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Os dias das crianças de hoje – de classe média para cima, pelo menos – são cheios de brincadeiras e fantasias diferentes das que tínhamos à nossa volta quando éramos crianças. A gente não clicava muito para brincar, nem se rebobinava muita coisa, se é que entendem o que eu quero dizer. É claro que a maior parte das coisas que fazíamos, as crianças ainda fazem – brincar, “pintar e bordar” – mas sem dúvida há muitas novidades e desafios no campo que une hoje o tema da infância e o da cultura.

Entre as muitas questões que poderiam servir de entrada a essa zona de fronteira, sugiro uma: afinal, a infância está ou não mudando? E a partir dessa primeira questão chegaremos a outras tendências do debate contemporâneo sobre mídia, cultura e infância.

Phillippe Ariès já tinha deixado claro, na década de 1970, o quanto o conceito de infância é construído socialmente.(1) De uma cultura para outra, e de uma época para outra, variam as ideias sobre a infância, variam os papéis das crianças e varia a duração do que se entende por infância. Em um livro publicado no Brasil nos últimos anos, embora escrito na década de 1980, o americano Neil Postman denuncia o que chama de “desaparecimento da infância”: para ele, se a invenção da imprensa “criou” a infância – já que a generalização da leitura passou a demandar os longos anos em que a criança fica na escola, separada dos adultos – a televisão estaria se encarregando de destruir a infância. Tudo lhes é mostrado, lamenta Postman, acabaram-se os véus que protegiam os segredos adultos, diluindo-se a fronteira bem demarcada entre as gerações.

Só que a coisa não é tão simples assim. O educador inglês David Buckingham, por exemplo, faz uma crítica bem equilibrada às teorias apocalípticas do “desaparecimento da infância”. Em primeiro lugar, diz ele, essas teorias se apoiam em uma visão do público das mídias como uma massa homogênea e sem forma, e não como indivíduos com identidades singulares, e ainda por cima mediadas pela cultura e pelos diferentes contextos em que os programas de TV são assistidos, os jornais são lidos, as músicas ouvidas no rádio, o cotidiano enfim vivido. Em segundo lugar, essas teorias descrevem implicitamente as crianças como totalmente passivas e indefesas diante da manipulação das mídias. Por fim, a tese do desaparecimento da infância carrega em si um fatalismo, diz Buckingham, que deixa bem pouca margem para intervenções positivas.

Ele chama atenção para a imagem bem diferente da infância que emerge hoje no outro extremo do debate social sobre a infância e as mídias: ali, as crianças deixam de ser vistas como vítimas passivas e passam a ser entendidas como tendo uma “sabedoria natural espontânea” negada aos adultos. “Se a TV era uniformemente má, os computadores são uniformemente bons”, diz Buckingham, de certo modo ironizando o discurso determinista, segundo o qual as inovações tecnológicas naturalmente tornarão as crianças “sabidas, autoconfiantes, analíticas, criativas, tolerantes em relação às diferenças, socialmente conscientes, globalmente orientadas”, e assim por diante.

São duas visões bem diferentes da infância contemporânea, e de suas relação com a mídia. Na primeira, a mídia está acabando com a infância; na segunda, a mídia está levando as crianças ao esplendor de sua criatividade e inteligência. Ambas as visões, como nos aponta Buckingham, são marcadas por um determinismo tecnológico (a idéia de que a tecnologia conduz necessariamente a alguma coisa) e também por um essencíalismo (a idéia de que as “crianças” – ou “os homens”, “as mulheres” ou “os velhos” – são essencialmente alguma coisa). Por trás da primeira visão, está a concepção romântica da criança como um ser essencialmente indefeso e vulnerável; por trás da segunda, a concepção igualmente romântica da criança liberada, conectada, do “geninho tecnológico”.

