Barra

Ao longo destes oito anos, acompanhando o FENATIB, como selecionador, debatedor e acima de tudo admirador, resolvi escrever sobre um tema que tenho me dedicado nestes últimos anos – o circo-teatro – e que agora percebo a necessidade de discutir, utilizando como espaço a Revista do Festival.

Ainda paira, entre os analistas de teatro, a velha pergunta: O que é teatro para criança e o que é teatro para adultos?

Estudando e agora acompanhando espetáculos de circos-teatros, percebo que os seus espetáculos cabem para todos, como eles mesmos insistem em afirmar: Um espetáculo para famílias. O que chama a atenção é que o teatro, dito popular, consegue penetrar não só várias camadas sociais, mas também várias faixas etárias. Neste texto, pretendo apresentar aos leitores da revista um pouco da dramaturgia utilizada por estes circos-teatros e, em especial no Circo-Teatro Nh’Ana, a sua relação com o melodrama e com seus discursos.

O Circo-Teatro Nh’Ana (1) montou ao longo de sua vida uma infinidade de peças, que os próprios artistas têm dificuldade de precisar e, isto é impossível, principalmente porque os relatos são poucos, sobrando apenas os livros de contas e o que a memória viva dos artistas pôde reter.

Do drama à comédia, e, é claro, percorrendo com muita intensidade o melodrama, este circo-teatro levou para o interior de Santa Catarina e de outros estados, entretenimento e lazer para pessoas que, na periferia dos grandes centros culturais, tinham por meio destes andarilhos e saltimbancos a possibilidade de se aproximar do mundo moderno. Estas companhias traziam o que havia de mais moderno em som, iluminação, figurinos adequados às montagens da época e cenários que tentavam levar a imaginação dos espectadores para um mundo diferente do seu cotidiano.

As peças montadas pela companhia eram categorizadas como comédia, chanchada, alta comédia e drama.

A comédia ou chanchada não possuía um texto, mas um roteiro que era combinado entre os artistas antes de começar a apresentação. Era o momento da improvisação. Neste contexto, era perigoso ser dito algo que Nh’Ana não gostasse, por isso todo cuidado era pouco para não fugir daquilo que o grupo se propunha, ser uma família apresentando para famílias. Esta propaganda onde uma família estaria apresentando seu trabalho para famílias aparece em quase todos os circos que já foram pesquisados no Brasil, como é o caso do Circo Rosemir que se apresentou no Jardim Três Corações na Zona Sul de São Paulo, onde o apresentador Clodoaldo enfatiza:

“Certo de que o espetáculo será do agrado das famílias de Três Corações, que saberão prestigiar o trabalho de uma família que ali está para trazer um pouco de alegria às famílias da distinta localidade”. (2)

Esta relação com o improviso está ligada às mais antigas tradições do circo e do teatro. A tradicional Comédia Del’arte era desprovida de texto fixo, ficando ao encargo do ator o desenrolar de um roteiro previamente estabelecido pela companhia. O uso de elementos da Comédia Del’arte nos circos-teatros se faz notar não só pelo improviso (marca mais importante), mas na capacidade de inventividade dos artistas, nas saídas burlescas, do colorido das falas e nos quiproquós desencadeados a partir de uma proposição de um dos personagens. Tudo com muita rapidez sem deixar a plateia respirar por muito tempo e mostrando a plena integração do elenco com o seu fazer artístico, esta confiança entre os artistas era fundamental para que seu objetivo fosse alcançado.

Vale ainda ressaltar que estas comédias sem texto fixo, ou também conhecidas por chanchadas, não eram bem vistas pela crítica, que preferia os textos formais e elaborados segundo uma métrica aristotélica, considerando estes espetáculos menores e com pouco valor artístico. João Luiz Vieira, em seu ensaio sobre a paródia no cinema brasileiro, Riso Amargo (a ser publicado), afirma que o termo chanchada tem origem italiana, derivado de “cianciata”, que segundo o Grande Dizzionario delia Lengua Italiana, significa “um discurso sem sentido, uma espécie de arremedo vulgar, argumento falso”(3). No nosso Dicionário Aurélio aparece o termo chanchada como: “porcaria”, “peça ou filme sem valor, em que predominam os recursos cediços, as graças vulgares ou a pornografia”. E “qualquer espetáculo de pouco ou nenhum valor”.

