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Em minhas leituras sobre a Idade Média e sobre os povos nômades do mundo (assuntos que muito me agradam e que despertam o meu interesse, fazendo com que eu dedique boa parte de meu tempo a eles), verifico que nestes pontos e é claro em vários outros, as alegorias, o imaginário e a fantasia fazem parte do capital cultural e social dos que vivenciam estas e nestas realidades, demonstrando uma impressionante relação entre o real e o irreal, entre o concreto e o abstrato.

Qual a relação disto com o teatro para crianças? Tudo.

Na Idade Média, as pessoas se davam ao direito de imaginar e criar universos fantasiosos no mesmo nível do mundo real. Quem já não se emocionou com as histórias do Rei Artur e do Reino de Camelot. Das histórias emocionantes de dragões e cavaleiros mágicos. De bruxas e de magos que conviviam com príncipes e clérigos mendicantes.

É impossível estudar a Idade Média sem entender o imaginário do homem medieval. Ouvir uma história era muito mais importante do que ver o fato concreto. Um dos pontos que une o medievo ao nomadismo é justamente a necessidade premente de viajar sempre e construir seu território em movimento (1), alargando-o. Este viajar está também diretamente relacionado com o contar histórias. A criação de lendas e mitos passa muito por estes viajantes que carregam consigo uma cultura e que se interage com outros olhares sobre o mundo.

Acredito que a multiplicidade de olhares e fantasias faz com que a criatividade também seja impulsionada e desafiada a cada momento. Possibilitar o ato criativo está relacionado com a treinar esta criação, fazer com que elementos diversos sejam adicionados ao conhecimento espontâneo e assim seja possível criar e recriar.

Para o medievo isto estava posto no seu cotidiano. Imaginar fazia parte de seu dia-a-dia. Para os povos nômades, esta criação está ligada à sua cultura e até mesmo à sua sobrevivência.
Em nosso mundo atual, sedentário, onde tudo aparece pronto e acabado, cabe-nos um exercício ainda maior para buscar esta criatividade e desenvolvê-la.

Tenho percebido que a escola tem um papel fundamental neste processo e o teatro pode ser um instrumento eficaz nesta busca da criatividade. Infelizmente a escola ainda não percebeu esta sua função. Vamos a alguns pontos que me parecem de relevante importância.

Uma das questões que mais tenho me deparado é a falta de uma política nas escolas para o estímulo à escrita, pelas crianças, de literatura dramatúrgica. As crianças nas aulas de Língua Portuguesa, aprendem sobre romance, poesia, conto, crônica, novela, soneto. Onde está a dramaturgia? Tenho certeza que a maioria de nossos alunos sai da escola depois de no mínimo 11 anos sem nunca ter tocado em um texto de teatro. Aí se explica porque temos tantos e tão conhecidos poetas e romancistas e ainda tão poucos dramaturgos reconhecidos por toda a sociedade. O que falta é estímulo e não criatividade.

Neste ponto é claro que o teatro, arte que está diretamente ligada à dramaturgia, padece até hoje de falta de público e de pessoas que sequer se deslocam a uma sala de espetáculo, justamente porque nunca tiveram uma experiência efetiva com os diversos elementos componentes da arte teatral, sendo uma delas a dramaturgia.

Outro ponto que também faz com que o teatro na escola seja mais um desserviço do que uma contribuição, é fazer com que professores não habilitados sejam obrigados a desenvolver uma “pecinha de teatrinho” para o dia dos pais e das mães, sem lembrar dos terríveis dias do Índio e da Árvore (isto é assunto para outro artigo). As direções de escolas, supervisoras e Secretarias de Educação, informam aos professores, principalmente da educação infantil e ensino fundamental, para prepararem algo para datas comemorativas, normalmente recaem estas responsabilidades para os professores de educação física, artes e professoras de 1ª a 4ª série. Nenhum destes profissionais está habilitado para desenvolver esta atividade. Inclusive não possui em suas grades curriculares da graduação uma disciplina específica de artes cênicas.

O que acontece é uma encenação medíocre e com crianças que nem sabem o que estão fazendo ali. Os pais aplaudem, as diretoras ficam felizes e no outro ano tudo continua na mesma. Falta uma política responsável no tocante ao fazer teatral nas escolas. Por que não colocar à disposição das escolas interessadas e de alunos interessados um profissional de teatro que trabalhe permanentemente com as crianças para desenvolver um processo de trabalho responsável e legítimo e não mais um “eventozinho” sem sentido prático?

