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Parece estar havendo necessidade de criação de novos termos para designar novas manifestações de arte, que não cabem mais nos termos tradicionais. Grande parte da revolta provocada pelas mostras de arte moderna em certos meios decorre mais da usurpação dos nomes do que propriamente de uma recusa na sua aceitação. Um artista que reúna ferro velho retorcido e componha uma figura, ou que faça alguém sapatear na argila imprimindo-lhe formas bizarras, está sem dúvida “criando” algo. O erro é querer dar a essa criação um nome tradicional, quando se trata de um caminho novo na procura de nova forma de arte. Do mesmo modo é importante criar nomes novos para novas experiências com sons e ruídos, partidas do campo da música.

Esse fenômeno aparece vigorosamente no teatro adulto, tal como se dá nas artes plásticas e na música. O teatro infantil, contudo, sofre uma série de limitações pedagógicas e psicológicas relativas ao público a que se destina e que é necessário aceitar e compreender, sem atitudes conformistas que a extraordinária imaginação e fantasia infantis não deixam justificar.

Nesse assunto, bastante rico em ensinamentos foi o julgamento do último Concurso Nacional de Textos para teatro infantil, promovido pelo Serviço Nacional de Teatro.

O trabalho dispendido em ler mais de duas centenas de textos para teatro infantil foi uma boa maneira de aferir o tipo de coisa que se escreve para as crianças por esse Brasil afora. Sem cair em rigorismo excessivo e dando uma opinião honesta, cremos que cerca de noventa por cento dos autores que concorreram àquele concurso, não o deveriam ter feito. Davam a ideia de nunca, ou muito poucas vezes, terem lido peças ou assistido a espetáculos infantis de bom nível. Muitos pareciam estar tendo nesse momento o seu primeiro contato com teatro para crianças. Se isto é aceitável para concursos locais ou regionais, para um concurso de âmbito nacional é indesculpável. Talvez tenham sido atraídos pelo aspeto financeiro dos prêmios, ou quem sabe para sé sentirem realizados literariamente. O fato é que os autores estreantes ou de pouquíssima experiência em nada ajudam uma disputa dessa natureza. Ou por outra, ajudam muito pouco. Servem apenas para aferir as tendências e preocupações de certo número de pessoas, com ambições literárias, em sua tentativa de se comunicar com as crianças. Nesse aspeto da questão entramos no problema dos temas escolhidos para elas. No concurso notou-se louvável preocupação com a poluição ambiental e com a preservação das matas e das espécies animais, bem como a divulgação de ensinamentos e do folclore nacional. Isso tudo, porém, não é teatro. Pode ser transmitido pelo teatro, mas não é em si mesmo uma justificativa para ele. É preciso dar uma estória ou tema, ou a um ensinamento, um tratamento teatral dirigido às crianças. O excesso de didatismo, ou seja, a transformação do teatro em, aula, não é aconselhável. Teatro é teatro e aula é aula. Pode-se aprender fazendo teatro, mas o ensinamento, assim como um possível sermão, devem ser diluídos no texto, e fazer parte integrante de uma boa estória. Se dois bonequinhos conversam a respeito da melhor maneira de plantar uma árvore, poderão transmitir ideias boas e dados científicos com muito mais facilidade do que um professor dando uma explicação plana e impessoal. As crianças aceitam isso muito mais depressa, e se interessam muito mais atentamente pela ideia.

Mesmo os jogos dramáticos devem ser percebidos pelas crianças como uma brincadeira diferente, onde é possível ‘criar e participar ao mesmo tempo. E devem saber, de forma sutil e inteligente, que às vezes é ocasião de sentar-se e observar o que os outros fazem.

Uma das diferenças básicas entre a plateia infantil e a adulta, é que nesta última todos os seus componentes se colocam no mesmo plano, sem faixas etárias a distinguir, ao passo que no teatro infantil é necessário considerar separadamente os vários grupos de crianças de acordo com a idade. Assinala-se que a criança vê o personagem de forma diferente de acordo com aquela separação. As menores talvez na faixa que se estende desde os primeiros anos de vida até os seis ou sete, não sabem distinguir o ator do personagem, e para elas só existe o último. A máscara do personagem é a realidade teatral infantil, qualquer que seja ela. Os fantochinhos para as crianças menores têm vida própria, e o marionete se confunde completamente com o ator vestido de boneco, sem qualquer espécie de distinção. Mesmo na mão que manobra um fantoche bem à vista da criança aparece uma entidade ou ser com vida e individualidade próprias, e de nada adianta despir a roupa de fantoche, mostrá-la ao pequeno espectador e tornar a vestir, porque instantaneamente o personagem readquire sua vida própria. Também de nada serve a técnica que alguns usam, de se maquiar e vestir diante das crianças pequenas: ao afivelar a máscara, desaparece o ator completamente, para só ficar o personagem. O bicho-personagem continua a meter medo do mesmo jeito, quer se mostre ou não a ela, criança, que é o pai, o tio ou uma pessoa muito conhecida e querida que esta atrás dele.