Esta discussão sobre o valor da chanchada no Brasil se dá principalmente no cinema, mas como os artistas de circo-teatro também usavam este termo para definir suas comédias de improviso, acredito ser necessário percorrer as origens deste tipo de espetáculo, que tanta polêmica ainda causa nas publicações sobre a mesma.

“Os esforços para se reavaliar a importância cultural da chanchada, sem as lantejoulas do passadismo, não renderam até agora um acervo satisfatório”.(4)

As altas comédias eram apresentadas com textos elaborados por Nh’Ana ou compradas nos grandes centros. Um dos textos de Nh’Ana montados pela companhia foi “O Casamento de Nhô Bastião” (comédia em 2 atos) onde o protagonista faz comparações entre a sua noiva e uma égua, inclusive na presença do pai da moça – Bento, ridicularizando a personagem feminina, marcante em muitos textos da autora:

“Bento: Fale logo, deixe de redeio.
Bastião: Nun chácuaia, i como to só, careço arranja um divirtimento. Quero lhe pidi a mão co corpo i tudo matéria da si égua, quero dize, da sua cria Maruca.”

Aproveito o momento para entrar em um detalhe do espetáculo que me parece ser extremamente relevante na análise sobre as montagens do Circo-Teatro Nh’Ana e outros circos-teatros do Brasil. Percebe-se a música como fundamental para uma representação teatral, nos moldes das companhias mambembes de circo-teatro, logo sou remetido ao melodrama e sua importância na história do teatro.

O melodrama que, historicamente, surgiu como gênero teatral por volta de 1800, possui características muito precisas, e que muito se assemelha ao estilo de trabalho apresentado pelas companhias de circo-teatro no Brasil.

“Gênero popular, parece-se com o drama, mas distingue-se deste por efeitos cênicos espetaculares. Os acontecimentos trágicos, às vezes, assustadores são cortados por intermediações cômicas por balés. Espetáculo total, a música prepara a entrada dos personagens ou aumenta a intensidade dramática, anunciando os episódios marcados por uma emoção violenta. O movimento e a ação são predominantes, mas a sensibilidade aliada à moral ainda é indispensável para se fazer um melodrama”.(5)

Com relação aos personagens, possuía uma estrutura com quatro tipos básicos. O vilão, responsável por todas as maldades na peça (no circo-teatro também recebia o nome de ‘cínico’); a heroína, que sofria com as maldades do vilão (no circo-teatro também conhecida como ‘ingênua’); o jovem amado da heroína, que tinha a responsabilidade de salvá-la de garras do vilão (‘galã’) e o “niais” ou tolo, que tinha a responsabilidade de entrar em cena nos momentos onde o público está se derramando em lágrimas para fazê-lo rir de uma situação qualquer. Estes personagens são interpretados de forma exagerada, onde os maus são totalmente maus e os bons são completamente bons, desprovidos de qualquer profundidade psicológica. O maniqueísmo é levado às últimas consequências.

Todos os acontecimentos mais importantes ocorrem de forma espetacular por meio de aparições surpresas e situações de forte impacto emocional, como a leitura de uma carta, ou a escuta de uma conversa atrás da porta.

Os circos-teatros de todo o Brasil seguiram a tradição do melodrama e conseguiram trazer para a plateia um quantidade enorme de pessoas interessadas neste estilo teatral, apesar da crítica especializada ridicularizar o melodrama.

“Os críticos do século XIX rejeitaram crescentemente o melodrama com o decorrer dos anos, zombando dos espectadores simpáticos ao estilo, apontados como ignorantes. Os autores cujas obras trouxeram a marca de elementos melodramáticos arriscavam-se à rejeição pela opinião ‘culta’. Esta visão não mudou entre os comentadores da literatura dramática e da história do teatro, em períodos posteriores. A crítica do século XX é praticamente unânime numa avaliação totalmente negativa do melodrama”.(6)

O que incomodava os críticos do século XIX e do XX era a falta de necessidade de verossimilhança apresentada pelo melodrama, sendo a resolução de seus problemas, na maioria dos casos, absolutamente desconcertante para o racionalistas e defensores do realismo. O melodrama tinha a capacidade de relativizar até mesmo as situações mais corriqueiras do dia-a-dia. A preocupação do melodrama era emocionar o público até sua última gota de lágrima, não de construir cidadãos desejados para o Estado que se pretendia moderno.

