Em uma das vezes em que, como jornalista, atuante em São Paulo, entrevistei o diretor de teatro mineiro Gabriel Villela, que estava em cartaz com sua premiada versão de Os Saltimbancos, de Chico Buarque, ele me declarou que o mundo talvez estivesse precisando menos de Shakespeares e Molières, e mais de Irmãos Grimm, Andersen, Esopo… Ele se referia à importância da imaginação, da fantasia, de estimular o sonho nas pessoas, a partir de fábulas e contos de fadas… Isso realmente nunca vai sair de moda. Um conto de fadas, com seu poder transformador, oferece significados em muitos níveis diferentes e enriquece a existência da criança de diversos modos. Mais que isso: faz a criança amadurecer. Há um mundão imaginário pronto para ser desenvolvido dentro da gente, desde a mais tenra idade. E que, sem dúvida, nos transforma.

Sempre penso nessa resposta de Villela quando reflito sobre por que fazer teatro para crianças. Faz-se teatro para as crianças pela força das simbologias, das metáforas, das histórias contadas com o coração, não com a razão. Faz-se teatro para crianças pela eficiência disso tudo atuando no imaginário infantil com muita potência transformadora. Uma frase bem colocada, com ideias menos escancaradas explicitamente ou realisticamente, e mais sugeridas pelas rédeas soltas da imaginação, será levada para a vida toda de uma criança que a ouvir sentadinha na plateia de um teatro.

Atuar no imaginário é mais eficiente do que o dedo em riste das lições de moral. Não é necessário invadir a imaginação da criança com as chamadas regras de conduta. Não é buscando passar mensagens pedagógicas ou psicológicas que um autor cria verdadeiramente uma dramaturgia infantil. Vale mais a pena, e é até mais honesto, tentar contar livremente uma história e deixar que a criança se identifique, que a criança a vivencie por si mesma. Teatro infantil não tem a obrigação de encerrar em si uma bela lição construtiva. Teatro infantil pode e deve querer apenas ser arte ou querer apenas divertir. Isso vai ser mais proveitoso e ensinar mais do que a peça que parece escrita para ser encenada dentro de uma sala de aula. O melhor é tentar dar dimensão dramática para nossos conflitos mais íntimos. Para isso basta querer falar de si com absoluta honestidade. Fale de seu quintal – e você estará falando com o mundo. Muita gente já disse isso nos meios literários – e é a mais pura verdade.

Quanto aos temas, todos – sem restrições – já são bem passíveis de virar assunto de peça para crianças. Cada vez, felizmente, derrubam-se mais tabus. Em minha trajetória de quase 30 anos como crítico desse setor na cidade de São Paulo, já vi pais se levantando irados da plateia, pegando os filhos pelas mãos e saindo no meio da peça, bradando pelos corredores: “Não trouxe meu filho para ver tristeza!” ou “Vamos embora, não temos de ver ninguém morrendo!” A morte é mesmo um caso sério no teatro para crianças. O já saudoso diretor e dramaturgo Vladimir Capella, morto precocemente em 2015, foi exemplar e notório ao ocupar o palco de suas melhores peças infantis com incríveis e eloquentes cortejos fúnebres, sem medo de escancarar a vida real na cara das plateias. Os pais custam a compreender que falar de morte é falar de vida, afinal, não existe uma sem a outra. Não é à toa que há muitas mortes nos enredos dos chamados contos de fadas universais, seja os que foram escritos, sejam os que foram recolhidos da tradição oral popular pelos estudiosos e pesquisadores. E esses contos nasceram muito mais cruéis nas abordagens do que eles são hoje, recontados no século 21. O mundo atual, tentando ser asséptico e politicamente correto – e com a ajuda da edulcoração difundida pelos filmes dos Estúdios Disney –, fez o lobo mau ficar bonzinho demais.

