cena e na plateia, de classes sociais tradicionalmente delas excluídas e apresentando sob sua ótica as questões tratadas. Enfim, o saudável caos de uma busca/descoberta que aponta para as mais diversas direções.

O dado poderia parecer ocasional ou gratuito, não fosse a correlação com outros do contexto atual que permitem perceber sua significação maior. Ou seja, que em uma sociedade dividida (em classes, gêneros, idades etc.) é forçosa aquela necessidade de adjetivações e categorizações, pois é a partir delas que se criam hierarquias, verticalizações, e que se justifica ou se legitima o autoritarismo e a dominação: se uma classe é “alta” e a outra é “baixa”, se cabe ao “chefe” (< caput = cabeça) o poder de controle sobre o “empregado” (as palavras significam… e não é gratuita a conotação de uso e instrumento que esta carrega…), se a criança é “menor” (…) em relação ao adulto (visão que cresce em uma sociedade economicista, em que só vale quem é economicamente “produtivo”), nada mais natural, ou dentro da ordem das coisas, que o teatro dito “infantil” ficasse subordinado ou dependente, em uma situação que Lúcia Coelho apontou ao falar das condições de produção desse teatro até a década de 80, quando vivia das sobras de espaço e dos momentos ociosos de uso do equipamento do teatro dito adulto.

Portanto, a afirmação dos grupos, a nosso ver, não representa apenas uma exigência de reconhecimento ou valorização do próprio trabalho, sua reivindicação de um direito a um espaço que não venha a priori categorizado, rotulado ou classificado de cima para baixo. Mas cuja definição (finis = limite) resulte, dos temas às formas de produção, de decisão e escolha próprias. E nesta decisão que os separa das formas anteriores de visão/ação, o que importa é que fazem teatro e nele buscam expressar o que sentem, o que pensam, o que querem através de uma linguagem teatral. Ou seja, uma busca de linguagem, afinada com as preocupações que caracterizam a própria expressão artística de nosso tempo.

Alguém mais cético perguntaria: sim, eles podem estar, consciente ou intuitivamente, questionando o instituído, mas… e as imposições dominadoras do mercado, eixo na “nova ordem”, hoje? Como lembrou Sura Berditchevsky, o aluno se matricula num curso de teatro (e é importante assinalar que quase todos os grupos ou companhias que integraram os Seminários partiram de cursos de formação de atores) querendo saber se tem diploma, registro, se vai para a televisão, enfim, com a ideia de entrar no mercado de trabalho. O que, em princípio, nada tem de errado: um trabalho pode e deve ser reconhecido e remunerado como tal. Mas, se o mercado é potente, não é tão onipotente quanto se julga: uma leitura atenta dos depoimentos nos permitiu a constatação- contraditoriamente louvável e lamentável – de que os grupos não estão trabalhando a partir do mercado, mas sim a partir do que querem fazer e dizer:

– Eu imagino que cada um tem uma chama dentro de si que fez com que largasse o caminho mais tradicional e resolvesse seguir esta carreira […] essa instabilidade da profissão faz com que pese essa motivação original em função da loucura que é sobreviver […] e tem que saber em que medida você quer se entregar naquele momento de sua vida. (Daniel Herz – Companhia de Teatro Atores de Laura)

– Nos anos 80 a gente estreava e em um mês recuperava a grana […] Hoje não se ganha mais dinheiro […] de 84 em diante, o que a gente fazia já era curtição […] a gente não conseguia viver desse trabalho, eu ia dar aula, outro ia fazer isso ou aquilo […] (Lúcia Coelho – Grupo Navegando)

