Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 03.10.2014

Barra

A ousadia de fugir da estética dominante no teatro infantil

A Conferência dos Pássaros, em cartaz no Rio de Janeiro, adapta poema persa em arriscado e delicado ritmo ritualístico

Admiro demais diretores, encenadores, atores, enfim, artistas de teatro que se arriscam, saem da zona de conforto e oferecem ao público mirim outras estéticas, outras linguagens, fugindo do óbvio, fugindo do excesso de cores e de músicas, ou seja, evitando os caminhos tidos como mais convencionais. Assim é a montagem, no Rio de Janeiro, de A Conferência dos Pássaros, em cartaz no Oi Futuro Flamengo só até o próximo dia 19. O responsável por essa ousadia é o ator Mauricio Grecco, estreando na direção.

O espetáculo é baseado em um famoso e extenso poema persa do século 12, escrito por Farid Ud-Din Attar. Só essa escolha já merece nossos aplausos. Trata-se de uma das mais importantes obras da literatura oriental, reconhecida por grandes nomes ocidentais ao longo do tempo, como Borges, Dante, Chaucer e Cervantes, entre tantos outros.  Perfumista, teólogo, sufista, peregrino, Farid Attar escreveu, neste poema de 4.500 versos, sobre a busca pela felicidade e a plenitude. Trinta espécies diferentes de pássaros se reúnem e partem pelo mundo enfrentando desafios em sete vales filosóficos, como o vale do conhecimento, do amor, da morte e assim por diante.  É um rito de passagem. No final, descobrem que estavam em busca de si próprios – e se encontram com suas naturezas, suas vontades e seus desejos.  É uma festa de metáforas e simbologias.

O diretor não fez concessões a facilidades eufóricas. Sua montagem é sóbria em cores, comedida em ritmos e ações, discreta nos tons vocais, plácida na trilha sonora, sem medo de figurar na contramão das produções ágeis e frenéticas que fisgam as crianças estimulando seus sentidos de formas bem menos sutis. Mauricio Grecco optou pelas sutilezas, pelo lirismo calmo de um poema que atravessa os séculos pleno de sabedoria.  Às vezes, acho que o ritmo sofre, porque há uma profusão de adereços que precisam funcionar e exigem agilidade dos atores. São sacadas até muito boas, bonitas, com soluções criativas. A poupa, por exemplo, personagem de Carolina Kasting, um pássaro mais conhecido no Hemisfério Norte, tem um penacho grande, que a atriz forma em sua cabeça depois de encaixar em seus dedos cinco varetas de madeira. É lindo, de tão simples.  Também há outras varas que alcançam onde os braços dos atores não alcançariam e até invadem plasticamente o espaço da plateia. Mas recursos como esses às vezes ralentam a cena, emperram as falas, pois levam segundos para acontecerem de fato. Chegamos a ver os atores se arrumando muitas vezes em cena.

Nesses momentos, as crianças menores perdem um pouco a paciência e desviam suas atenções do palco, porque a história para de fluir a contento. Sobretudo porque é um espetáculo muito narrado, com menos ação e mais falação. Já vi outras peças, baseadas nessa técnica de contação de histórias, em que o elenco consegue resolver melhor a questão do ritmo, por imprimir nuances mais variadas à forma narrativa. Aqui, faltou um pouco disso, a meu ver: escolher um elenco mais afinado com a arte e técnica dos contadores de histórias. O tom da narração merecia ganhar variações maiores. Percebi que a atriz Carmen Frenzel é a que melhor teria esse potencial. Ela até se arrisca em alguns poucos momentos, mas logo se retrai novamente e volta para a solenidade monocórdia que acaba prevalecendo no tom do elenco (além de Carolina e Carmen, completam o time Julia Lund e Patrick Sampaio).

O problema, quando se tenta ousar, é que, nessa quase obsessão por não ser infantilóide, o espetáculo pode resultar sisudo demais para os pequeninos. Conversei com o diretor sobre isso e ele nos explica sua concepção da seguinte forma: “A peça realmente impõe um desafio muito grande aos atores. Por um lado, exige um tempo calmo em momentos-chave e, por outro, pede bastante agilidade, energia e dinamismo nas trocas e manipulações de objetos e adereços. Na maioria das vezes, eles equalizam com muita maestria essas questões e o espetáculo flui delicado em seu tempo, mais ‘oriental’ e ritualista, sem perder o punch necessário do ritmo. Almejei realmente um espetáculo em que o tempo apresentasse texturas não cotidianas e não realistas, mas sempre tendo em vista que seria necessário o cuidado constante e redobrado com o ritmo, para a trajetória dos pássaros não perder em vibração… É um desafio conseguir isso em todas as sessões, mas é um risco muito bonito de se correr e fiz tudo com muita integridade no que diz respeito a não subestimar a sensibilidade e inteligência das crianças.”

Perfeito. O risco, nesse caso, é puro mérito. O melhor de A Conferência dos Pássaros é justamente sua ousadia estética. Algo para se tirar o chapéu, em aprovação. Pais devem entender que o teatro oferece múltiplas possibilidades a seus filhos, não só as mais clássicas.  Uma peça de teatro vai ser melhor, mais bem feita e bem escrita se conseguir causar algum tipo de reação livre e espontânea na plateia mirim, seja qual for, seja de estranheza, de encantamento, de frustração, de desconfiança e até de repúdio, porque se a arte for capaz disso estará contribuindo para construir uma pessoa mais liberta. Oferecendo pluralidade em forma de arte é que se consegue formar pensadores, estimular reflexões, derrubar conformismos e transmitir a noção fundamental de que não há limites para se viver com intensidade. Quanto menos passível for a criança de ser manipulada e domesticada, mais saudável ela será sempre, durante toda a sua vida. Pensando assim, concluímos que Mauricio Grecco faz com louvor a sua estreia no teatro para crianças e jovens. Precisamos de encenadores corajosos, que rompam a barreira da mesmice, ainda que seus espetáculos não resultem ‘redondinhos’ em todos os quesitos. Essa é a magia, a graça e o encanto de se fazer teatro. Farid Attar aprovaria Mauricio Grecco. Que venham os próximos, diretor.

Serviço

Oi Futuro Flamengo. Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo, Rio de Janeiro
Tel. (21) 3131-3060
Sábados e domingos, às 16 h
Ingressos a R$ 15,00 (inteira)
Até 19 de outubro
(*) Dia 11 De Outubro, sábado: Sessão especial com recursos de acessibilidade