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Por Egeu Laus (*)

Para os que acreditam na Cultura como instrumento estratégico para a transformação política, econômica e social, a cidade do Rio de Janeiro estará enfrentando nos próximos anos seus mais importantes desafios.

…A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte….

Da música Comida com Os Titãs  – Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Sérgio Britto

Num mundo altamente globalizado, automóveis serão iguais em qualquer região da Terra. Só restará como identidade nacional o seu capital humano e social, sua cultura, responsável segundo o Banco Mundial por 64%do crescimento de uma nação.

Se a globalização nos traz um sentimento difuso de desenraizamento, é na Cultura que voltamos a encontrar nosso chão. Ela nos permite encontrar nossos iguais. As culturas populares serão ainda um escudo contra os excessos de um cenário mercantil transnacional extremamente agressivo.

Mais que isso, é certo que as grandes transformações mundiais irão acontecer pelos caminhos da cultura e não da economia. O crescimento econômico tem seu papel fundamental no desenvolvimento social. Mas, como afirma Teixeira Coelho, sozinho ele não terá mais condições de nos devolver a certeza de voltarmos vivos para casa depois de um dia de trabalho. A prova é que países ricos e desenvolvidos enfrentam situações crescentes de ruptura no tecido social.

Nesse universo da Cultura as artes têm um papel privilegiado. É no cenário multicultural das artes que encontramos nossos “diferentes”. Traz para a nossa praia a consciência da diversidade. Um cantor como o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, que chegou a se apresentar no Festival de Inverno de Ouro Preto poucos anos antes de sua morte, contribuiu com sua música para a integração entre os povos com uma importância incalculável. Gilberto Gil e Caetano Veloso cantando a música Haiti fazem tanto ou mais contra o preconceito racial quanto as leis antidiscriminatórias.

E se a Fundação Getúlio Vargas diz que o século passado deixou a lição de que a educação é o caminho mais eficiente para o país amenizar suas chagas sociais, a Unesco completa: inclua na escola tradicional, mesmo fora das atividades normais, cursos de arte, dança, música, esportes. A violência, nas comunidades com altos índices de agressão, cai imediatamente aumentando a presença e a atuação da comunidade no espaço escolar.

Uma das mais poderosas ferramentas  de religação social é a música. Principalmente no Brasil mas também na América Latina. Fato já reconhecido em 2001 pela atribuição do Prêmio Nobel Alternativo, da Right Livelihood Award Foundation, ao venezuelano José Antonio Abreu, pela formação de um sistema nacional de orquestras infantis e juvenis. Seja qual for o problema, uma das principais respostas será: Cultura como instrumento de transformação política, econômica e social.

…Moro no Brasil, Não sei se moro muito bem ou muito mal…

Da música Moro no Brasil, com Farofa Carioca – Seu Jorge, Gabriel Moura, Wallace Jefferson, Jovi Joviniano

Precisaremos trazer a Cultura para o centro do debate político, em pé de igualdade com todos os grandes temas nacionais. Um primeiro passo será dado com a inclusão de um terceiro parágrafo no artigo 215 da Constituição Federal instituindo o Plano Nacional da Cultura. Significa que, doravante, os governos brasileiros têm que se preocupar com a formulação de sua política cultural.

Política cultural talvez não seja exatamente o conceito adequado. É necessária uma Política Pública de Cultura com ampla participação da sociedade através de conselhos de cultura em todos os níveis acolhendo entre outras, as demandas dos fóruns de cultura que se articulam por todo o país, estimulando a ação organizada, autogestionária. É lógico que neste movimento está embutida a necessidade de uma nova engrenagem federalista que possa dar conta de questões que, se forem vistas só pelo lado econômico “fiscalizado”, movimentaram em índices de 1997 um por cento do PIB nacional, num setor que sabemos o quão “informal” costuma ser.

E, nesse campo, uma importante ferramenta de conhecimento são os estudos da cadeia produtiva, sem os quais não saberíamos, por exemplo, que o Estado do Rio de Janeiro arrecadou em 1999, via ICMS, mais na economia da cultura do que na indústria metalúrgica, na indústria química ou na indústria alimentar (001) Não saberíamos que a economia da cultura emprega 53% mais que a indústria automobilística brasileira (02).

No entanto, em contraponto às questões de mercado e indústria cultural é saudável perguntarmo-nos se somente planilhas e estatísticas darão conta do quadro. Como diz Thierry Gaudin (03), modelos são modelos e a realidade é a realidade. Tomar um modelo pela realidade é o que se chama idolatria. O papel da indústria cultural precisará ser discutido.

Indispensável, e ainda por se estruturar, seria um Sistema Nacional de Cultura para que possamos ensejar continuidade a um Plano Nacional de Cultura que sustente Programas duradouros através de um processo de diálogo e diagnósticos constantes.  Nesse âmbito a formação de mediadores e gestores culturais capacitados a lidar e conduzir demandas democráticas da sociedade civil é de extrema importância. Até mesmo uma burocracia estatal e mesmo privada que saiba lidar com as questões da cultura ainda está por ser formada: quem compra sabonete escolhe entre produtos similares aquele que está sendo vendido mais barato. Para um produto cultural quais serão os critérios? Aqui, mais que similaridade, interessa justamente a originalidade.

Mas já estamos falando de um outro espaço, o da cultura como arte, como criação. E no seu território real de intervenção: a cidade. No Rio de Janeiro, um espaço privilegiado para a música. 