As crianças se sentem intensamente fascinadas pela figurinha que se move manobrada à sua vista. Ela abstrai completamente os fios, os dedos ou o braço que manobram, para concentrar a atenção na entidade resultante daquilo tudo. A percepção da presença de um ator por trás do personagem se forma lentamente no amadurecimento psíquico da criança. Talvez só depois de seis ou sete anos de idade esteja a criança preparada para aceitar a existência do ator, ou estabelecer diferenças mais sutis no espetáculo teatral. Até esse ponto, o ilusionismo que faz a realidade teatral, exerce uma ação muito intensa sobre o pequeno espectador. Aquela comunicação envolvente feita de abandono e identificação que constitui a ligação ator-espectador, própria do teatro dramático realista no caso dos adultos, simplesmente não existe para as crianças pequenas. As distinções entre teatro dramático e épico, entre integração ou separação ator-personagem não têm sentido no teatro infantil. Poderemos partir de uma encenação de tal ou qual tipo, conforme queiram os diretores, mas o efeito sobre a plateia infantil é sempre o mesmo. A criança não precisa de cenários ou caracterização de personagens completos. A imaginação infantil, que é extremamente forte, supre tudo quanto falta, sem que ela mesma disso se aperceba. Foi muito instrutivo um exemplo que vimos, quando algumas crianças foram convidadas a fazer desenhos sobre uma peça a que acabavam de assistir, e na qual figurava uma borboleta, feita por uma atriz que não usava asas. Várias crianças desenharam a borboleta com asas, e quando alguém perguntou porque haviam feito assim, já que a borboleta da peça não tinha asa, ficaram perplexas, sem entender bem a pergunta. Na realidade estavam sem entender o motivo pelo qual um adulto perguntava aquilo, visto que sua imaginação tinha sido capaz de suprir perfeitamente bem tudo o que faltava na caracterização do personagem. Conclui-se então que é suficiente um toque sugestivo um elemento de cena e já está criado para a plateia infantil o cenário ou o personagem.

Outra diferença básica entre teatro infantil e adulto, relacionada com a já mencionada, é que no primeiro qualquer coisa no cenário ou dentro do espetáculo é, em vez de fingir ser.Uma caixinha de fósforo que um garotinho puxa por um barbante, dizendo que é um trem, na realidade infantil é mesmo um trem, como uma boneca com a qual a criança se identifica e toma como “filha”, deixa de ser boneca para efetivamente ser uma criança que sente fome, pensa, age, etc. A imaginação infantil supre de muito bom grado todas as falhas, transformando a ficção em realidade, a sua realidade. E isso devemos admitir na vida quotidiana, jamais tentando desmentir os sonhos e as fantasias infantis os “amigos” e “personagens” invisíveis para os adultos, que as crianças criam e afirmam existir em torno delas. Um grande e frequente erro dos adultos é chamar a isso de mentira da criança. Certos pais dizem que os filhos são muito mentirosos e vivem inventando coisas que não existem, sem perceber que isso não passa de simples manifestação da irreprimível fantasia infantil, que tende a se expandir em qualquer direção que possa. É essa imaginação, essa necessidade de dar expansão à fantasia, essa necessidade de criar, que na criança é incoercível, que torna o seu teatro fundamentalmente diferente do teatro adulto. Não são apenas as intenções, o tipo de estória ou as soluções encontradas, mas basicamente a maneira pela qual esse teatro deve ser apresentado. No concurso em pauta, quanto à estória propriamente dita, houve muita falta de originalidade e excesso de adaptações. Não que a adaptação seja um erro por si mesma, mas o que falta em originalidade deve ser suprido por sobras de imaginação, com diálogo leve e muita vivacidade. O trabalho de adaptação deve ser feito por quem tenha domínio completo da técnica de teatro, dono de uma boa “carpintaria teatral”. É muito preferível tentar escrever uma estória ou texto baseado em tal ou qual assunto, do que fazer uma adaptação,quando não se domina completamente a técnica. A dialogação ruim ou a má construção da peça traem a falta de vivência de teatro (teatro, tout court e sem adjetivos). Fábulas de Lafontaine ou Esopo, contos de Grimm, Perrault ou Andersen campearam às soltas, inspirando textos muitos fracos, e escritos sem o menor conhecimento dos princípios mais elementares de psicologia infantil e pedagogia.

