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Bando de convicções artísticas e pedagógicas

Pulguinhas acrobáticas [01]

Viviane Juguero [02]

Sempre que ministro cursos e palestras para professores ou agentes culturais, ao iniciar a minha fala, digo a todos que meu objetivo é acordar as pulguinhas que ficam atrás das orelhas [03]. Pretendo propor um novo olhar sobre a relação da arte teatral com a educação. Minha intenção é fazer com que as pulguinhas passem a fazer peripécias acrobáticas provocadas pelas muitas reflexões que cada um terá, buscando suas próprias conclusões. A intenção dessa dissertação é a mesma.

Abordo o teatro para crianças com o envolvimento de um apaixonado e a bandeira de um militante. Tenho a firme convicção de que o teatro é uma poderosa ferramenta para construirmos um mundo melhor. No entanto, não intento apresentar fórmulas e regras, mas, sim, instigar cada pessoa para que construa suas próprias ideias, embasadas no conhecimento e na experiência.

Quero convidar as pulguinhas acrobáticas de cada um para fazerem um grande circo com os números da diversão, da pesquisa e da reflexão.

Fico muito feliz quando encontro alguém que me diz algo como minhas pulguinhas estão a mil ou minhas pulguinhas estão cada vez mais acrobáticas. Acho uma maneira alegre e saudável de referir que as reflexões estão presentes e provocativas [04].

Bando de convicções

A proposta do Bando de Brincantes procura potencializar os espaços imaginários da criança ao criar espetáculos que surpreendam, instiguem, emocionem, divirtam e desafiem os sentidos. A intenção é trabalhar com proposições lúdicas que respeitem a integridade intelectual e a percepção sensorial das crianças, por meio de construções visuais, sonoras e narrativas. Assim, é possível fornecer estímulos diversos às suas potencialidades criativas e comunicativas. Ao mesmo tempo em que se divertem no mundo da imaginação, as crianças são convidadas a participar ativamente na decodificação das cenas, preenchendo lacunas com seus referenciais e criando distintas relações. Nesse sentido, a partir do paradigma construtivista de Vygotsky, Gil afirma que

entre a criatividade e a ação criativa existe uma grande diferença. Enquanto a criatividade é vista como inata ao ser humano, a ação criativa depende dos processos de mediação para ser desenvolvida. De nada adianta, portanto, medir todas as características da pessoa criativa, sem lhe possibilitar ações que promovam sua evolução (GIL, 1999, p. 49).

Indo ao encontro dessa ideia, os espetáculos do Bando de Brincantes trabalham com artes integradas, utilizando elementos do folclore ou de criações genuínas, resultantes de trocas imaginárias. Música ao vivo, técnicas acrobáticas, utilização de máscaras e bonecos, etc. contribuem na construção de espetáculos criados a partir da lógica lúdica.

Ao buscar uma sintonia com o pensamento infantil, que é extremamente complexo, simbólico e encantador, o Bando procura valorizar a criança e, ao mesmo tempo, respeitar seu estágio de desenvolvimento. A intenção é convidar a criança a participar ativamente, alertando todos os seus sentidos, em um envolvimento imaginário, cognitivo e afetivo.

A proposta artística do Bando é alicerçada em um comprometimento pedagógico e estético que procura ofertar estímulos potencializadores do desenvolvimento de processos nos quais a criança se identifique, sinta seus conhecimentos valorizados e tenha segurança para enfrentar novos desafios:

A inteligência não é uma propriedade estática, ela é acionada quando os indivíduos estão tentando resolver um problema, empenhados numa invenção, ou tentando sobreviver em um meio ambiente desafiador (GARDNER, 1998, p. 149).

Assim, ao lado de referenciais familiares às crianças, o Bando, de forma simples e singela, apresenta o risco, a incerteza, a dúvida. Dessa maneira, a cena dilata os sentidos, desafia, instiga a experimentação, estimulando o desejo de reconstruir o processo criativo, para poder acessá-lo a qualquer momento, nas mais diversas situações.

