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No ano passado tive o prazer de visitar o Brasil duas vezes. A primeira visita foi ao Rio de Janeiro, por ocasião de um bem organizado Encontro de Teatro promovido pelo SESC e pela ASSITEJ do Brasil. Além dos contatos e dos seminários, eu tive a oportunidade de ver alguns espetáculos brasileiros de teatro para crianças. A maior parte deles era muito boa. Lembro-me particularmente de três espetáculos bastante criativos: Cyrano de BergeracPatativa do Assaré e Carnaval.

A segunda visita foi ao maravilhoso Festival de Blumenau. Aí tive a possibilidade de ver muitos espetáculos, de diferentes partes do Brasil, e de ver essas encenações serem discutidas por pessoas especialmente convidadas para esse fim. Deste festival eu me lembro especialmente dos seguintes espetáculos: Conta Comigo e História do Topetudo (pelo charme e bom relacionamento com a plateia) e Victor James (por seu humor e talento).

As discussões sobre as apresentações mereciam serem registradas, porque eram baseadas em um espírito crítico positivo e feitas por pessoas muito bem preparadas. Era também evidente que os grupos teatrais respeitavam os comentários ouvidos, e que poderiam usar os resultados dessas discussões em seus futuros trabalhos.

Pediram-me para escrever algo sobre as semelhanças e as diferenças, no campo do teatro para crianças, entre nossos países. A Dinamarca é um país pequeno, (mais ou menos do tamanho de São Paulo), com apenas 5 milhões de habitantes. Tem cerca de 90 grupos teatrais independentes fazendo apresentações para crianças (grupos de 3 a 8 pessoas). Em média, toda criança dinamarquesa tem oportunidade de ver pelo menos uma encenação teatral para crianças duas vezes ao ano. Muitos dos grupos de teatro dinamarqueses recebem um significativo apoio por parte da comunidade ou do Estado.

O Brasil é um país maior do que a Europa, com seus 165 milhões de habitantes. Seu teatro para crianças? Muitos dos espetáculos que eu vi no Brasil (cerca de 30), me parecem ser de ótimo nível, tal como muitos dos espetáculos da Dinamarca. Eu convidei o Victor James para vir ao último festival na Dinamarca, em abril p.p., não por ser algo que nós nunca tivéssemos visto antes, mas simplesmente porque era um excelente espetáculo e eu queria mostrar às crianças dinamarquesas que há bons espetáculos do outro lado do mundo.

Em vez de escrever sobre diferenças e semelhanças específicas, eu gostaria, então, de me deter no que me parece ser a questão principal: os aspectos nos quais estamos de acordo quando se trata de cultura para crianças.

Não há, certamente, muito glamour na vida do teatro para crianças e absolutamente nenhuma expectativa de se ficar famoso. O trabalho é relativamente duro, o salário é apenas mediano e sem nenhuma esperança de melhora.

Apesar disso, a maioria das pessoas que trabalha nesse campo gosta realmente de seu trabalho. Do encontro com o público, do clima de intimidade, da proximidade do contato, da “viagem”, juntos, para dentro do universo da encenação. Muito poucos fora desse círculo (de crianças, atores e dos poucos adultos presentes) têm oportunidade de experimentar esses pequenos milagres que ocorrem cotidianamente em algum lugar do país. Crianças e atores se encontram em momentos fantásticos, nos quais um respirar recíproco e uma vívida imaginação transcendem a representação chegando a um ponto em que a realidade e o teatro se mesclam, a um estado do qual não se retorna sem ter sido afetado.

Algo patético? Sim. Mas verdadeiro. E é isso que lhe dá valor. Que faz com que o teatro mereça ser visto.

O ponto de partida [em comum] é: crianças são pessoas reais, não são apenas alguém em fase de crescimento. As crianças exigem respostas adequadas a suas sinceras perguntas. Não há temas excessivamente perigosos para o público infantil. Mas a maneira como os apresentamos tem que ser escolhida com cuidado e respeito. Nós temos que nos aperfeiçoar permanentemente: as crianças precisam de qualidade – até mesmo mais do que o público adulto.

Há alguns anos atrás eu fiz uma palestra em um seminário para pessoas que trabalham na área do teatro para adultos. Eles queriam que eu falasse sobre o teatro para crianças. Eu comecei perguntando à plateia: “Quantos de vocês já foram crianças? Levantem as mãos”. Depois de um breve momento, alguns levantaram a mão. “Os que não levantaram a mão já devem ter nascido com quarenta anos de idade”, disse. Nós, que nos lembramos de nossa infância, lembramos como era maravilhoso sermos respeitados, sermos estimulados em nosso desenvolvimento, a usar nossas fantasias e nossa curiosidade, a experimentar descobrir novos mundos, a participar de eventos culturais.

Sabemos, por nós mesmos, que jamais poderíamos pensar em limitar as possibilidades de desenvolvimento positivo das crianças. Nós lutaremos contra qualquer tipo de redução que possa ferir as crianças, porque sabemos o que é ser criança – e também sabemos que nos tornamos adultos melhores quando mantemos uma criança dentro de nós.

Qual a questão, portanto? É apenas a seguinte:

1. Os órgãos competentes devem reconhecer o direito da criança ao lazer e ao descanso, a tomar parte em jogos, em atividades recreativas adequadas a cada idade da criança, e a participar plenamente da vida cultural e artística.

2. Os órgãos competentes devem respeitar e promover esse direito da criança à plena participação na vida artística e cultural, e devem estimular a criação de oportunidades adequadas e igualitárias de atividades culturais, artísticas, recreativas e de lazer. (Artigo 31 da Declaração dos Direitos da Criança da ONU).

Cabe a nós nos colocarmos a serviço da criança para tal. Nós as ajudamos a lidar com suas vidas, estimulando sua fantasia, suas forças, seus sentimentos e sua determinação.

Um poema: Você diz que os rastos que nós achamos
no chão úmido essa manhã,
eram rastos de ratos.
Mas eu sei
que eram os rastos dos meus sonhos
que se assustaram e fugiram
porque você chegou e me acordou.

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Peter Manscher
Organizador do Festival e Diretor da ASSITEJ da Dinamarca

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 6º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2003)