Ou outro defeito muito encontrado nos textos apresentados foi o abuso de certos tipos de “pastelão”, e o apelo frequente ao mau gosto, quando não ao sadismo. Alguns autores souberam dialogar razoavelmente, mas falharam na colocação do conflito de modo adequado.

É evidente que qualquer espetáculo infantil envolve, tanto quanto o adulto, um conflito, ou seja, uma contradição que deve ser resolvida. Ele se constitui no problema central da peça, e é frequentemente caracterizado de forma primária pela luta do BEM conta o MAL, a qual tem de ser apresentada e resolvida em nível infantil. Muita gente pode pensar que a luta BEM x MAL só pode atrair ou motivar as crianças se houver um vilão e um herói em disputa, com a vitória do último, dentro da filosofia de que “o crime não compensa”. Nada mais falso. A luta do Bem contra o Mal assume, ou pelo menos pode assumir, características muito mais sutis, onde a vitória não é fruto de um combate frontal, e sim o resultado de uma ideia de transformação, sempre muito bem aceita e compreendida pelas crianças. Desde que o Homem apareceu sobre a face da terra, as forças do Mal estão sempre se transformando nas forças do Bem, sejam elas as do fogo, das águas, dos ventos, dos explosivos ou da energia nuclear. Todas elas, todas sem exceção, apresentam-se ao Homem pela primeira vez na sua forma destrutiva, para depois serem aproveitadas de maneira útil. O primeiro homem que presenciou o fogo “caído dos céus”, deve ter tremido de pavor em sua caverna, vendo a floresta se incendiar e os animais fugirem em pânico. Isso não impediu um descrendente seu de usar o mesmo fogo para cozinhar alimentos e outro de descobir que esse mesmo fogo pede derreter metais para fabricar utensílios. O mesmo tipo de raciocínio se aplica às outras formas de energia, até mesmo à moderna e mortífera (quando mal aplicada) energia nuclear.

Essa ideia de transformação, como solução do problema central da peça está bem de acordo com a psicologia da criança, e é o motivo pelo qual a vimos defendendo há muito tempo como a tese mais importante existente dentro do teatro infantil. Isso está bem justificado: a criança logo no início e sua vida já percebe que ela parte do erro em direção ao certo. Só depois de algumas tentativas frustradas é que aprende a fazer direito. Só se faz corretamente desde o início aquilo que pertence ao domínio do instinto. O que é aprendizado vai sempre do errado para o certo. Mesmo a criança que cometeu uma pequena falta, sabe que pode receber um castigo proporcional a ela, ao fim do qual estará redimida perante os adultos (pais ou mestres). Ela pagará a sua falta com uma punição qualquer, e voltará completamente recuperada ao convívio dos grandes. Não existe castigo eterno” na compreensão infantil. Criança não sabe o que é eternidade. Por isso o castigo da morte ou aniquilamento do MAL (ou seja do “vilão”) dentro do teatro infantil é simplesmente absurdo e contraproducente. Devemos ensinar às crianças de todas as formas possíveis, sutis ou declaradas, tranformar um mal num bem. Mas não há necessidade de adotar métodos ingênuos ou primários para isso. Quem tem um pouco de imaginação e conhece um pouco de técnica teatral, pode operar maravilhas nesse sentido. Basta ter sempre presente que a luta do BEM contra o MAL pode assumir as mais variadas características, como seja a luta entre a ALEGRIA e a TRISTEZA, entre o AMBIENTE SAUDÁVEL e a POLUIÇÃO, entre a SAÚDE e a DOENÇA, entre a CULTURA e a IGNORÂNCIA, entre a LIBERDADE e a ESCRAVIDÃO, entre a PAZ e a GUERRA, e tantos outros. Em resumo, a alma e o coração do teatro infantil devem, a nosso ver, girar em torno de um tripé: CONFLITO, TRANSFORMAÇÃO, REDENÇÃO. Com um pouco de imaginação e de técnica teatral, naturalmente.

