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Olhares atentos para o palco. As luzes se apagam e a gritaria é geral. O palco se ilumina e o jogo entre atores e plateia começa a se delinear. Tudo sempre está por um fio. O público formado em sua maioria por crianças de diversas faixas etárias pode levar o espetáculo à glória ou ao fracasso absoluto.

Normalmente as crianças são levadas a penetrar no mundo do espetáculo proposto pelo grupo que o encena, por meio de cores fortes, figurinos detalhados, cenários requintados e uma sonoplastia que pontua a encenação, às vezes com sons, outras vezes com músicas. Quanto aos atores, ainda sobram as quedas desnecessárias e a necessidade de buscar o riso fácil e traiçoeiro, além de vícios corporais e falsetes vocais antiquados e ultrapassados. Não podemos acreditar que todos os elencos estão despreparados, obviamente que não, principalmente aqueles que se dedicam a uma pesquisa constante em relação ao trabalho do ator, independente de estarem se apresentando para crianças ou adultos. O ator deve pesquisar seu trabalho a todo tempo e sem restrições que possam podar ou limitar sua pesquisa. O ator deve estar preparado para qualquer personagem, e para isto sua bagagem e sensibilidade devem estar sempre afiadas. Tudo isto é muito visível quando se fala de teatro para crianças, acredito que neste tipo de espetáculo, o ator está mais exposto às suas limitações. Quando estes desafios não são encarados de frente, a saída mais prática e menos inteligente tem sido as facilitações e banalizações do espetáculo como um todo, desde técnica até interpretações.

Crianças estão sempre atentas ao desenrolar do espetáculo, mas nem sempre estão ligadas nos textos proferidos pelos atores/personagens, e neste ponto aparece o real problema em nossos dias. O vale-tudo está na ordem do dia. O invisível torna-se uma arma perigosa aos ouvidos e mentes.

Adaptações de péssima qualidade, textos que não se importam com uma linguagem compreensível para crianças, lições moralistas e muitas vezes preconceituosas, povoam a pseudo-dramaturgia que se apresenta em nossos palcos pelo Brasil. Em certa medida grandes dramaturgos e dramaturgas do teatro para criança são esquecidos pelos nossos grupos. Para citar alguns Sylvia Ortof, Maria Helena Kühner, Maria Clara Machado, Ilo Krugli, Vladimir Capella, Guto Greco, Fátima Ortiz, entre outros.

Nestes 5 anos de Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau, onde sempre estive na comissão de seleção dos espetáculos, foram assistidas mais de 300 fitas de vídeo e materiais gráficos de grupos de todo país, e a quantidade de textos reconhecidos como de boa qualidade é muito pequena. Claro que bons autores, ainda desconhecidos, foram assistidos e elogiados no festival, mas o crescente número de textos de qualidade questionável é preocupante. Por isso este meu alerta.

O que fica é um certo descaso com a dramaturgia para crianças, o vale-tudo novamente mostra sua cara. Escrever para criança requer um senso de responsabilidade e de conhecimento do universo infantil, que com certeza a grande maioria dos autores que se aventuram por estes caminhos não conseguem sequer convencer os adultos, muito menos as crianças. Escrever para crianças requer entender o seu pensar e o seu brincar, o seu tempo e sua falta dele, a sua repetição e persistência, sua audácia e coragem ou a falta delas, é deixar com que a criança que fomos arranque as armaduras e mordaças que nos foram impostas pelo tempo dos adultos e do trabalho. Escrever para crianças é não se deixar “enquadrar” (neste momento faço referência a Maria Teresinha Heimann por sua instigadora obra no Salão de Artes Plásticas – Cidade de Itajaí/2001, que através de caixas e textos nos faz entender mais a sociedade “quadrada e enquadrada que vivemos”), é sonhar acordado e dizer que o fantástico mora ao seu lado, ou dentro de si. Escrever para crianças é muito mais imaginar através das palavras e sentidos do que amontoar gags e palavrório imbecilizante.

Quando há uma preocupação do autor com o todo da criança, do lúdico ao real (entendido pelo ponto de vista dos adultos), não podemos eliminar o público infantil do mundo que o cerca, menos fantástico que seus desejos. Por isso é necessário mostrar à criança que este planeta pode ser transformado e que o país em que ela vive pode ter uma vida mais igualitária e generosa. Que pode passar de espectadora dos fatos para agente concreta e transformadora de sua realidade social. O social não pode estar desatrelado do lúdico. Envolvermos a criança num mundo que não existe e não existirá, é tão criminoso quanto incutirmos ideias derrotistas e fascistas através de nossas práticas. A liberdade, o coletivo, os direitos humanos, a luta contra a corrupção e a falta de ética, são alguns temas que podem estar presentes em espetáculos para crianças, independentemente do espaço, personagens e período que a peça ocorre. Bons exemplos disto são as peças “A Viagem de um Barquinho” de Sylvia Ortof e “Putz, a Menina que Buscava o Sol” de Maria Helena Kühner, peças escritas para qualquer tempo e idade.

Atualmente “alguns” tentam nos convencer que a globalização é a única saída e que as distorções sociais serão aplacadas pela onda neoliberal. Muitos acreditam nisso. E os nossos olhos se deparam a cada dia com mais miseráveis, violência, desrespeito ao meio ambiente, escândalos políticos de toda ordem, desemprego e “maquinização” do homem. Fazermos um teatro engajado não significa panfletário, mas responsável. A “arte pela arte” é muito bela aos parnasianos. O mundo precisa de crianças eticamente preparadas para mudar o que deve ser mudado e criar alternativas menos autoritárias para os que virão. O teatro também é responsável por isto. Claro que existem os alienados, e não são poucos. A estes só resta a mera passagem pela vida sem deixar nada de construtivo e inovador, apenas “papagaiaram” pela vida, somente.

Volto a insistir que a discussão sobre o social e o respeito ao diferente, devem estar presentes em nossas práticas teatrais e as crianças de hoje nos agradecerão num futuro não muito distante.

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Lourival Andrade Júnior
Diretor e ator de teatro. Professor de História Medieval. Coordenador do Curso de História da FACVEST/Lages/SC. Especialista em Teatro pela FAP/PR. Mestre em História Cultural pela UFSC, com dissertação em “circo-teatro”. Premiado como diretor em vários festivais nacionais de teatro, entre eles: São José do Rio Preto, Americana, Pindamonhangaba, Isnard Azevedo (Florianópolis) e Universitário de Blumenau. Membro da comissão de seleção das 5 edições do Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau e Debatedor em 2000 e 2001.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 5º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2001)