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A discussão sobre o teatro infantil, recorrente em encontros do gênero, levanta incansavelmente os mesmos problemas, como se fossem inúteis as afirmações, discussão e informações trocadas entre estudiosos, artistas e público: espetáculos mal realizados, feitos as pressas para poder atender a exigências de editais e concorrer a fundos de apoio, trabalho de atuação duvidosa, infantilização da linguagem e do gesto, e excesso de didatismo ou um nada a dizer generalizado no que diz respeito ao conteúdo e a dramaturgia.

Realizadores de festivais, selecionadores de espetáculos, críticos e analistas da arte teatral veem-se sempre às voltas com o terrível dilema de ter que escolher, entre uma centena de espetáculos produzidos dentro da categoria infantil, uma meia dúzia que mereça realmente ser visto pelo público.

Se o aspecto quantitativo é crescente, é de se lamentar mais ainda tanto investimento em troca de nada. Seria de se repensar o fazer teatral, sobretudo talvez defender uma aliança mais estreita entre educadores e criadores, do ponto de vista também das altas instâncias federais, investindo ao mesmo tempo na formação cultural das escolas para que seus dirigentes assumam critérios mais sólidos no momento de escolher espetáculos para mostrar a seus alunos.

E, sobretudo, que os artistas, os criadores teatrais realizem o teatro para crianças com a máxima seriedade, e como adultos ocupem o seu lugar no conjunto da produção teatral, buscando fazer o trabalho que as crianças merecem e nós também.

De um modo geral tudo já se disse sobre os famosos caça-níqueis, que fazem da produção do teatro para crianças unicamente uma mercadoria, um meio de venda de espetáculos onde o que importa é a venda e não o espetáculo, aproveitando-se da inocência ou descaso de pais, diretores de escolas e professores desavisados. Para estes criadores que fazem da arte comércio, não há mais nada a dizer, a não ser desejar que abandonem a arte teatral e optem por algum outro comércio menos prejudicial a formação de nossas crianças.

Mas o que dizer a todos os artistas e criadores teatrais que, embora desejosos de oferecer um trabalho honesto e criativo às crianças, cometem um rol de erros gritantes e igualmente prejudiciais, à criança e a arte. Inseridos no discurso sobre a alteridade, sobre a necessidade e importância de colocar-se no lugar do outro, a grande maioria dos realizadores de teatro para crianças considera que o caminho seja colocar-se no lugar da criança para poder falar com ela. Ainda que fruto da boa intenção, da tentativa de estabelecer um nível de linguagem inteligível para o receptor, estabelecendo a possibilidade de uma interlocução, esta atitude tem gerado também uma incompreensão básica evidente. Realizar teatro para crianças, ou realizar algum espetáculo que possa ser compreendido também por elas não significa colocar-se no nível delas, no limite da sua capacidade de compreensão e intelecção.

Se precisamos reconhecer os limites da compreensão da criança, não podemos esquecer que os nossos são mais amplos, e que, justamente, ao falar com ela ou para ela, precisamos colocar-nos no papel e no lugar dos adultos que somos. O que temos a dizer a criança deve ser maior do que o universo dela própria, justamente porque o nosso tende a ser mais amplo pelos anos e a gama de experiências que acumulamos ao longo de nossas vidas.

A ideia de que todos “temos uma criança dentro de nós” têm sua verdade poética, mas ao salvaguardar esta criança no adulto, ou faze-Ia aflorar no processo criativo não se elimina o fato de que esta ação é feita por um adulto, que como tal observa e fala sobre a criança que traz em si alem da evidente exigência de seriedade profissionalismo que se espera de um adulto na realização do que pretende apresentar.