Outro ponto que consideramos fundamental em teatro infantil é o da participação da criança, isto é, a sua integração ou vinculação emocional ao espetáculo. O simples ludismo, assim rotulado, pode eventualmente transformar-se em algum dos tipos de jogos dramáticos, sem incidir no teatro propriamente dito. Este pode perfeitamente conter elementos lúdicos, combinados com alguma espécie de interpretação, seja pelo gesto, seja pela voz. Não somos, evidentemente, contra experiências novas em teatro infantil. Achamos, ao contrário, que deve haver uma renovação constante, que é fonte de progresso. O teatro, contudo, só pode ser assim chamado se conservar suas características fundamentais como forma de arte que exige algum tipo de presença humana direta. Pode se aproximar muito da vida quotidiana sem jamais se transformar completamente nela. No teatro para crianças o mesmo fenômeno se repete. A criança como espectador não deve ser chamada para dentro do espetáculo. A extrema vulnerabilidade da criança aos estímulos e excitações do tipo que ocorre muito em teatro aconselha a que só excepcionalmente e num instante dado ocorra a participação direta e física da criança espectadora. Isso não deve, contudo, ser transformado em fundamento ou base de um sistema. Mesmo a participação física e direta, admitida momentaneamente em certos casos, deve partir espontaneamente da criança, e não acontecer por provocação do autor ou do diretor. Se a criança em certo momento sentir um impulso de participação no espetáculo, ela que o faça. Os autores serão instruídos para contornarem habilmente as dificuldades que sempre surgem nesses casos. Também consideramos errado reprimir a participação infantil física e direta. O problema deve ser contornado e não reprimido, especialmente entre crianças menores. É claro que nesse assunto a participação exclusivamente emocional dada pela atenção concentrada e pelo silêncio da criança, é uma das formas mais brilhantes de êxito que um diretor pode conseguir para o seu espetáculo.

Quanto ao controvertido problema da identificação infantil, é preciso deixar claro que a criança se identifica de formas diversas com personagens da peça, de acordo com o meio em que vive. É falso que elas se identifiquem sempre com o herói e torçam contra o vilão. É provável, mas não certo, que a criança que vive em ambiente tranquilo de paz e amor se identifique bem com o herói convencional que o autor colocou em sua estória. Se vive em ambiente muito severo ou sujeito a repressões violentas e castigos corporais, é mais que provável que se identifique com a criatura perseguida na peça, possivelmente o vilão. Se vive em ambiente livre e descontraído, gozando de certa liberdade, pode muito bem identificar-se com um personagem travesso ou daninho, do tipo “pedro malazarte”, “saci pererê” ou Eulenspiegel. Dizendo de maneira diversa, é frequentemente o problema da classe social ou do nível econômico que determina a tendência à identificação. Em experiências de que participamos com teatro infantil, crianças faveladas se identificaram facilmente com o criminoso perseguido pela polícia, por encontrarem nele elementos de semelhança com seu próprio pai, tio ou primo marginais da sociedade e mal vistos por essa mesma polícia.

Em resumo, aconselhamos os jovens dramaturgos a que leiam bons textos para teatro infantil e vejam o maior número possível de espetáculos, procurando fazer juízo crítico. Ao lado disso, muito útil é o estudo de psicologia infantil e pedagogia, mesmo porque há excelente pedagogos que tentam fazer teatro infantil sem conhecê-lo bem, e bons teatrólogos que falham sob o ângulo pedagógico. O importante é fazer o casamento ideal: teatro-pedagogia. A leitura dos livros de Piaget e artigos de pesquisadores como Catarine Dasté e outros, ajudam a aumentar os conhecimentos básicos. É também muito útil comparecer e tomar parte em debates, congressos e mesas redondas sobre o assunto. Os seminários de dramaturgia são especialmente indicados para quem quer aprender e progredir, notadamente aqueles onde a análise e a crítica de textos e espetáculos seja feita por gente altamente qualificada para isso. O restante é feito de vivência teatral direta, fazendo parte de bons grupos de teatro e convivendo com autores, atores e diretores de bom gabarito.

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Oscar Von Pfull
É escritor, jornalista e crítico teatral. Dramaturgo especializado em teatro infantil, suas peças mais conhecidas são A Árvore que Andava, Um Elefantinho Incomoda Muita Gente e Libel, a Sapateirinha. Reside em Santos, São Paulo.

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Obs.
Este texto foi retirado da edição especial da Revista de Teatro da SBAT, referente ao Seminário de Teatro Infantil de 1975, organizado pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, do MEC, realizado no Auditório Salvador de Ferrante da Fundação Teatro Guairá, em Curitiba, no período de 3 a 7 de fevereiro de 1975.

Fazem também parte desta Revista os seguintes textos:

Apresentação do Seminário de Teatro Infantil – 1975, de Orlando Miranda de Carvalho e Beatriz Veiga
A Criança e a Linguagem Televisual, de José Renato Monteiro
A Coragem de Fazer Teatro Infantil, de Maria Helena Kühner
A Propósito de um Concurso de Textos para Teatro Infantil, de Oscar Von Pfull
Desenvolvimento da Linguagem Teatral da Criança, de Helena Barcelos
Possibilidades do Teatro como Processo Educativo, de José Antônio Domingues
Observação Pessoal sobre o Julgamento de Textos para Teatro Infantil, de Zuleika Mello
O Mundo Subjetivo da Criança e sua Interação com o Teatro, de Monica Laport
Realidade Atual do Teatro Infantil no Estado da Guanabara, de Ana Maria Machado
Teatro, Educação Tridimensional, de Joana Lopes