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Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite para participar desta mesa que me parece bem interessante. Não porque faço parte dela, mas pela diversidade das pessoas que aqui estão. Todas diretamente ligadas ao tema – o teatro de bonecos ou o teatro de animação – mas por caminhos e atividades distintos.

E uma honra para mim participar do 8º FENATIB. Este Festival representa, no meu entender, importante espaço de debate, de difusão e de troca de experiência para aqueles que se dedicam ao teatro para crianças. Acompanho durante muitos anos a dedicação e a competência de Teresinha Heimann. Sei que é a sua crença na arte que impulsiona o esforço para esta realização. Merecem, portanto, nossos aplausos, a Fundação Cultural de Blumenau, Teresinha e toda sua equipe.

Eu comecei fazendo teatro de bonecos no Grupo Revisão, no Rio de Janeiro, no inicio da década de 70. Depois passei para o serviço público e, durante muitos anos, estive mais ligado às políticas publicas e a política cultural. Se por um lado essas experiências afastaram-me do fazer artístico, por outro, me deram a oportunidade de ter conhecido de perto as realidades diferentes e a diversidade das artes cênicas em todas as regiões do pais.

Quando tomei conhecimento do tema desta mesa – a interpretação no teatro de bonecos – a primeira questão que me veio a cabeça foi refletir um pouco sobre a diferença entre interpretação no teatro em geral e no teatro de bonecos.  Claro que existem diferenças, embora a base seja a mesma que é a do próprio teatro. Substituo, inclusive, o termo diferença por complementação ou extensão porque o teatro de bonecos necessita do conhecimento do fazer teatral e exige um conhecimento que vai mais adiante, o de suas especificidades.

No sentido mais amplo do termo, interpretar significa dar vida. Eu definiria interpretação em arte como dar vida com autoria. Dar vida através de códigos de linguagem da comunicação não objetiva. O voo da criação artística deve assegurar-se de completa liberdade e ousadia, mas necessita também das balizas da dramaturgia, do perfil do personagem da encenação e da especificidade da linguagem. O impulso da criação artística voa – e deve voar alto – mas, em seguida deve planar e se ajustar no contexto da obra onde esta inserida.

O boneco ou o elemento que o ator lança mão para sua expressão aparece ou pode aparecer como um meio entre a criação e a sua expressão. O teatro de bonecos, além de lidar com a base de teorias do próprio teatro, do ator, de interpretação, lida ainda com a técnica que possibilita o meio entre sua criação e sua expressão.

Cada técnica de manipulação possibilita uma força de expressão apropriada que deva ser explorada em função do papel que está sendo criado. Isto tem sentido e acho que nos todos concordamos com isso.

A grande dificuldade é que não existe uma dramaturgia especifica para o teatro de bonecos. São raros os textos apropriados e, geralmente, são utilizados textos do teatro para atores ou adaptações de literatura e, em ambos os casos a interpretação do ator/do manipulador carece de orientação que auxilie a criação do papel e de indicações ou rubricas especificas.

Mas de que teatro de bonecos estamos falando? E qual o conteúdo da interpretação que estamos buscando?

É verdade que cada técnica como a luva, vara, marote, fio, mista, sombra, possibilita melhor uma interpretação. Imaginemos um Professor Tiridá, buscando um exemplo conhecido, interpretado com boneco de fio. Fica ate engraçado imaginarmos isso. O teatro popular de bonecos, na grande maioria, trabalha com a luva porque possibilita mais agilidade e força de expressão apropriada.

Sobre isto Álvaro Apocalipse, nosso querido Alvaro, fala muito bem no livro sobre Dramaturgia para a nova forma da marionete. Ele afirma com muita propriedade que a marionete (o boneco) não fala certas coisas o que quer dizer que nem todo texto do teatro convencional se prestaria a uma montagem desse gênero. Ele vai mais longe e nos instiga com uma reflexão contundente. Ele diz que o boneco, guardadas as proporções, é um instrumento assim como o violão também o é. Servem a algo que transcende sua materialidade que e a expressão artística. O boneco é pois um instrumento que serve a expressão do teatro.