A conclusão do autor me parece muito lúcida. Ele diz que nenhuma dessas visões dá “uma base realista para a elaboração de políticas culturais, sociais e educacionais que possam de fato habilitar todas as crianças a lidar com as realidades culturais mutáveis nas quais nasceram”. E que botar a culpa na mídia ou festejá-la de forma deslumbrada é “superestimar seu poder e subestimar as diversas maneiras como as crianças criam seus próprios significados e prazeres”. (2)

O velho ditado de que “criança é tudo igual” nunca me pareceu tão problemático como quando fizemos um estudo (3) em quatro diferentes locais de Florianópolis – uma escola particular de elite, e três públicas – uma perto da praia, outra em favela e outra no centro da cidade. Uma das perguntas que fizemos às crianças era muito simples: “o que você faz num dia comum, desde que acorda até quando vai dormir?”

Anotamos todas as referências que as crianças fizeram, e chegamos a algumas conclusões interessantes. Por exemplo: em todas as escolas urbanas, a TV era a coisa de que as crianças mais falavam, mas na escola da praia o que vinha em primeiro lugar era a brincadeira. Fazia sentido, já que era lá que as crianças tinham espaço para correr em liberdade, sem medo da violência ou do trânsito.

Outro dado que mostra o quanto os contextos sociais diferentes geram infâncias diferentes: somente as crianças da favela falaram muito de trabalho doméstico em sua descrição do cotidiano. Enquanto nas outras escolas a TV e a brincadeira eram sempre as duas atividades mais citadas, na favela a brincadeira só vem em terceiro lugar, depois do trabalho. Quando nos explicavam seu dia-a-dia, meninos e meninas de 7 anos daquela região, uma das mais violentas e pobres da cidade, contavam que cuidavam dos irmãos menores enquanto os pais iam trabalhar, limpavam a casa e faziam comida, sem poder ir brincar lá fora por medo dos tiroteios.

Por mais que saibamos da potência criadora da infância, não poderíamos imaginar que essas crianças em condições materiais tão pobres recebessem os produtos culturais da mesma forma que os meninos e meninas da elite. Estes, na mesma cidade, têm videogames e computador em seus quartos, e acesso aos mais maravilhosos filmes, peças de teatro, livros e jogos que se produz no mundo. Poderíamos ainda comparar esses indícios de diferentes infâncias com o relato de “um dia comum” feito em 2003 por uma menina de 11 anos, moradora de um assentamento do Movimento – Sem Terra em Campos Novos, interior de Santa Catarina, em outra pesquisa coordenada por nós:

“Acordo cedo, às seis da manhã. Acendo fogo, tomo café – da – manhã e vou pra a escola, que fica no mesmo assentamento. Ao meio-dia volto pra casa e almoço com a minha família. À tarde faço o serviço de casa, como lavar roupa, lavar touca e varrer a casa. Cuido do meu irmão de 3 anos. Toda tarde meus pais vão pra roça e eu fico com meus dois irmãos em casa”. (4)

Dados como esses reforçam a ideia de que é impossível falar das “crianças” em geral, em sua relação com as mídias e a cultura, sem levar em conta seus diferentes contextos socioculturais.

Podemos enriquecer essa discussão com a perspectiva dos Direitos da Criança. A noção da criança como agente da cultura e como sujeito social está na base de um movimento crítico que a partir da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, em 1989, vem pensando esses direitos nos campos da educação, da comunicação e da cultura. (5) Esse movimento afirma que as crianças têm direito à Provisão (a oferta de informação e de produtos culturais diversificados e de qualidade); à Proteção (contra produtos nocivos ao seu desenvolvimento); e à Participação (o direito de poderem também produzir cultura de modo pleno).

O direito das crianças e jovens à participação na produção de comunicação foi por sinal uma das bandeiras levantadas mais alto na IV Cúpula de Mídia para Crianças e Adolescentes realizada este ano no Rio. Quem esteve lá pôde se emocionar com o ativismo lúcido de jovens e crianças que representavam mais de 60 países. Uma cena que nunca vou esquecer foi a plenária de encerramento da conferência, quando em todos os momentos partiram das meninas e dos meninos as ideias mais brilhantes e as palavras mais certeiras.