…Rio 40 graus, cidade maravilhosa, purgatório da beleza e do caos, capital do sangue quente do Brasil, capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil…

Da música Rio 40 Graus com Fernanda Abreu – Fernanda Abreu, Fausto Fawcett, Laufer

O Rio de Janeiro perde o status de capital federal em 1960, há 43 anos. Em 1975 acontece a fusão do Estado do Rio, 28 anos atrás. Em 1985 reencontramos o regime democrático. Lá se vão praticamente 20 anos. Não vamos mais tapar o sol com a peneira. Desculpas históricas não temos mais para o caos urbano que é a nossa cidade: um dos piores sistemas de transportes entre as grandes metrópoles do país, sujeira e desordem, falta de consciência de direitos civis mínimos, corrupção em todas as instâncias, violência constante.

Os índices econômicos e as notícias divulgadas mais recentemente nos dizem que dinheiro não falta. Parece então que ele não está produzindo as mudanças que deveria produzir. Em nossa avaliação falta mudar, quando não até criar, a cultura política. A cultura da pólis. A cultura urbana. Três atores são vitais nesse processo de mudança: as empresas, o governo, e as organizações da sociedade civil, notadamente as voltadas para o social e o cultural.

As empresas, trazendo para sua pauta a promoção de ações de responsabilidade social; o governo municipal implantando políticas públicas de cultura; e as organizações da sociedade civil, desenvolvendo seus objetivos sociais e culturais na procura do fortalecimento dos princípios da inclusão social, da democracia, da convivência, da ética.

As instituições que trabalham com as artes em geral na cidade do Rio de Janeiro terão um papel importante a desempenhar nesse momento principalmente entre os jovens. No âmbito da música uma série de iniciativas e proposições estão amadurecendo e terão que ser avaliadas pelos futuros governantes.

Um dos temas considerados mais críticos é o da falta de espaços para a difusão da música. Aqui não estamos falando dos grandes palcos a serviço da indústria cultural e das majors fonográficas, mas sim de espaço de expressão para mais de 90% da produção musical da cidade. É urgente a necessidade de se criar uma rede municipal de espaços musicais bem como a recuperação e aparelhamento das poucas unidades existentes.

Ao lado disso um programa de incentivo a produções, espaços ao ar livre e grupos permanentes reconhecidos pelas comunidades, ajudaria a descentralizar e diversificar o cenário musical carioca. Aqui estamos falando de música para a convivência. Um espaço de manifestação que incentive algo mais que simplesmente levantar os braços e se embalar dissolvido na massa de participantes dos grandes shows da indústria cultural. Em uma cidade voltada para as atividades nas ruas é impressionante a falta de projetos de longo prazo nas praças, feiras e espaços ao ar livre.

Nada porém irá circular, se apenas criação e produção forem fomentadas. É importante também a socialização dos bens culturais, democratizando o acesso do público através da criação e manutenção de circuitos expressivos para música popular, instrumental, de concerto e das novas pesquisas musicais.. Nessa direção serão necessários espetáculos subsidiados ou gratuitos atendendo a escolas e comunidades.

Programas de ações intermunicipais no campo da música são praticamente inexistentes no Rio. As estradas musicais Rio-Santos e Rio-São Paulo quase não são percorridas. Experiências bem sucedidas de música para a convivência e educação acontecem há muitos anos em cidades como Curitiba, Londrina, Avaré e Tatuí e poderiam enriquecer sobremaneira o cenário musical e o espaço social entre cariocas e outras cidades brasileiras. No campo internacional o deserto é ainda maior. As raízes negras do tango e do samba poderiam ensejar interessantes encontros. A moderna música instrumental da Venezuela só é conhecida por poucos. O entusiasmo que o Choro desperta no Japão, na Europa e nos EUA tem sido pouco aproveitado.

Numa cidade musical como o Rio, o nível de excelência de seus instrumentistas vem sendo pouco aproveitado por conta da demanda de um mercado fonográfico cada vez menos exigente. De outra parte a quantidade de músicos com formação que se encontram sem trabalho é bastante grande. Estas duas pontas poderão ser facilmente alcançadas com uma política de formação musical que inclua a música no processo educacional municipal, não só na sala de aula como também com a sua inclusão na formação dos professores do ensino fundamental. Com isso estarão sendo atendidas também as necessidades dos programas de arte-educação.

A recuperação e preservação dos acervos e da memória musical carioca se faz urgente. A história musical da cidade está desaparecendo. Não somente o que resta do século XIX mas também a do século XX. Ações imediatas incluiriam o estímulo à criação de sistemas de informações musicais, partituras e fonogramas; disponibilização do acervo histórico das gravadoras aqui sediadas; apoio a formação de recursos humanos; estímulo à produção e registro das manifestações musicais das comunidades cariocas.

Atravessando todas essas ações será necessária transparência na gestão governamental dos incentivos e ações culturais municipais, bem como a definição de um plano, programas e projetos municipais de cultura com acesso às instâncias em que a sociedade civil possa trazer suas demandas culturais, dialogar com suas realizações e ajudar a efetuar possíveis correções de rumo.


01. Fundação Carlos Chagas, SP, 2000
02. Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, MG, 1998
03. Economia Cognitiva – Uma Introdução, Thierry Gaudin, Ed. Beca, SP, 2000.

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(*) Designer, Diretor do Instituto Jacob do Bandolim