O melodrama atraía um grande público, e aí cabe uma pergunta. Por que as pessoas iam assistir um espetáculo teatral, no circo-teatro e até mesmo em casas de espetáculo fixas, quando este público já sabia o final da peça e, às vezes assistiam-nas mais de uma vez?

A melhor definição que encontrei, foi a de Silvia Oroz ao analisar o melodrama no cinema da América Latina, que consegue chegar a uma definição entre a relação do público com a obra melodramática que me parece totalmente respeitável e aceitável.

A autora parte da afirmação que a familiaridade dá margem a um fator importante entre o público e a obra: conhecimento.

“Este permite que o espectador saiba mais do que o herói/protagonista a respeito de sua sorte futura ou sobre suas relações com outros personagens… O conhecimento do futuro, que, supostamente, tiraria o suspense da história, converte-se num elemento de interesse tão forte quanto a própria trama, e com isto está próximo do domínio do futuro do herói/protagonista. Este domínio permite um certo controle/posse sobre a narração, que tende a provocar um registro inconsciente de propriedade de um bem. Na comunicação de massas do Brasil, revistas como AMIGA ou CONTIGO, publicam antecipadamente o resumo do que vai acontecer nas diversas telenovelas, sem que isto lhes retire a audiência.”

Correndo os olhos sobre a revista Veja, observei que o diretor da televisão Globo, Carlos Manga, ao comentar sobre os programas humorísticos no Brasil, também defende esta ideia de posse que o telespectador tem sobre determinados personagens, que devem dizer seu “jargão” ou “gag” no final de sua participação, porque o público, que já conhece este texto, fica aguardando exatamente este momento da fala, onde, inconscientemente lhe dá a sensação de conhecer mais do texto do que o próprio personagem que está se apresentando. Segundo o diretor, se este texto não for dito, pode levar a uma grande frustração aos telespectadores ávidos por aquele momento.

As estruturas das peças montadas pelo Circo-Teatro Nh’Ana, tanto as mais renomadas (Direito de Nascer, Paixão de Cristo, Sansão e Dalila, Coração Materno etc) como aquelas escritas pela própria Nh’Ana, seguiam a estrutura do melodrama e suas montagens aproveitaram deste gosto popular por este estilo para mambembar pelo Estado de Santa Catarina sempre acreditando numa boa quantidade de público sedento por teatro e por, pelo menos, algumas poucas horas, ter o domínio do conhecimento sobre a encenação e poder profetizar de forma acertada sobre os destinos dos personagens que estavam a sua frente. Os artistas do circo-teatro vendiam o sonho para as pessoas que normalmente estavam alijadas desta possibilidade.

É importante ainda fazer mais uma anotação sobre a importância, às vezes, relegada a segundo ou terceiro plano, do melodrama na história do teatro brasileiro. Um de nossos maiores atores foi João Caetano dos Santos (1808-1863), que percorreu vários estilos de teatro do seu tempo, como as tragédias clássicas francesas, os dramas românticos, os autores espanhóis e românticos portugueses. Mas, o que lhe garantia a sobrevivência foi o melodrama, como bem destacou Décio de Almeida Prado:

 “Quanto ao pão de cada dia, medido pela média da bilheteria, quem se encarregou de fornecê-lo ao ator brasileiro foi o imbatível melodrama, que, transbordando do palco para o romance, tingia de cores berrantes tanto a imaginação popular quanto a letrada. Nesta linha de forte teatralidade, que por isso mesmo ensejava vigorosas interpretações cênicas, João Caetano percorreu toda a série de melodramaturgos franceses, de Guilbert de Pixerécourt a Anicet-Bourgeois”.(8)

Estas experiências eram vivenciadas por todos que se predispunham ou que eram convencidos a penetrar o mundo do circo-teatro. E o que eles diziam a toda esta gente, que, em várias oportunidades, lotavam as dependências acolhedoras e “confortáveis” do Circo-Teatro Nh’Ana?