O dado é geral e mostra que estão pagando o preço de não estarem podendo sobreviver do próprio trabalho, como seria desejável e necessário. (Cf. suas condições de produção no artigo de Dudu Sandroni, neste mesmo Caderno). Heroísmo ingênuo ou quixotesco idealismo irrealista de sua parte, então? Não. Desafio a ser enfrentado. Se existe, como acima apontamos, toda uma solicitação de e a uma faixa jovem, que está sendo buscada e conquistada por outras linguagens e meios, fica o desafio de investigar como atrair esse público também para o teatro. Com duas considerações que também deixamos à reflexão do(a) leitor(a): se o jovem não tem o hábito de ir ao teatro, ele gosta de fazer teatro – o que fica evidente tanto nos grupos criados nas escolas, quanto no número dos que se matriculam nos cursos, ou se apresentam para os trabalhos abertos ([…] e aí já tinha 40, não cabia mais – Ernesto Piccolo, o Neco, da Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian). Algo que é mais do que compreensível, sobretudo neste momento em que a questão da relação consigo mesmo ou com seu eu, que está sendo manipuladoramente tratada na mídia, tem, no teatro, uma possibilidade de expressão mais rica e verdadeira, diferente da usual:

– […] o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo da verdade no qual está em relação consigo mesmo […] em que ele se observa e de alguma forma se reconhece […] (Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian)

Mais ainda, e também, decisão e escolha. E cabe aqui lembrar, co mo o fez Carmen Esteia (da Cia. de Teatro Medieval) que:

– Sem coragem e decisão não se faz arte […] A gente quebra a cara sabendo que faz o que gosta – e isto também é sucesso.

Decisão – pois esta era uma das questões básicas do final dos anos 80 e início dos 90 – ou seja, do momento da virada:

– O debate maior da época era: fazer teatro segundo a tendência do mercado ou seguir seu desejo de se expressar? (Sura Berditchevsky)

Decisão – pois um dos modos de resistir e/ou enfrentar as pressões do mercado tem sido formar companhias ou grupos permanentes, com continuidade de trabalho e novas formas de criação e produção:

– A gente tem que fazer grupo – é a saída. (Marcos Edom – Cia. de Teatro Medieval.)

-[…] voltar ao trabalho de grupo, não mais as carreiras solo dos anos 70 (Suzanna Kruger – Cia. de Teatro Atores de Laura)

– […] aquela estrutura: quebra, refaz […] Agora a gente está montando uma companhia […] (Sura Berditchevsky)

– […] criamos uma cooperativa […] (Dadá – Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian)

– todos são produtores e com remuneração por cotas iguais, variando de acordo com as funções acumuladas -sistema cooperativado (Roberto Guimarães, Cia. Dramática de Comédia e Daniel Herz, da Cia. de Teatro Atores de Laura)

Que características têm essas novas formas de criação/produção?

Como corolário daquela contestação não explícita ao autoritarismo do estabelecido, aparece a posição e a função do Autor dentro do próprio processo de criação de cada grupo. Se autor é, etimologicamente, aquele que gera, fecunda, faz nascer, ele não é mais, nas criações desses grupos, a autor-idade máxima – no sentido conotado, de coação e repressão que o termo adquiriu na autoritária sociedade atual. Na experiência dos grupos, o autor é, significativamente, um gestador e organizador de vozes múltiplas:

– E incrível esse processo, porque ele é tudo, ele vem, é intuitivo […] Em cena é que eu vou muitas vezes compreender o espetáculo: gente, eu escrevi isso? […] E cada trabalho (Funk-se! ou Com o Rio na barriga), vai levando a outro, e outro (O passado a limpo e O Futuro era hoje!), para mexer mais nessa ferida, nessa herança […] O trabalho é construído, vivido junto […] E daí a comunidade se identifica com o espetáculo […] E o grupo tem que pesquisar, estudar (botei todo mundo estudando História do Brasil) {…} Essas coisas estão faltando no teatro hoje, todo mundo quer tudo pronto.(Rogério Blat – Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian)

E assim surgem em cena personagens dela sempre ausentes retirantes nordestinos, camelôs, empregadas domésticas e suas vivências e problemas com outra classe social, com policiais e traficantes, vistos sempre sob a ótica crítico-cômico que caracteriza a visão e a expressão popular. Ou seja, um universo que não é exclusivo do jovem, uma outra linguagem, realidade, visão – mesmo que feita por jovens de diferentes idades.

