Crítica publicada em jornal não identificado
Por Pedro Dantas – Rio de Janeiro – Out 1948

O leitor já foi assistir ao Casaco Encantado? Não? Então vá. O inteligentíssimo crítico de teatro deste “Suplemento”, Sr. Roberto Brandão esclarecido, informado, meticuloso e atento que sabe atocaiar as mínimas falhas de um espetáculo, pois que os vive, a todos, com uma intensidade que permite a visão do conjunto não se perder na observação do detalhe, embora nenhum lhe escape, esse crítico excepcional em quem o conhecimento do “metier” não matou ou abafou a qualidade humana de espectador que, afinal de contas, é a primeira – o Sr. Roberto Brandão, com a autoridade que lhe vem de todas essas virtudes, já disse todo o bem que pensa daquela experiência de teatro infantil.

Delicioso espetáculo, com efeito – peça direção, interpretação. O texto da Sra. Lucia Benedetti nos pareceu a audição uma pequena obra-prima do gênero, que não é fácil. Contamos sem surpresa um triunfo a mais na série da Sra, Morineau, em verdade, uma admirável artista. Outro para o Sr. Graça Melo: Bruxo e Bruxa são criados do mesmo nível. Todos os outros interpretes muito bem nos seus papéis sem uma nota destoante a desmerecer o espetáculo em seu harmonioso conjunto, do qual destacaríamos, ainda a Sra. Maria Castro e o Sr. Fregolente.

Não é porém o desejo de emitir opinião sobre teatro, invadindo atribuições alheias que nos traz a estas considerações. É que a direção, aliás, magnífica, do Sr. Graça Melo, estreante como diretor, veio ao encontro destas “Perspectivas”, “mostrando” na cena algumas das operações que tanto nos tem custado descrever e analisar. Ouçamos, a respeito, o Sr. Roberto Brandão: “Outra coisa: a sobriedade, a contenção com que, inventada uma solução, às vezes um verdadeiro achado (o Sr. Graça Melo, como diretor) manter-se na justa medida de seu uso, sem descambar para a demasia banalizante e anuladora. Exemplo: as intervenções da vovozinha na narrativa e o respectivo recurso plástico de interromper a ação, paralisadas as figuras em meio aos respectivos movimentos e gestos a cada uma das intervenções”. Um achado realmente. E de grande utilidade para este nosso estudo.

Vejamos os dados do problema. O texto supõe uma narrativa, feita pela Vovozinha e entrelaçada com a objetivação dos episódios narrados. Solução plástica: as figuras que vivem a narrativa da vida, param no tempo, imobilizadas, o gesto em meio a palavra ou a frase em suspenso, a cena congelada enquanto a narradora intervém.

Ora, que representam essas intervenções da narradora? A volta ao sistema de tempo do plano da realidade, que interrompe o curso do tempo no plano da narrativa. Na verdade, o que o plano da história narrada nos apresenta, é o mundo subjetivo, povoado de sujeitos de oração. Sujeito de ação, mesmo, só a Vovozinha, que por isso mesmo não se congela quando a ação teatral se transfere para a vida imponderável dos sujeitos de oração. Pelo contrário: ela continua a fazer o seu tricô, enquanto se movem as sombras que sua narrativa comanda. As sombras é que, dependentes dela, não poderiam mover-se quando ela muda de plano e de sistema de tempo.

O sistema de tempo do plano da história narrada merece, aliás, uma referência especial. O que o assinala, na peça, é um personagem especialmente inventado para isso: o “Relógio”. Pois bem: esse “Relógio” obedece à narradora passivamente, mas, por outro lado, domina o curso do tempo no sistema próprio da narrativa. As horas que marca são prolongadas ou abreviadas, à vontade, uma vez que o “Relógio” marca é o tempo do plano subjetivo em que se movem os sujeitos da oração. A incapacidade de agir dos personagens da história, tão bem marcadas pela solução plástica (mas na verdade, muito mais do que apenas plástica) do Sr. Graça Melo, incapacidade que corresponde à sua condição de fatos sujeitos, sujeitos de oração, que vivem do sopro alheio e assim, compensada pelas novas propriedades resultantes da imponderabilidade, ou seja, da imaterialização.

Aí temos, pois, ilustrados, representados objetivamente e esclarecidos alguns dos problemas que temos estudado e que são muito mais fáceis de mostrar no palco do que dizer.