Crítica publicada no Jornal da Tarde
Por Francisco Medeiros – São Paulo – 08.09.1979

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O Vigor poético de Shakespeare, em versão infantil

Shakespeare está em cartaz para crianças, através de uma de suas mais fascinantes obras: Sonhos de uma Noite de Verão. Isto, por si só, já é uma perspectiva estimulante, sobre tudo não ser mais uma entre as incontáveis versões de Romeu e Julieta para animais, bonecos, ídolos de estórias em quadrinhos, etc., que nada tem a ver com Shakespeare e muito menos com teatro sério e preocupado com seu público.

O trabalho de adaptação resumiu-se fundamentalmente a seleção de algumas cenas da obra original, que pudessem guardar entre si uma certa organicidade, mantendo dois universos paralelos; de um lado um grupo de atores (que preparam a encenação d’A Mui Dolorosa Comédia da Crudelíssima Morte de Píramo e Tisbe; de outro os duendes e fadas habitantes da floresta: um prato ideal para a invejável fantasia da criança. Esses dois planos de ação dramática são desvendados por excitantes estímulos visuais. A produção do Grupo Acalanto não poupou esforços para realizar um espetáculo de grande envolvência e beleza. A concepção cênica dos dois mundos propõe um estimulante jogo, alternando uma atmosfera nitidamente circense de fácil identificação, com um mundo diáfano de cores, sombras, reflexos, sons estranhos e atraentes. Sob o aspecto visual tudo se integra harmoniosamente na tradução dessa dualidade: a estrutura básica da cenografia guarda em si várias propostas de espaço, grandemente valorizadas por uma iluminação sensível que sempre oferece uma nova surpresa aos olhos do público. Nada mais gratificante do que testemunhar o trabalho de um grupo que, acima de tudo, encara a produção de Teatro Infantil com o carinho e cuidado merecidos (o que normalmente é raro).

E também nada mais triste do que verificar que, em outros aspectos, O Sonho perde grandemente o impacto que poderia provocar.

As dificuldades do empreendimento exigem um elenco que domine razoavelmente o canto e a dança, que assim possa estar à vontade para entregar-se criativamente aos frequentes estímulos propostos pelo texto e pela música altamente sugestiva. Mas essa oportunidade é desperdiçada principalmente nos caso das personagens habitantes da floresta. Fica evidente a carência de recursos dos atores quando reduzem seus trabalhos a determinados gestos e movimentos rígidos e repetitivos, que acabam por impedir a criação do clima fantasioso, imprevisível e mágico, exigidos pelo espetáculo. Por essa razão, as cenas de floresta diluem-se quase sempre em meio a uma bonita luza, povoadas de seres confusos, monótonos e cujo canto é dificilmente entendido pela plateia: assim Titânia e seu bando de fadas, saltitam interminavelmente no palco, evidenciando o desencontro entre a ação desenvolvida e sua expressão física. O duende Puck, por exemplo, um dos personagens mais estimulantes de Shakespeare, perde muito de sua vivacidade e fascínio, ao escravizar-se a uma movimentação mais preocupada com imagem o fauno do que com sua essência.

Os intérpretes dos “seres humanos” conseguem melhor rendimento, embora por vezes a preocupação com a linguagem circense acabe redundado num excesso dispersivo de movimentação. Resultado: busca-se tanto a espontaneidade, o estilo direto de representação que o resultado acaba sendo uma sucessão de gestos característicos desse determinado estilo, mas sem organicidade, desligados dos personagens. Assim sendo, o rendimento geral do elenco fica um pouco a mercê da experiência e do talento de cada um, mais do que de um trabalho coletivo e integrado, o que parece ser também um problema de indefinição e timidez da direção.

Apesar de tudo não se pode ignorar que permanece o vigor do texto original, sua capacidade espantosa de sugerir imagens e situações, que encontram ressonância entre crianças e adolescentes, o que faz do trabalho do Grupo Acalanto uma opção interessante da atual temporada.

Serviço:

Sonho de uma Noite de Verão
Autor W. Shakespeare. Tradução e Adaptação livre: Rodrigo Paz.
Direção Musical: Sérvulo Augusto. Unidade Visual e Figurinos: Serroni e Augusto Francisco
Elenco: Andrea L’Abbatte, Carlos Nistal, Eleonor de Brito, Evelyn Erika, Maithe Alves, Paulo Maurício, Raul Santos, Roberto Arduin, Roberto Francisco, Rubens Brito, Suzete Martini e Tim. Produção: Grupo Acalanto. Teatro Anchieta.