Neste texto, Álvaro situa-nos no interregno entre o homem e o instrumento. Da luz ao campo que vai alem da materialidade e do objetivo e alcança o terreno da criação que e subjetiva, volátil e toca no sentido.

Eu assisti certa vez uma interpretação com boneco de fio onde – com um domínio técnico raro e uma interpretação exuberante – o boneco rebelava-se contra os fios que o manipulavam. Subia pelos fios e chegava ate a mão do manipulador obrigando-a a comandar outra ação que ele, o boneco, desejava.

Foi inesquecível. Mais brechtiniano impossível.

No Grupo Revisão, criei um bicho-folha que era, de certa forma um boneco de luva porque era todo vestido na mão apesar de que era em pedaços: os olhos, a boca etc. Era uma interpretação extremamente naturalista. A interpretação buscava um personagem em torno de como vivia meu bicho-folha, na natureza, embora com alguns componente caricatos e imitando o humano. Ele era sonolento, falava pausado com voz grave e tinha um tom assim de filosofo, de pensador. A empatia que este bicho criava com crianças era impressionante. Certa vez, uma mãe me procurou no camarim, no final do espetáculo, e me apresentando um menino de uns 7 ou 8 anos, disse que seu filho já tinha assistido  ao espetáculo umas três vezes. Contou-me também que, uma vez, saiu a foto do bicho-folha no jornal, na divulgação do espetáculo e ele recortou a fotografia e pregou na cabeceira de sua cama. Tudo que ele queria ali era ver o bicho-folha de perto. Diante desse depoimento, fui rapidamente vestir o bicho folha e o trouxe pra perto do menino. Quando ele viu, assim de pertinho, estendeu as duas mãozinhas querendo tocar no boneco e com a voz tremula baixinha murmurando: biiiiiiichofoooooolha… Era um ídolo que se incorporou no seu subconsciente. Aqui, me remeto mais uma vez ao texto do Álvaro Apocalipse, quando ele diz que o boneco legitima a informação para a criança. Dai, ser um excelente meio do teatro na educação. Mas este e um tema para outro debate.

Outra cena inesquecível pra mim foi num espetáculo do Ventoforte. llo Krugli tratava os bonecos numa linha mais brechtiniana. Era ate considerado no meio como um artista que não fazia teatro de bonecos e o utilizava num plano secundário ou como um meio de auxílio ao ator. Eu vi um espetáculo seu em Curitiba e, em certa cena, um boneco que ele levava de mão dada virava para a plateia e perguntava o que vocês acham que vale mais que dinheiro. Só vamos conseguir resolver este impasse – e era o conflito da peça – com alguma coisa que vale mais que dinheiro. Eu vi – ninguém me contou – eu vi uma criança chegar perto do palco tirar a bala da boca que estava chupando e entregou ao boneco.

Existem muitas teorias, regras que estudam a arte da interpretação. Não tenho a pretensão aqui de, em alguns minutos de conversa, avançar nem um pouquinho nas teorias x ou y. Preferi lembrar e contar alguns momentos que na minha vida, vendo ou fazendo, o espetáculo teatral foram inesquecíveis. E foram tantos que quando me lembro dessas experiências sinto o quanto tocaram minha emoção. Porque a interpretação de tal forma adequada ao personagem, ao texto, a encenação, a técnica alcançou a síntese de tudo isso.

Sobre o teatro de bonecos na atualidade.