Processo que não é exclusivo ou típico deste grupo. Em contexto bem diverso – uma conceituada escola da Zona Sul – nasce o trabalho de Lúcia Coelho (Grupo Navegando).

– Quando eles me perguntavam: qual o texto? Eu respondia: não sei. A gente começava a levantar os interesses […] Primeiro fizemos textos conhecidos, depois textos em cima dos próprios alunos – que é o que a gente mais gostava de fazer […] O grupo passou nove anos junto. A gente escrevia à medida que ensaiava. Ia fazendo a experiência, vivendo o processo. Às vezes, a partir de personagens, às vezes, de situações, de uma história, de uma coisa engraçada. Teve um espetáculo que começou de um desenho. Outro partiu de uma experiência de vida… Do Tá na hora ao Duvide-o-dó nada foi pensado com antecedência.

De matriz diversa – adaptação de textos clássicos, como Sonho de uma noite de verão, O barbeiro de Sevilha ou Arlequim, servidor de dois amos – a forma de criação será, no entanto, semelhante na Companhia Teatral Nosconosco:

– Nós trabalhamos como na commedia dell’arte: cada cena é dividida em unidades, cada unidade é um roteiro básico que serve à improvisação […] Há sempre um grupo de atores que chega para representar algo; há também sempre um narrador (ou narradores); e o personagem mudo – que critica a cena que está sendo feita em linguagem gestual […] Parte-se da ideia sugerida pelo texto como mola-mestra do espetáculo. (Célia Bispo)

Ou na Cia. de Teatro Medieval, que parte de textos da época, retrabalhados em processo idêntico: um argumento é obtido pela pesquisa de textos e autores (a maior parte deles ainda desconhecidos aqui, como o alemão Hans Sachs) a que se junta toda a informação disponível para criar uma versão dramatúrgica nova, a partir do universo/linguagem daquele autor:

– A gente junta material, senta junto e vai investigando sobre aquilo. A gente vai e volta muito. Vai experimentando, quer dizer, como se tem essa possibilidade de experimentar e poder fazer, a gente está ali, no processo de criação e vai recosturando o tempo todo […] inclusive refazendo muito todos os espetáculos.

preocupação comum e permanente, como assinalamos, é a de construir uma linguagem que seja real e teatralmente expressiva, capaz de tornar visível, fazer sobressair do cotidiano, tornar “maior que a vida”, como faz o teatro. (Heloísa Frederico – Cia. de Teatro Medieval)

A importância desse aspecto e a inovação que representa ficam, assim, evidentes quando se atenta para o que significa, primeiramente, em termos da construção do sujeito. O sujeito dessa linguagem não é assim um sujeito em si, idealizado e essencial: ele é, ao mesmo tempo, falante e falado, porque, através dele, os outros se dizem. Introduz-se a presença do Outro no discurso (o que parece ter sido bem captado por Daniel Herz e pela Cia. de Teatro Atores de Laura, ao apresentarem protagonistas multifacetados e a multiplicidade de experiências expressa nessa multiplicidade de sujeitos, ou ao se preocuparem com a presença do coro). A diferença das formas anteriores de expressão, não mais se percebe a relação entre um Autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer) e, sim, a posição que ele pode ou deve ocupar dentro de um contexto, como indivíduo.

Também a riqueza temática e a abrangência de visão que isto pode trazer ficam evidentes – mesmo que, nessa multiplicação de enfoques, o enunciado não seja nem imediatamente visível, nem tampouco inteiramente oculto.

Os trabalhos da Cia. de Teatro Atores de Laura – nos quais Daniel Herz assinala sua coautoria, mantendo-se como criador do argumento e da dramaturgia – tratam de temas importantes universo urbano atual:

– a questão de qual é o lugar do jovem no mundo, sua tentativa de descobrir “o que é que eu vim fazer aqui” (A entrevista);

– a questão da violência, a constatação de que todos nós somos passíveis de cometer um ato violento, mesmo se eternamente procurando amor (Cartão de embarque);

– os encontros e desencontros amorosos entre pessoas que não se conhecem e, como os quadros de Escher, se transformam, se metamorfoseiam (Romeu e Isolda).