Assim, fazer teatro para crianças não e fazer um teatro infantil (muito menos infantilóide) e também não e ficar repetindo o que (imagina-se) elas queiram ouvir. E assumirmos nosso lugar de adultos, de seres que por sua longa história de vida têm algo a mais a dizer a criança sem ignorar o lugar da fala do outro (a criança), mas assumindo o lugar de nossa própria fala. E este é não só o nosso papel, mas provavelmente é o que a criança espera de nós quando vai-assistir ao espetáculo que construímos. Um espetáculo teatral não pode se manter no nível do jogo infantil, da brincadeira de crianças, porque se assim fosse, ela iria preferir, com razão, levar este jogo com seus próprios amiguinhos, que o fariam bem e melhor do que nós.

As crianças com sua inteligência percebem claramente quando um adulto esta tentando dialogar com ela rebaixando seu próprio nível de dialogo, e não se sentem lisonjeadas com este comportamento, pelo contrario, têm sensação de que estão sendo subestimadas, dadas como incapazes de evoluir, de aproveitar a experiência e o conhecimento alheio. Elas são as primeiras s compreender a insuficiência e precariedade de nossos discursos quando passamos a limitá-las, e de um modo geral desligam-se da cena quando se lhes apresenta algo com este teor. Alem disso, se imitamos um modo de falar ainda em formação, (e o que é pior, uma imitação evidentemente falsa, estereotipada), abandonamos exatamente o lugar que ocupamos, ou deveríamos ocupar, a função exemplar que nos caberia assumir.

De alguma maneira este comportamento esta próximo da atitude dos pais que no diálogo com os filhos nunca têm nada a dizer a partir de suas próprias experiências, não trocam nem compartilham com eles o conhecimento adquirido, que lhes permitiria também colocar-se no papel de orientadores ou mestres.

De alguns anos para cá este papel de mestre esta sendo abandonado, e os adultos não estão assumindo papel algum frente à formação das crianças e ao colocarem-se no lugar delas, na tentativa de afirmarem-se seus amigos, esquecem-se de que o verdadeiro amigo ajuda o outro a crescer e fornece-lhe as ferramentas necessárias para ampliar sua compreensão do mundo, rever conceitos ou mesmo mudar suas atitudes.

Frente a um espetáculo teatral, a criança entrega-se ao encantamento, e espera que os adultos Ihe ofereçam um trabalho adulto, de qualidade, diferenciado do que ela costuma ver e, sobretudo diferenciado· do que ela própria seria capaz de realizar. Justamente por isso, talvez, reconhece-se nos trabalhos teatrais bem realizados, voltados preferencialmente para as crianças, a sua capacidade de encantar a todos, adultos e crianças. Mas estes são momentos raros dentro do conjunto da produção do teatro voltado para crianças.

O diálogo com a criança precisa é claro, encontrar canais de comunicação. Falar com a criança é sim encontrar estes canais, não e falar a linguagem dela, mas possibilitar-Ihe o entendimento de nossa linguagem, daquilo que desejamos dizer-Ihe através de nossa arte. E aí caímos no campo da pura arte, que toda ela tem como base à construção de imagens poéticas, tanto no campo da fala como no da construção cênica. O espetáculo poético será “entendido” por todos, a partir dos níveis e capacidade de compreensão de cada um, adultos e crianças.

Assim, nesta relação de seriedade com a elaboração do trabalho artístico, o desafio será sempre a construção da imagem poética. A presença desta é determinante para a concepção da arte teatral, seja no cenário, palavra ou jogo dos atores. Encontrar a forma ideal de construção de cada instante da cena e de sua dramaturgia é trabalho indispensável para a realização de uma arte teatral de qualidade, que encantará a todos, independente da idade que tenham.

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Eliane Lisboa
Doutora em Teoria Literária pela Unicamp/SP. É diretora da Cia. Teatral Cenareta, de Brusque, Cantadora de Romances (história oral em versos) e foi professora de dramaturgia no Curso de Artes Cênicas do Centro de Artes/ UDESC, de 1992 a 2003.

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Obs.
Texto retirado Revista FENATIB, referente ao 10º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2006)