Entre as questões mais importantes da psicologia infantil e da pedagogia, está a capacidade criadora das crianças, e a importância do desenvolvimento dessa capacidade (GIL, 1991, p. 22).

O Bando de Brincantes parte da ideia de que trabalha com plateias plurais e que os elementos da cena devem possibilitar múltiplas formas de relacionamento, em distintos níveis cognitivos e perceptivos. Dessa forma, os processos individuais são valorizados, sem almejar um objetivo comum que queira ensinar um conteúdo específico a todos os presentes. Essa ideia de desenvolvimento interacionista, vem ao encontro de um ponto, referido por Gil, no qual, segundo ele, há uma convergência entre as teorias de Piaget e Vygotsky. Segundo Gil, o desenvolvimento infantil se dá numa relação dialética entre maturação biológica e contato com o meio:

Nem tudo se pode ensinar em qualquer momento e a qualquer criança. A criança se desenvolve pela ultrapassagem das estruturas atuais para novas estruturas mais equilibradas (GIL, 1991, p. 13).     ‘

Desse modo, enquanto uma criança fica feliz por reconhecer o animal representado em um boneco e fica curiosa com o timbre de sua voz, na mesma cena, outra criança percebe os detalhes da manipulação e a musicalidade das frases e outra deduz o sentido de uma palavra nova em seu vocabulário, a partir do contexto.

A concepção construtivista vê uma interação entre linguagem e pensamento, entre fatores internos e externos, fazendo com que a inteligência se construa e se desenvolva em um contínuo processo genético estrutural (GIL, 1991, p. 11).

Ao viabilizar que as crianças se relacionem com o espetáculo, fundadas em distintos enfoques, o Bando de Brincantes procura proporcionar a valorização das diversas habilidades e o estímulo ao desenvolvimento em todas as áreas. Ao perceber sua capacidade de absorção e reformulação em determinada área, a criança poderá se sentir mais segura para enfrentar novos desafios. Essa experiência é fundamental, em especial, em uma sociedade na qual ainda predomina o pensamento descrito por Gardner [05]:

Uma criança é vista como inteligente se é hábil em matemática, em linguagem ou, ainda melhor, em ambos os domínios. As crianças com habilidades em velejar, música, desenho, atletismo, dança ou conhecimento do self ou dos outros podem ser vistas como talentosas, mas raramente são reconhecidas como inteligentes. Um foco nos vários domínios oferecidos numa cultura, e um exame das áreas em que as crianças se destacam, produz uma perspectiva bem diferente do intelecto (1998, p. 137).

O Bando festeja a diversidade de pessoas e de habilidades, ao invés de buscar criar ferramentas que pretendam construir um batalhão de seres iguais. É valorizando a criança de agora, buscando fazê-la feliz, permitindo que tenha acesso a meios que propiciem que ela se desenvolva e exercite a criatividade que o prognóstico do adulto de amanhã será bastante otimista.

A viabilização de que a criança tenha momentos de prazer, aliados à atividade pessoal e coletiva, é determinante na construção de sua personalidade. Muito mais do que a aquisição de conteúdos específicos, os espetáculos teatrais podem contribuir para o amadurecimento paulatino e saudável de uma pessoa, com iniciativa e opinião, em todas as fases da vida.

A independência e a superação da infância antes requerem o desenvolvimento da personalidade do que tornar-se melhor numa tarefa específica ou travar batalha com as dificuldades externas (BETTELHEIM, 2012, p. 200).