Mas felizmente houve avanços. Na temporada deste ano em São Paulo, ficou em cartaz – com absoluto sucesso – o espetáculo A Princesa e a Costureira, por exemplo, com temática homoafetiva para crianças. Foi a primeira vez que vi esse tema em uma peça para crianças – crianças mesmo, não adolescentes. Enredo: A princesa está prometida para o príncipe, mas, ao comparecer ao ateliê de costura para provar seu vestido de noiva, descobre muito afeto e muitas afinidades com a jovem costureira. Nasce ali um amor que vai revolucionar o reino. O tema, baseado em livro de Janaína Leslão, é explorado na peça da companhia Teatro da Conspiração, de Santo André, com muita responsabilidade e delicadeza, provando que não há mais temas ‘cabeludos’ demais para as crianças. Toda discussão é válida no palco, desde que sejam assuntos tratados com bom senso e honestidade. Claro, estamos falando de seres humanos em formação, por isso o teatro infantil não aceita leviandades inconsequentes. Mas isso também não significa que haja temas proibidos. É certo que determinados tópicos da vida ainda não são do interesse das crianças, mas tachá-los – a priori –  de temas proibidos é uma atitude castradora inconcebível.

Abuso da didática

O teatro para crianças surgiu no Brasil muito atrelado à educação, como complemento de uma atividade escolar. Isso vem desde os tempos dos jesuítas, que, no período de colonização do País, praticavam fundamentos teatrais em suas pregações. Com o tempo, essa relação teatro-escola virou uma relação delicada. O teatro para jovens e crianças pode até conseguir complementar a tarefa dos pais e educadores, desde que não abra mão de sua condição de obra de arte, ou seja, se o artista estiver consciente das boas intenções didáticas, mas livre do compromisso de transmiti-las a todo custo.

Uma peça de teatro vai ser melhor, mais bem-feita e bem escrita se simplesmente conseguir causar algum tipo de reação livre na plateia mirim, seja de estranheza, de encantamento, de frustração, de desconfiança e até de repúdio. Se a arte for capaz disso, estará contribuindo para construir uma pessoa mais liberta, uma pessoa capaz de procurar entender sozinha quais são os limites entre bondade e maldade na vida real. Sem ter de se submeter aos chavões e às receitas prontas de felicidade, a criança se torna mais fantasiosa, portanto mais inquieta e, ao mesmo tempo, mais lúcida para enfrentar a vida – sejam as maldades da vida, sejam as alegrias da vida, sejam aquelas situações, muito mais comuns do que a gente pensa, em que maldade e bondade estão absolutamente mescladas e confundidas na vida real.

Em abril de 1952, com organização da Unesco, surge o 1º Congresso Internacional do Teatro Infantil, realizado em Paris. Consta que houve a participação de 15 países, inclusive o Brasil, e que foi nesse congresso que se começou a falar uma frase que hoje é bem debatida e também polêmica: “O bom teatro infantil forma a plateia de amanhã.” O perigo dessa frase é justamente o quanto ela embute de compromisso do teatro com as ferramentas de educação e com seu caráter pragmático e moralizante.

A questão do ‘aproveitamento’

A visão da criança como o “adulto de amanhã” já foi responsável por muita coisa equivocada que se fez nas peças de censura livre. Como já disse, acredito que o teatro não precisa ter a obrigação de fazer parte do processo educativo. Outra frase que virou obsessão nas escolas, por conta desse ‘superdidatismo’ programático, é: “Vamos fazer o aproveitamento do espetáculo.”  É preciso ter muito cuidado com esse tipo de abordagem, porque pode afastar os alunos do teatro, em vez de atraí-los. Não há nada mais chato e improdutivo com os jovens do que transformar arte em obrigação. Basta ver o caso da literatura nas escolas, explorada nas salas de aula com muito menos prazer do que deveria.

O modelo mais convencional de escola, no Brasil, impõe, muito frequentemente, conhecimentos já elaborados, em lugar de estimular sua busca, de tal forma que, se o aluno simplesmente repetir tudo aquilo que o fizeram aprender, seu rendimento já será considerado positivo. Em vez de pensamentos espontâneos, valorizam-se as tarefas a cumprir e os ‘decorebas’. Assim, no caso do teatro, o que será que os educadores entendem por “aproveitamento do espetáculo”? Com certeza, a resposta não passa pela valorização do jogo, do símbolo, do faz de conta, do voo de imaginação, pois tudo isso pressupõe uma tal liberdade de fruição da obra artística que não caberia nos limites estreitos do pensamento de mestres que valorizam mais a eficiência da cobrança do que a amplidão da descoberta.