O público ficou especialmente impressionado com quatro meninas adolescentes da Malásia, que mostraram uma reportagem que tinham feito em vídeo sobre sua visita ao Iraque, em 2001, antes da invasão norte-americana. No vídeo, em tom de diário pessoal, sete crianças de Kuala Lumpur visitavam crianças em escolas, hospitais e abrigos de Bagdá. Narrada pelas crianças, a reportagem mostrava imagens de um ponto – de – vista infantil, no melhor sentido da palavra: “nas salas de aula de Bagdá três crianças têm que dividir a mesma carteira”. Por três minutos – um longo tempo para nossos olhos acostumados com a TV comercial – olhares em dose de bebês órfãos da guerra sucediam-se na tela, ao som do Concerto de Aranjuez. Ao final, as próprias crianças – repórteres dirigiam-se às crianças iraquianas, numa mensagem que transpirava sinceridade: “Prometemos não descansar enquanto a ONU não retirar suas sanções sobre o Iraque. Por favor, sejam fortes, tenham esperança”. O vídeo terminava com a menina apresentadora dizendo: “A guerra e a política são jogos de adultos. Mas nesse jogo quem perde são sempre as crianças”.

Quando as luzes se acenderam, as meninas autoras do vídeo fizeram do palco um discurso, espontâneas, sem nem precisar olhar para os papeizinhos que traziam nas mãos: “Nós, os jovens do mundo, temos uma voz. Por favor, adultos, nos deem o direito de usar essa voz. Sabemos que ainda precisamos que vocês nos guiem. Se vocês derem um papel a uma criança, ela fará um lindo desenho. Com a ajuda de vocês, esse desenho se transformará em algo ainda mais rico. Mas, por favor: trabalhem conosco, não para nós”, disseram Amanda Khairul, Marisha Shakil, Sarah Chen e Jennifer Guan, ecoando uma das ideias centrais da Carta final, escrita pelo Fórum dos Adolescentes da IV Cúpula.

Resumindo o que foi dito: essa consciência aguçada das próprias crianças e jovens sobre seus direitos à cultura é, portanto, mais um traço que começa a emergir como característica do momento presente, e que deve ser levado em conta por aqueles que se dedicam à produção simbólica voltada à infância. Outro desses traços é a noção de que a experiência cotidiana das crianças, seu enraizamento sociocultural, faz uma enorme diferença na forma como cada criança recebe os produtos de arte e informação que nós, adultos, lhes oferecemos. As especificidades infantis, do ponto de vista da imaginação e do desenvolvimento cognitivo e subjetivo, são sempre matizadas pelas dramáticas diferenças nos cenários em que vivem as crianças de carne e osso. Um último traço característico da reflexão contemporânea sobre a infância e a produção cultural é a percepção de que os nossos discursos adultos sobre o tema marcam-se por um vaivém entre imagens contraditórias de como são as crianças de hoje: mais inteligentes ou mais consumistas do que “em nosso tempo?” Mais ágeis intelectualmente ou mais alienadas e passivas do que as crianças das gerações passadas?

Não há respostas simples a questões como essas, é claro. O que podemos fazer é, além de nos debruçarmos sempre mais criticamente sobre elas, buscarmos manter a tocha acesa: nessa corrida de revezamento, tratar de entregar às crianças de hoje algumas centelhas do que de melhor inspirou nossa própria infância, e alguns fósforos para que, caso ventos de novas direções para nós desconhecidas apaguem o fogo, elas mesmas possam reacendê-lo.

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Notas
(1) ARIES, Philippe: História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981
(2) BUCKINGHAM, David: After the death of Childhood: growing up in the age of electronic media. Cambridge: Polity Press, 2000. (p.57)
(3) Em conjunto com Isabel Orofino: O Imaginário Infantil e as Mídias: um estudo de recepção com crianças de primeira série em Florianópolis (Funpesquisa, 2000). Ateliê da Aurora
(4) Girardello, G: Será mesmo que criança é tudo igual?. Disponível no site Ateliê da Aurora
(5) Desse impulso fazem parte as Cartas e recomendações da UNESCO sobre a Criança e as Mídias (ver Feilitzen e Carlsson, 2002) e as Conferências de Cúpula sobre Mídia para Crianças e Adolescentes

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Gilka Girardello
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC, doutora em Comunicação (USP), mestre em Ciências Sociais (NSSR – Nova York).

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)