Essa simples definição temática não consegue resumir a capacidade de captação de todo um universo, não apenas jovem, mas, sobretudo, atual: no jovem protagonista que vem para a entrevista que lhe dará o emprego desejado, os desacertos e defasagens em relação a esta “ordem”, suas inquietações e ansiedades por não conseguir nela se situar – mesmo que atribua isto ainda às circumstantias, ao que está em torno (pessoas e coisas), mais do que à própria inadequação e mal-estar em relação aos valores e regras impostos como normais. Até que, ao final, percebe, com espanto (em imagem de grande força e expressividade teatral), a figura que resume toda essa ordem e seus aspectos antes apenas entrevistos: o Pai – confronto seu, inevitável, com uma sociedade patriarcal, isto é, estabelecida em nome do Pai, sob a Lei do Pai.

Também a violência citada é mais que um ato violento em si, é o próprio violar, mesmo involuntário, dos que transgridem, na ânsia de ir adiante e seguir sua própria “viagem” ou trajetória – e para isso veem morrer (ou têm que matar) situações, valores, pessoas, que vão sendo deixados para trás nessa partida sem retorno, nessa busca de inauguração de algo novo e ainda indefinível, seja um trabalho, um lugar, um amor. Essa leitura que fazemos é apenas ilustrativa da abertura das obras apresentadas – que nos fazem lembrar a expressão de Foucault, ao buscar definir “o que é um autor”: a ausência é o primeiro lugar do discurso. Expressão que sintetiza a validade e a importância do trabalho autoral que vem sendo realizado por esses grupos.

Mas o que aqui assinalamos em termos de autoria pode ser estendido a todo o processo de produção desses grupos. Processo do qual (por haver outro trabalho, o de Dudu Sandroni, a respeito) assinalamos apenas alguns aspectos: primeiro, que não é fácil:

– […] a gente tem uma visão muito romântica da profissão – que até se justifica – mas ela tem rotina, horários, um lado insuportável… (Suzanna Kruger – Cia. de Teatro Atores de Laura)

Que é um processo exigente também porque, em todos os grupos, mesmo havendo divisão de tarefas,

– […] cada um faz mais de uma, ou várias […] coisas – conserta cenário, pinta, desmonta,
carrega caminhão, divulga […] E os atores têm que aprender a ser completos: fazem oficinas – bonecos, clown, aprendem algum instrumento musical – e estudam, inclusive teoria. 
(Célia Bispo -Cia. Teatral Nosconosco).

Processo que exige imaginação, criatividade para

[…] produzir barato sem abrir mão do bom acabamento, com atenção a detalhes – gestos, desenho, limpeza – e sobretudo ao trabalho de ator (João Batista – Cia. Dramática de Comédia).

Processo que exige ainda o aprendizado de uma vivência em grupo e de grupo, capaz de gerar a coesão e a confiança, um conviver, meditar, desintoxicar o stress, com uma dinâmica própria e diversa da que é vivida nesta sociedade competitiva e individualista do “cada um por si”. O que faz, por exemplo, com que dois dos grupos (Cia. de Teatro Atores de Laura e Cia. de Teatro Medieval) trabalhem com o apoio de profissionais experimentados neste sentido, para ter um olhar de fora sobre o que eles não veem, pois, como resume Carmen, que atua junto à Cia. de Teatro Medieval, na vivência em grupo e como grupo é preciso administrar o caos sem tentar abafar o caos, administrar as pessoas, os conflitos, as vitórias, as dificuldades, a relação entre as pessoas, apesar de sua individualidade.

Processo, portanto, que não só exige como resulta em uma forma de produção diversa, e não só quanto a seus meios.