Mas nessa confusa e ainda tateante relação entre teatro e escola, não se pode apontar vilões. A estrutura é complexa. A conjuntura é delicada. A situação de trabalho dos professores nas escolas públicas, sobretudo, é muito perversa: muitas horas de dedicação, condições bem precárias, espaços muito ruins. O que se observa nas escolas, em geral, é uma estrutura de exceções, não de regras, ou seja, o teatro se dá bem dentro do quadro disciplinar de um estabelecimento de ensino quando há o empenho individual, absolutamente solitário, de algum mestre sensível à causa do teatro. Quando esse(a) professor(a) deixa a escola, seja por qual motivo for, morre o teatro, até que no corpo docente surja outra iniciativa artística teimosa e corajosa.

Seja como for, um dos maiores pecados ainda cometidos nos palcos vespertinos de teatro pelo Brasil afora é o do excesso de intenções didáticas. Não é preciso ser explícito em tudo. Criança é capaz de entender sugestões, simbologias. Arte é feita de alegorias, de metáforas, de associações de ideias. Estranheza é saudável. Explicar é redutor sempre. Subestima a criança, facilita demais. A criança tem a capacidade, sim, de interpretar, à sua maneira, o que vê. É função da arte fazer pensar, não facilitar em nada em nome do sucesso de mercado, do senso comum ou da unanimidade burra. Foi-se o tempo em que os enredos de peças infantis careciam da linearidade aristotélica de começo-meio-fim. Hoje, com os acessos facilitados para todo tipo de conteúdo, formatos, linguagens, tecnologias, as crianças já chegam ao teatro preparados para entender histórias com muitos flashbacks, com vaivém de narrações, até com fluxos psicológicos de consciência… Os criadores não podem ter medo de ousar. Muitas e muitas vezes os adultos são menos receptivos a brincadeiras de linguagens e experimentações de formatos do que os próprios filhos.

Isopor e cartolina

Felizmente, a meu ver, diminuíram muito no Brasil aquelas montagens amadoras oportunistas que cobravam ingresso como se fossem profissionais, repetindo a estética massificada de filmes da Disney, obviamente sem a grandiosidade de produção do cinema, ao contrário, com cenários de isopor e cartolina e figurinos de fantasia de bufê infantil. Ainda há? Sim, muitos caça-níqueis inescrupulosos ainda tomam conta do setor. Há muito pouco tempo, o que a gente via, nos palcos, de Cinderelas, Brancas de Neves, Pequenas Sereias (Ariel) e até Pocahontas, era uma coisa inacreditável – e repetindo até diálogos e músicas em playback dos filmes, sem o mínimo cuidado de adaptação para uma dramaturgia legítima.

Hoje, quem continua fazendo isso, quem ainda não respeita criança no teatro, na minha opinião, é quem não está querendo enxergar que isso mudou, porque não está indo ver o trabalho dos colegas em cartaz. É fundamental que a classe teatral veja teatro infantil, porque fazer teatro compreende, em minha opinião, a tarefa obrigatória de ver “o que” e “como” os outros estão fazendo, para estabelecer parâmetros, querer crescer e vencer limites.

E quero encerra este artigo mais uma vez alertando para os perigos capciosos de se chamar peças infantis de ‘pecinhas’. Desde que iniciei minhas atividades de crítico de teatro para crianças e jovens, nos anos 1990, ouço muitos diminutivos quando querem se referir ao que já chamei várias vezes em meus textos de “essa arte maior feita para menores”. Sempre foi comum ouvirmos: ‘Vamos ao teatrinho ver uma pecinha bonitinha com nossos filhinhos!’ A frase até embute um certo afeto. Hoje todos diriam: “Mas que fofo!” Ou seja, ela não teria – em princípio – nada de grave, se não contribuísse para reforçar um preconceito: o de que teatro infantil é ‘menos’ teatro do que o teatro para adultos, ou “teatro infantil é um trampolim para o adulto”, ou “o público de hoje será o público de amanhã”, esse tipo de raciocínio limitador e equivocado. Por isso, comecei a usar essa espécie de bordão em minhas matérias de jornal, como se eu respondesse a todos: “Como assim? Pecinha?! Eu vou ao teatro e pronto! Pecinha, não. Pecinha… é a vovozinha!”

Dib Carneiro Neto

É jornalista e dramaturgo, editor-responsável pelo site Pecinha É a Vovozinha!. Mantém uma coluna semanal de críticas de teatro infantil no site da revista Crescer (Ed. Globo).

Obs.
Este artigo foi originalmente publicado no número 11 da Revista do Fenatib (2016), editada em Blumenau (SC). Posteriormente foi publicado no Site Pecinha É a Vovozinha!