O teatro é o lugar da integração social por excelência, contribuindo para que a criança perceba que faz parte de um coletivo e de que sua presença é determinante nele. Seja nas ideias abordadas nos espetáculos, seja ao mobilizar um grande número de pessoas para assistir aos trabalhos (viabilizando momentos de intensa comunhão coletiva), o Bando de Brincantes pretende cooperar para que a criança se reconheça enquanto ser social. Nesse sentido, ao referir a ideia de Vygotsky de que a consciência individual só existe junto à consciência social e que se constitui na materialidade da linguagem, Gil propõe que

a consciência não está dada desde o início e não surge espontaneamente da natureza; a consciência é gerada pela sociedade, nela se produz. Portanto, é possível formular uma teoria materialista da criatividade, contanto que se leve em conta que é a ação criativa social o ponto de partida, e que a imaginação é produto do meio, e não de mentes privilegiadas. O contexto brasileiro, por exemplo, é forte em contrastes étnicos, raciais e sociais, daí seu potencial criador, sua imanente originalidade (1999, p. 47).

É na busca de valorizar essa retroalimentação criativa da coletividade que o Bando de Brincantes busca inspiração na cultura popular e no universo infantil. Bebendo nas fontes da brincadeira, dos folguedos, cantigas e quadrinhas, o Bando dialoga enquanto integrante da cultura de seu povo, pretendendo ser mais um elemento a colaborar na alegria e desenvolvimento das crianças e adultos hoje e na construção de um mundo melhor, a cada dia.

Os espetáculos do Bando procuram evidenciar as possibilidades de transformação, deixando muitos espaços a serem preenchidos pela imaginação de cada um. Importante também é apresentar desafios de vocabulário, de percepções e de formulações lógicas. Em meio a um universo lúdico, esses desafios serão estímulos para o desenvolvimento infantil e dialogarão com a criança em nível adequado a ela, sem causar nenhum tipo de frustração que a impeça de prosseguir em busca dos sentidos, com todos os sentidos.

As ações do Bando de Brincantes estão comprometidas eticamente com a valorização da diversidade e com o diálogo respeitoso com a criança, reconhecendo-a como sujeito social hoje. As propostas artísticas do Bando buscam relativizar as verdades prontas, valorizando o contexto em que cada proposta está situada.

As crianças têm a tendência de reproduzir as referências morais e as condutas éticas apresentadas a elas. Assim, o Bando de Brincantes repudia qualquer efeito cômico embasado em preconceitos ou cenas que valorizem o consumismo; a competitividade, ao invés da cooperação; o desrespeito à integridade da mulher ou a desvalorização da capacidade intelectual da criança.

Nas diversas vezes em que fui jurada de prêmios de teatro, vi esses temas encenados reiteradas vezes, em uma reprodução automática e irrefletida dos valores promovidos pelos meios de comunicação de massa, a partir do senso comum. O Bando de Brincantes acredita que o teatro tem um compromisso análogo ao que deve ter o jogo, conforme Gil:

O jogo, como meio de educação de bases morais, deve ter um conteúdo ético. É preciso preocupar-se porque os pré-escolares assimilam as normas de comportamento, aplicando em outros fins as mesmas situações criadas no jogo imaginário (1991, p. 51).

Por fim, ao buscar divertir, instigar e desenvolver as distintas formas de expressão, o Bando de Brincantes pretende cooperar na formação de cidadãos responsáveis, que lutem por seus direitos e que respeitem ao próximo, reconhecendo-se enquanto parte ativa do processo coletivo.

Com seu trabalho, o Bando de Brincantes procura contribuir para a construção de um mundo onde a criatividade, a diversidade e a responsabilidade social sejam os meios para a transformação. Um mundo no qual as pessoas possam dar voz às suas opiniões sem serem consideradas insolentes ou desagradáveis, criando e recriando multiversos possíveis nos quais a mudança seja encarada com tranquilidade e as ações sejam regidas, não mais pelo princípio da lucratividade, mas pelo bom senso e pelo amor.

Epílogo

Com esta dissertação, procurei refletir sobre a importância artística e pedagógica do teatro para crianças. Construí as reflexões a partir de minhas vivências junto ao Bando de Brincantes, pois acredito que o estudo acadêmico deve servir à vida, basear-se nela e retornar a ela dialeticamente. Por isso, a abordagem de fatos de minha infância e adolescência. Por isso, o desejo de reverenciar a todos os mestres. Por isso, o diálogo entre imagens e palavras. Por isso, também, a necessidade de ter inúmeras vozes narrando essa história, já que ela é fruto de um trabalho coletivo e da integração direta e indireta de milhares de pessoas com ele.