Resgatar e revalorizar a experiência, recolher as vivências e possibilidades de cada um e os transformar em matéria comum, encaminha ao enriquecimento que essa troca traz:

– Eu aprendia muito com as crianças e as crianças aprendiam comigo. Havia uma troca muito grande. Nós aprendíamos todos juntos. Ensinar eu não sabia. Sabia pesquisar junto. (Lúcia Coelho – Grupo Navegando)

– […] é algo religioso, no sentido do religar e mesmo […] (Rogério Blat -Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian)

– […] Até para a escolha de personagens, todo mundo decora tudo e faz tudo, cada um faz e trabalha em cima até se ter várias visões de um personagem. (Ernesto Piccolo, – Oficina de Criação de Espetáculos do Centro de Artes Calouste Gulbenkian) E permite a continuidade – que é também experiência cumulativa, aprofundamento do próprio trabalho: – […] a experiência de ver um trabalho crescendo. (Lídia Kosovski -Cia. de Teatro Atores de Laura)

E permite, com essa continuidade e com esse crescimento, estabelecer parâmetros de avaliação do próprio trabalho, quer trabalhando em esquema de repertório (muitos dos grupos retomam, reveem ou remontam os próprios trabalhos), quer buscando – […]entender por que as coisas estão ou são daquele jeito dentro do espetáculo […] e por que se sente necessidade de ir introduzindo coisas novas: [no caso do grupo] a carroça, a gestualidade, o clown, a música ao
vivo […] 
(Célia Bispo – Cia. Teatral)

O que permite, por sua vez, uma coerência interna entre os trabalhos, o que vai dando ao grupo uma identidade, um rosto próprio.

Portanto, se, na “cultura jovem” que caracteriza este final de século, o onipresente mercado só vê as possibilidades de um excelente mercado consumidor, sustentado por uma sociedade neoliberal a que só interessa “democratizar” o consumo, mantendo-se elitista, racista, autoritária e excludente no que se refere a poder e posses; se, nesta sociedade do simulacro, só interessa a esse poder uma mídia com a função “pedagógica” de garantir o status quo direcionando a futura elite dirigente, pode caber – ou está cabendo – ao teatro, que é, por definição, transgressão e consciência, pesquisar, pensar e ver o que mexe com a gente, aquilo que a gente tem vontade de falar.

Mesmo que com isso o que hoje é apenas entrevisto desemboque na visão e no confronto com o Pai – imagem-símbolo desta sociedade. Ou que esse confronto apareça quando se ousa decotar no corpo sociocultural o que se apresentava encoberto para – sem agressividade ou até bem-humoradamente – ir descobrindo novas formas:

– na recusa ao autoritarismo de classificações ou definições impostas;

– na des-individualização ou coletivização da autoria;

– na criação de formas associativas ou cooperativadas de produção;

– no aprendizado de um conviver em grupo, dando espaço ao Outro, ao diferente,

A possibilidade de nele ter um socius ou aliado, de uma sociedade coerente com o sentido original do termo. Pois, como lembram os gregos, o estético – base mesma do trabalho e criação artística, < aesthesis que é o sentir em comum.

Por isso, comovidos pelo que vimos e ouvimos, ao longo dos meses, desses sete grupos do Seminário, ousamos afirmar desse teatro jovem, inquieto e inovador: E pur se muove (E, no entanto se move) – apesar de.

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Maria Helena Kühner
Ensaísta e dramaturga

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Obs.
Este texto foi retirado do quinto volume dos Cadernos de Teatro, editado na gestão de Aderbal Freire-Filho, no Teatro Ziembinski, durante o ano de 1997. Além do texto acima, O Seminário Permanente de Teatro para a Infância e Juventude, com coordenação de Dudu Sandroni, resultou numa série de bate-papos e textos que podem ser encontrados em nosso site:

Textos
Em Boa Companhia –  Dudu Sandroni
Processo de Criação – Lucia Cerrone

Bate-Papos
Daniel Herz e Susanna Kuger (Companhia Teatro Atores de Laura)
Sura Berditchevsky
Célia Bispo e Roberto Dória (Companhia Teatral Nosconosco)
Ernesto Piccolo e Rogério Blat (Oficina de Criação de Espetáculos Calouste Bulbenkian)
Marcia Frederico (Companhia de Teatro Medieval)
Lucia Coelho
João Batista (Companhia Dramática de Comédia)