“O teatro de formas animadas responde a uma necessidade muito atual de trazer de volta os símbolos, ausentes do homem moderno. O teatro de formas animadas e uma arte a serviço de ideias e emoções que não querem permanecer a nível consciente apenas mas, em tomando forma material, transcendem a própria matéria e revelam uma realidade invisível.” (Ana Maria Amaral, na coleção Texto e Arte, da Editora Edusp)

Uma transformação significativa aconteceu no teatro de animação do país, nas últimas três décadas. Mesmo diversificando a produção por diversos caminhos de estilos, este teatro avança sua trajetória com muita vitalidade. Parte significativa dos grupos de teatro profissionais existentes, no país, com esta característica de grupo e deste gênero. Na realidade, este teatro venceu inúmeras barreiras e descriminações por fatores que, na realidade, deveriam ser seus méritos. Primeiro, por sua origem de expressão popular, depois, por sua ligação com o teatro infantil.

Superou as dificuldades, alargou cada vez mais seu espaço no panorama artístico de Norte a Sul, conviveu com diversos estilos e tendências de todos os cantos do mundo e firmou nomes de grupos, dentre os mais respeitados dentro e fora do país.

Um componente forte da linguagem e a sua convivência com as artes plásticas, com a mímica, com a dança, e com pesquisas avançadas no campo da musica, da luz e de técnicas especificas. Isto tudo cria até uma área nebulosa de compreensão sobre as variações de conceito entre teatro de formas animadas, teatro de animação, teatro de objetos, que nada mais é do que um enriquecimento de suas infinitas possibilidades.

O intercâmbio com diversos países é outra característica deste fazer artístico. Aliás, um dos primeiros festivais internacionais que inauguram a ideia de “país-tema” é o Festival de Marionetes de Charle-Ville, na França, quando foi dedicado ao Brasil. O Centro UNIMA BRASIL auxilia a relação do movimento brasileiro com o movimento internacional. A aproximação do Brasil com outros países e, em especial, com a UNIMA é resultado do trabalho de artistas e estudiosos que conseguiram difundir internacionalmente a importância do gênero.

Outra característica do teatro de animação, além do incessante estudo, e a necessidade de aproximação de seus artistas e de seus estudiosos, o que talvez tenha concorrido para que sua entidade – a ABTB – sobrevivesse durante todo esse tempo superando também dificuldades.

Hoje, a realidade do teatro de animação mostra um quadro diferente de três décadas atrás. Alguns grupos criaram e mantêm verdadeiros “centres de referencia”, instalados em imóveis construídos ou adaptados com teatros, oficinas, bibliotecas, museus e acervos preciosos. Dedicam-se a produção, a experimentação e a formação de novos artistas. Em Curitiba, em Belo Horizonte, em Olinda, estão alguns deles em funcionamento permanente. Na Universidade de São Paulo, funciona um curso de pós-graduação, em nível de doutorado, na especialidade para onde vêm artistas de outros Estados e ali, em nível acadêmico, aprofundam seus estudos. Os Festivais também se consolidaram e se destacam no calendário cultural do país promovendo o intercâmbio e difundindo o que há de melhor no panorama internacional.

A Associação Brasileira de Teatro de Bonecos, mesmo passando por altos e baixos, pode ser considerada um símbolo de resistência. Um raro exemplo de entidade de natureza cultural que comemora, em 2004, 31 anos de existência com efetivos trabalhos realizados.

A diretoria eleita, em Janeiro de 2004, assumiu publicamente um compromisso: repensar a entidade a partir da sua historia que foi relevante, mas que necessita, agora, acertar seus passos, e enquanto entidade associativa, encontrar também um novo papel frente ao que foi construído pelos próprios artistas. Estamos experimentando o trabalho através de comissões e o resultado já aparece. Nosso boletim alcança o quinto numero. Sugiro que entrem em contato e acompanhem as noticias que vem de diversos pontos de dentro e de fora do pais.

Foi muito gratificante estar aqui durante estes dias com vocês.

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Humberto Braga
Profissional de Artes Cênicas. Especialista em políticas públicas na área cultural. Diretor de Produção e Ator. Especialização em Gestão Pública no Centro de Treinamento do Pessoal do MEC.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)