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Num mundo tão rápido, em que os feéricos desenhos da televisão, os excitantes vídeo-games e os filmes de ação holywoodianos sequestram o espírito das crianças e jovens. É preciso também desenvolver a disposição para assistir a uma peça de teatro, e aprender a conservar a calma que isso exige. E assim é preciso pensar num teatro infantil não como animação de festas, mas como a criação de um momento em que temas significativos e belas formas de arte possam ser recebidos com respeito e admiração pela criança. Temas como morte, separação, amor, etc. devem ser encarados com naturalidade e mesmo com alguma gravidade, mas, sobretudo não devem ser apresentados de forma diluída e supostamente “inofensiva”, com medo de que a criança não possa ou não queira enfrentar essas questões.

Isso não quer dizer que uma peça de teatro para crianças não possa ser leve e engraçada. Também pode… é claro…, mas sem que se perca, por isso, a oportunidade de dar vida a algo de “necessário” que há por trás de toda obra: uma necessidade que pulsa na poesia do texto e nas motivações genuinamente artísticas dos artistas e técnicos envolvidos no espetáculo.

Outro dia, no próprio Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau, eu estava conversando com um jovem ator e ele me explicou porque produziu um certo espetáculo de uma determinada forma. Disse-me ele que a sua ideia inicial era fazer uma homenagem a um mito da nossa música popular. Mas achou que nem todos gostavam daquela artista, cuja vida e obra queria mostrar, e então resolveu incluir na temática outras cantoras para que mais pessoas gostassem do espetáculo e este tivesse sucesso. Talvez se ele fosse mais fiel ao seu desejo inicial, e respondesse de fato à sua “necessidade” íntima, o espetáculo resultasse menos diluído na sua proposta final e se mostrasse mais contundente como uma declaração de amor de um artista pela arte de outro artista, o que era afinal o sentido do projeto.

A ambição artística, inseparável de uma certa dose de vaidade pessoal, o desejo de conquistar um “lugar” no mundo, depois, no mercado, e de ganhar dinheiro são aspirações legítimas mas não podem ser o motor propulsor que leva alguém a abrir o pano sob pena de se acaba fazendo um teatro oportunista.

A necessidade de trocar com o mundo algo que seja fundamental no plano das ideias, da sensibilidade, da emoção, é que deve fazer com que alguém pegue uma caneta ou ligue o computador para escrever uma cena dramática ou que dê início ao esforço de uma produção teatral. O resto é consequência. E, por paradoxal que possa parecer, só assim as outras demandas pessoais serão saciadas, porque pode-se muito bem ganhar dinheiro, reconhecimento, fama e até um “lugar” no mundo e no mercado de forma não oportunista, sem sacrificar a satisfação plena de “necessidades” genuínas. Não se pode abordar a arte com a voracidade com que se entra em um shopping center.

Teatro oportunista é aquele em que se pensa, primeiro, no gancho, no mercado. O resultado, no teatro para crianças, são peças que mais parecem animação de festas, que prestam um desserviço ao teatro, por rejeitarem a dimensão ritualística de que o teatro se alimenta, o que não significa ser excessivamente solene, pois o ritual pode ser irreverente. Esse tipo de teatro é um desserviço porque não realimenta o artista, não lhe abre possibilidades de crescimento dentro do seu ofício e não ajuda a resolver um dos grandes problemas atuais do teatro: falta de público. Falar sobre a crise de público no teatro não é nada original: lamuriar-se pelo excesso de poltronas vazias numa casa de espetáculos sempre pode ser visto como uma ladainha mais uma vez repetida por mais um artista de teatro.

Quando constatamos como, através de uma experiência concreta, ao invés de falar de crise, Blumenau faz com seu festival, uma oposição feroz ao longo processo de esvaziamento da atividade teatral, fica mais animador pensar em saída para a crise. Um festival que vai direto ao centro da questão: formação de plateia. Casas lotadas em sessões sucessivas em pelo menos dois teatros, apresentações em escolas e parques, tempo e espaço para reunirem e pensarem juntos os que fazem, ou pelo menos tentam fazer, da arte de representar a sua profissão. Vivemos um impasse de produção teatral: o preço do ingresso é caro para quem vai ao teatro e é barato para quem faz. Esse hiato de financiamento decerto deve ser preenchido pelo Estado, na sua expressão municipal, estadual ou federal. E é exatamente o que eu vi com tanta alegria nessa semana em Blumenau. De onde saíam tantas crianças?

Num mundo cada vez mais atomizado, individualizado, em que não há lugar para qualquer experiência coletiva que não seja de “massa”, o ato de ir a uma sala de espetáculos e compartilhar com outras crianças uma experiência teatral viva não deixa de ser um ato de resistência à tendência ao isolamento e à solidão imposta no meio da massa. Palmas para Blumenau, que cria a possibilidade de um espaço para a criança descobrir o sonho, a poesia, os valores éticos e estéticos, enfim, a “necessidade” do que está contido numa boa peça de teatro. Palmas para o artista que se dispõe não apenas a apresentar-se num palco, mas também a refletir sobre o que faz com outros artistas, num debate vivo embora eventualmente penoso, pois falar do que fazemos num palco e ouvir o que os outros pensam sobre isso muitas vezes não é nada fácil: exige um desprendimento que muitos artistas, infelizmente, perderam no meio do caminho…

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Daniel Herz
Dramaturgo e diretor da Companhia de Teatro Atores de Laura, do Rio de Janeiro.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 3º  Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1999)