Buscando o concreto do pensamento, por meio da unidade do diverso existente entre teoria e prática, parti das reflexões de Gil sobre a ciência dialética de Marx, a qual

se configura como um conjunto logicamente organizado de co-relações infinitas entre o pensamento e a realidade, através da prática ativa da vida, sem separação ou dissociação (2004, p.62).

Coerente com o ponto de partida, a linha de chegada desse trabalho nega toda verdade imutável, todos os princípios da sabedoria eterna (GIL, 2004, p.62). O objetivo é contribuir no processo de aprimoramento da área e do próprio trabalho realizado pelo Bando de Brincantes.

Dedico minha vida à arte, por convicção do seu papel fundamental no mundo. Não existe reflexão sem arte. Não existe educação de pessoas autônomas e críticas sem arte. A felicidade precisa de arte!

As múltiplas leituras, a instabilidade de verdades tidas como absolutas, a retroalimentação da criatividade, o movimento do pensamento dialético são as armas que podem viabilizar um mundo mais justo e harmonioso.

A arte move. A arte faz pensar. A arte questiona e faz questionar. A arte mostra que o que é assim hoje pode ser completamente diferente amanhã. E, por isso, a arte incomoda.

Por isso, nós, trabalhadores da arte, temos de lutar exaustivamente disputando as parcas verbas destinadas à cultura.

Em um país que é uma das primeiras economias do mundo e um dos últimos no ranking da educação da UNESCO, promover a arte pode ser um caminho perigoso, que desestabilize a vergonhosa desigualdade social desse Brasil tão lindo, criativo e diversificado.

Trabalhamos 70% do tempo em questões burocráticas, fazendo negociações, carregando peso, escrevendo projetos, para, nos 30% que restam, fazer a arte que, acreditamos, não somente pode mudar o mundo amanhã, mas que hoje, em cada sessão, em cada encontro, já está contribuindo para que o agora seja melhor.

Viva os trabalhadores da arte!

Viva o teatro!

Na roda da fantasia
Quem vem primeiro afinal:
A galinha ou o ovo?
A grande viagem final
É um convite, com alegria
Pra começar tudo de novo! [06]

Bibliografia

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

GARDNER, Howard. Inteligência: Múltiplas perspectivas. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

GIL, João Pedro Alcantara. “A abordagem dialética na pesquisa de teatro e educação”. CENA: Revista do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Porto Alegre, n. 3, p. 59-66. Novembro de 2004.

______________________. O significado do jogo na educação infantil. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Educação, Santa Maria, 1991.

______________________. Para além do jogo. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Educação, Santa Maria, 1999.

JUGUERO, Viviane. Jogos de inventar, cantar e dançar. Porto Alegre, Libretos, 2010.

VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. Lisboa: Relógio d’água, 2007.

Notas

[01] Capítulo presente na dissertação de mestrado de Viviane Juguero, intitulada “Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças”, defendida no PPGAC/UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Gil. Para fazer download da dissertação completa, acesse o link http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/97657

[02] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Gil.

[03]Pulga atrás da orelha é uma expressão popular que significa que algo deixou a pessoa intrigada e que será necessário ter mais informações e pensar a respeito para chegar a alguma conclusão sobre o assunto.

[04] Na dissertação, após esse preâmbulo, vem o capítulo “A arte mais humana”, o qual, foi publicado no site do CBTIJ, como capítulo IX.

[05] Ciente da existência de pontos de divergência entre as teorias de Gardner, Piaget e Vygotsky, articulo as ideias aqui relacionadas, nos pontos específicos onde essa intersecção é possível, sendo coerente com o processo dialético de construção do conhecimento.

[06] Texto do livro Jogos de inventar, cantar e dançar, de minha autoria.