É aí que entra Isolina Almeida Oliveira, a Nh’Ana, dramaturga. Por meio de suas peças, ela definia o perfil do mundo que acreditava e pregava. Mais do que reproduzir discursos já prontos em peças já conhecidas e exaustivamente montadas por companhias em todo o Brasil, Nh’Ana escreveu suas próprias peças. Explicitou por meio de seus textos o seu olhar sobre o mundo e sua responsabilidade em buscar um mundo mais cristão e moral, onde o casamento era assunto constante.

Os textos que consegui resgatar junto à família e na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, por meio da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, órgão que Nh’Ana era filiada e onde registrava seus textos foram: “O destino de duas vidas”, “Seu grande sacrifício”, “Não me condenes, meu filho”, “Fatalidade”, “Adios, pampa mia”, “O sacerdote e o bandoleiro”, “Marísia”, “O casamento de Nhô Bastião”.

Esta preocupação de registrar os textos não era apenas de Nh’Ana, mas da maioria dos autores, que viam nesta prática a possibilidade de também ganhar um pouco mais de dinheiro, no caso de outra companhia decidir pela montagem da peça.

A legalidade era respeitada pela companhia de Nh’Ana, e lhe garantia respeitabilidade entre a comunidade e os órgãos oficiais.

Não eram uma família tradicional (sedentários, trabalhadores registrados, frequentadores de missas dominicais e filhos escolarizados), mas defendiam por meio de seus personagens e suas falas esta família e contribuíram para perpetuar este objetivo em todos os locais onde passaram. Viajavam com uma bagagem muito maior que o próprio circo-teatro, eram os portadores de ideias cristãs e de valores morais rígidos, e conseguiam atingir um público que os meios oficiais teriam uma grande dificuldade de fazê-lo.

Colheram as glórias de seu tempo, por sua competência artística e por sua organização administrativa e, com isto, conseguiram permanecer na ativa, mascateando sonhos até o início da década de 80. Legítimos artistas do teatro popular brasileiro, não se deixaram abater pelas dificuldades do nomadismo e levaram milhares de pessoas a imaginar, a chorar e a gargalhar pedindo muito pouco em troca. Não há dinheiro que consiga pagar as recordações que deixaram em seu mambembar pelo Interior de Santa Catarina.

Barra

Bibliografia

(1) O Circo-Teatro Nh’Ana fez muito sucesso entre as décadas de 40 a 70 em Santa Catarina, Paraná e São Paulo, tendo como proprietários da companhia Isolina Almeida de Oliveira (Nh’Ana), Benedito Alves de Camargo (Tareco), Abigail Camargo (Biga), em suma, uma família que contratava artistas para participar das montagens e shows musicais. O que diferencia, principalmente o circo-teatro do circo tradicional, é que no primeiro não são utilizado animais, nem números circenses espetaculares. Há no circo-teatro apresentação de uma peça teatral, normalmente acompanhada de um show musical e de números especiais com o palhaço principal da companhia.

(2) MAGNANI, José Guilherme Cantor – Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade – São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984-p. 126
(3) AUGUSTO, Sérgio – Este Mundo é um Pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK – São Paulo – Cinemateca Brasileira / Companhia das Letras, 1989 – p. 17
(4) AUGUSTO, Sérgio – Op. Cit. p. 29 – 1988 – p. 279
(5) VINCENT-BUFFAULT, Anne – História das Lágrimas: Séculos XVIII-XIX – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 – p. 279
(6) DUARTE, Regina Horta – Noites Circenses: Espetáculos de Circo e Teatro em Minas Gerais no Século XIX – Campina; Ed. da UNICAMP, 1995- p. 210-211
(7) OROZ, Silvia – Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina – Rio de Janeiro – Rio Fundo Ed., 1992- p. 36
(8) PRADO, Décio de Almeida – História Concisa do Teatro Brasileiro: 1570-1908 – São Paulo – EDUSP, 1999 – p. 38.

Barra

Lourival Andrade
Diretor e ator do Rinoceronte Alado Núcleo de Teatro e Dança / ltajaí, SC. Graduado em História / Univali. Especialista em Teatro pela FAP / PR – Mestre em História Cultural pela UFSC – Doutorando em História – Cultura e Poder / UFPR. Diretor premiado em diversos festivais de teatro em todo o Brasil.

Barra

Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2006)