Acredito que seria muito mais salutar termos um projeto do “teatro da escola” e não o “teatro na escola”.

Não quero criar atritos torpes sobre este assunto. Realmente não podemos mais suportar estes espetáculos de péssima qualidade que ainda invadem nossas escolas com uma dramaturgia irresponsável, uma estética questionável e atores pobres de conhecimento da arte de interpretar. Não estou jogando todos na vala comum. Temos excelentes trabalhos que desenvolvem este projeto, mas isto também não é regra geral, já assistimos coisas (sim, coisas) que jamais poderiam estar numa escola.

O que ocorre é um desconhecimento da arte teatral em todos os níveis. As direções de escola pouco ou nada conhecem sobre teatro e suas linguagens, os professores também, as crianças na maioria das vezes fazem qualquer coisa para estar fora da sala de aula, inclusive assistir teatro no pátio ou no ginásio.

Outra coisa que continua não me convencendo é o discurso de que o teatro na escola é formador de plateia. Desculpem os puristas, mas acho isto uma leviandade. Este projeto já existe há muitos anos em nosso país, muitos mesmo. E onde está a plateia que estava na escola há tantos anos atrás e que assistiu a estes espetáculos? Nossos teatros continuam vazios e nossos atores correndo sempre para tentar viver melhor.

Algumas vezes ouço alguém dizer que foi ao teatro porque na escola viu uma peça. Isto pode ser verdade, mas não podemos pegar uma exceção e transformar em regra. Temos que rever nossas táticas e principalmente nossos discursos. Em tempos de revisionismo em todos os escalões (políticos, religiosos, morais, etc), vale uma reflexão mais apurada sobre nossas estratégias discursivas, visto que estas atuais já estão velhas e caindo no descrédito.

Ainda reforço o papel determinante da escola como fomentadora de uma política teatral inovadora e de inclusão. Esta inclusão não pode ser entendida com democratismo barato e inconsequente. Às vezes tentar incluir todos pode levar alguns à exclusão, visto que impor é pior do que não incluir. A escolha ainda é uma forma de inclusão menos traumática.

Para que tudo isto se coadune é de suma importância que a criatividade esteja na ordem do dia. Dar ao ser humano a possibilidade de criar e ser feliz é o caminho mais eficaz para diminuirmos de forma drástica as enormes dificuldades que passam os brasileiros. As nossas crianças devem ser tratadas com espírito cidadão, que respeita a individualidade e mais do que isso respeita as diferenças culturais, sociais, de cor e etnia, religiosas, de opção sexual, e de imaginar e sonhar. Além disso é necessário instrumentalizar esta criança (que deseja aprender o fazer teatral) com os elementos constitutivos desta arte, como: dramaturgia, interpretação, voz, estética, etc. Sem esta instrumentalização a criança estará partindo para um voo no vazio e que não atenderá em absolutamente nada as suas expectativas. A frustração também é excludente.

Tenho certeza que um Dom Quixote de La Mancha ainda emociona, sobretudo porque ele se deu ao direito de imaginar… sonhar. Onde ele foi buscar a inspiração para seu sonho? Na relação entre o imaginário sugado da literatura cavaleiresca e no seu cotidiano. Temos uma belíssima história que nos move até hoje. Ainda bem… precisávamos de mais “Quixotes” num mundo tão cheio de “Bushs”…

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Bibliografia

(1) MARQUES, Ana Cláudia & BROGNOLI, Felipe Faria & VILLELA, Jorge Luiz Mattar. Andarilhos e Cangaceiros: a arte de produzir território em movimento. Itajaí: Univali, 1999

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Lourival Andrade Júnior
Diretor teatral. Especialista em teatro pela FAP – PR. Mestre em História Cultural pela UFSC. Coordenador do Curso de História da Facvest / Lages – SC. Coordenador do Ensino Médio do Colégio Univest / Lages. Diretor do Grupo de Teatro Universitário da Facvest. Premiado como diretor nos mais importantes festivais de teatro do Brasil (São José do Rio Preto, Isnard Azevedo, Universitário de Blumenau, Pindamonhangaba, Americana, entre outros).

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 6º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2002)