Como a paulistana CIA UM pensa a criação de espetáculos infantojuvenis, centrando força no ator, na palavra e na complexidade interativa entre artistas e o público mirim

Utilizando uma linguagem minimalista com foco no ator, na palavra e no sentido mais sério e profundo da palavra ‘relação’, a CIA UM procura desmistificar a ideia que a criança contemporânea não embarcaria em processos “complexos” e profundos quando a linguagem adotada não terceiriza seu potencial de cocriadora da obra através dos artifícios tecnológicos alienantes disponíveis ou não adota uma certa forma de se fazer teatro “infantil”.

A CIA UM é composta por uma equipe dedicada e sensível de artistas, que não se esquivam em pensar processos artísticos também como processos de formação e debruçam-se sobre as relações de interação formativa que a arte capta, potencializa e pode manifestar. Apoiamos nosso trabalho em uma pedagogia teatral que valoriza o estímulo à emancipação artística dos cocriadores (adultos e crianças) e, por isso, feitores e participantes do mesmo fenômeno, manifesto na provocação com que costumamos assinar nossos espetáculos: “Um infantil para adultos, Um adulto para crianças”. Abrimos, assim, a oportunidade de reflexão sobre o conceito de encenação tanto na perspectiva de se pensar o processo de mediação que pode se dar por meio da linguagem e acesso ao universo onírico (polissêmico e imagético) da encenação, como nos espaços inventivos que se inauguram nos encontros interacionais dos coautores espetáculo-público.

E, assim, podemos manter o foco nas relações que se desdobram a partir de uma experiência estética pensada e organizada para proporcionar um campo de experiência que aparece, ressoa e cria condições de ressignificação da própria realidade. Existe o risco, mas, sobretudo, deve haver o conhecimento de causa. E a equipe artística é também composta por professores(as) que se dedicam 24 horas por dia a compreender essas relações e propor circunstâncias emancipatórias aos participantes de seus encontros, além de perceber na criação de um espetáculo uma relevante oportunidade para desdobrar tanto debruce prático.

Buscamos esclarecer como a concretude do fato teatral, no “aqui e agora” constitutivo de cada representação, se liga ao projeto de sentido que lhe define os traços principais e faz funcionarem atores, texto dramático, cenário, figurino, iluminação, etc., uns em relação aos outros. O ‘espetáculo’ passa a ser uma possibilidade de experiência significativa entre todos. O processo coletivo dos propositores das ‘obras’ criadas pela CIA UM vira uma manifestação criativa da invenção de sentidos sobre o mundo. E talvez, por isso, a escolha recaia em nos aproximarmos de coautores imersos nesse prisma de ressignificar e CRIAR a realidade: as crianças – nossos mestres e diretores fundamentais.

E, por fim, oportunamente vamos sendo tecidos pelas obras que nos cercam. E fisgados pelo primoroso material de vasculhamento do humano de que a literatura pode ser prenhe – e, assim, nos alçar a experiências transformadoras. Numa relação constante de interação com a obra literária e acreditando na sensibilidade a que tais obras nos expõem (a nós, ‘gente grande’, e aos ‘pequenos’), podemos formular e responder questões inquietantes. As crianças, por sua vez, na relação de participação lúdica procuram compreender o texto e relacioná-lo com o mundo à sua volta, construindo e elaborando novos significados ao que estão sendo convidados a participar. O incentivo ao contato com tais materiais que estimulam o imaginário infantil pode contribuir de forma significativa para uma sociedade que se dirige à alteridade, apoiada no exercício de cidadania e no respeito e sensibilidade ao diferente, uma vez que o outro se torna fundamental para uma experiência de compreensão da complexidade do mundo.

Hercules Morais

É ator, professor, pesquisador multidisciplinar e cofundador da CIA UM, atualmente circulando com a montagem teatral do clássico Oliver Twist, de Charles Dickens. Licenciado em Filosofia. Formado em Teatro pela PUC/SP. Licenciatura Plena em Filosofia pela Faculdade de São Bento de São Paulo. Passou por importantes centros do saber artístico: TUSP (Núcleo Artístico de Teatro da USP), CPT (Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho) e ULM (Centro de Estudos Musicais Tom Jobim – Universidade Livre de Música). Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IP/USP, desenvolve pesquisa na área da Psicologia Cultural Dialógica (Construtivismo Semiótico-Cultural), com ênfase em questões epistemológicas da relação subjetividade e cultura, psicologia e artes e como pesquisador do Laboratório de Interação Verbal e Construção de Conhecimento (IP/USP – desde 2013). Desde 2012 atua como Artista-Orientador e Artista-Coordenador no Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.

Obs.
Testo inicialmente publicado no Site Pecinha É a Vovozinha!