Pinóquio

Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro –  30.03.1984

Barra de Divisão - 45 cm

As Aventuras do Folhetim de Collodi

Quem está acostumado a pensar no Pinóquio como história exemplar a ser narrada a crianças desobedientes ou mentirosas certamente levaria um susto ao se defrontar com qualquer edição completa do romance-folhetim de Carlo Lorenzini (o Collodi) publicado no Gionarle dei Bambini em 1881 e 1882 e reunido em volume no ano seguinte. Não que falte completamente o tom moralista. Até um narrador irônico como o de Collodi tropeça em castigos aos “maus elementos” como Pavio Curto, o menino que convida Pinóquio a viajar para a Terra dos Burros, ou à Raposa e ao Gato, punidos depois de muitas trapaças.

Mas seria demais exigir de Collodi um olhar tão perverso ou ousadias de linguagem como as de Lewis Carroll. No modelo de romance que tinha em mãos – o folhetim – e jogando com algumas das formas de expressão cultural populares mais disseminadas na Itália durante as últimas décadas do século passado, o resultado obtido por Carlo Lorenzini é excelente. E o aproxima, de certa maneira, de um dos folhetinistas mais famosos do século XIX, Eugène Sue, que, como o italiano Collodi em As aventuras de um boneco, trouxera à cena, nos seus Mistérios de Paris, questões sociais, personagens e bas-fonds ainda pouco explorados tematicamente pelo que se considerava então a “grande literatura”.

Collodi não se limita a apresentar figuras como as do estalajadeiro ladrão, do pequeno fazendeiro tão zeloso por sua propriedade, do garrafeiro, do pobre Gepeto, dos doutores com pouca ciência; não se limita a lançar ao primeiro plano um verdadeiro universo de personagens mesquinhos, cujos horizontes são os da pequena burguesia, público por excelência dos folhetins no fim de século europeu. Era sobre si mesmos, portanto, que liam emPinóquio. Sobre seu respeito ao pai, à família, à propriedade, ao saber. Mas, curioso truque do narrador-arlequim de Lorenzini: liam tudo isto, mas numa linguagem e com um humor que não eram bem os seus. É com o auxílio de recursos oriundos de narrativas ou espetáculos populares que Collodi parece manipular o protagonista de seu folhetim, este misto de boneco e menino, madeira e máscara, personagem literário e teatral.

E, ao invés de endossar seja o horizonte ideológico pequeno-burguês, sejam as
formas culturais populares (como os stenterelli) ou burguesas (o romance), Carlo Lorenzini diverte-se em colocá-las em estado de tensão. Estado semelhante ao de um público cujos parâmetros estéticos também não pareciam tão seguros: o romance de leitura sincopada e comunitária, veiculado pela imprensa; o triunfo dos grandes espetáculos dramáticos-musicais em espaços fechados; a perda de interesse e o desaparecimento progressivo de personagens como os stenterelli, espécie de solitários herdeiros da tradição do improviso e da interpretação popular da commedia dell´arte.

É entre estes três mundos (o burguês, o pequeno-burguês e o popular), entre dois tempos (passado e presente) e entre formas de expressão artística bem diversas (romance, teatro, improvisação) que se movimenta este personagem tão sujeito a metamorfoses que é o Pinóquio, ora pedaço de madeira, ora boneco, ora cão de guarda, ora burro, ora menino. Metamorfoses que se estendem igualmente a um texto cuja obrigação é conquistar o leitor e mantê-lo preso à narrativa por cerca de dois anos. Daí o império da aventura, do suspense, da mutação quando se trata de um folhetim como As aventuras de Pinóquio.

Talvez, no entanto, o maior charme deste texto dentre as demais histórias juvenis de Collodi esteja justamente no fato de não enfatizar demasiadamente nenhum dos elementos em tensão no romance, de abandonar melodramas até ao narrar fatos trágicos como o assassinato do grilo falante por Pinóquio (“infelizmente o martelo foi bater bem na cabeça do pobre Grilo que, sem forças sequer para soltar um cricri, ali ficou amassado contra a parede”), de pincelar maldades até no aparentemente celestial Gepeto (“Vou chamá-lo de Pinóquio. É um nome que lhe trará felicidade. Conheci uma família inteira de Pinoquios. Pinóquio pai, Pinóquia mãe, Pinóquios filhos – e todos safam-se bem na vida. O mais rico pedia esmolas”), de ironizar religiosidades (“E daquela água saía um cheiro de peixe frito tão forte que Pinóquio achou que já estava na Quaresma”) e até as expectativas do leitor tornando-as cômicas de tão explícitas, como na cena em que o pescador prepara-se para devorar Pinóquio e o capítulo do folhetim encerra-se com as seguintes palavras: “Agarrou-o então pela cabeça e …”

Texto tenso entre sutilezas e risos escancarados, referências literárias e teatrais, não é de estranhar que tenhamos adaptações e traduções de tão má qualidade em nossas livrarias. Exemplar, nesse sentido, é a das Edições Celbrasil, com luxuoso tratamento gráfico, mas que não inclui sequer a autoria do Pinóquio, como se fosse texto folclórico. Além de não haver a menor referência a Lorenzini, retiram-se sumariamente episódios e personagens e altera-se a história original sem maiores explicações. Explica-se, pela dificuldade mesma de lidar com a narrativa crítica de Collodi, o fracasso também de sua adaptação cinematográfica pela Walt Disney Productions, que fez do Pinóquio uma história muito açucarada e pouco picaresca. É interessante apontar porém a qualidade da tradução pioneira de Monteiro Lobato (versão integral, 1933), trabalho relançado recentemente pela Companhia Editora Nacional.

Do ponto-de-vista das adaptações teatrais não temos tido muita sorte com Pinóquios em geral encenados por gente que jamais se interessou em saber qualquer coisa sobre o texto de Collodi ou sobre algumas belíssimas versões teatrais realizadas na Itália. O Grupo TAPA, ao contrário, dispôs-se a enfrentar o folhetim de Lorenzini com base em edição completa dos textos editados no Giornale dei Bambini e na adaptação do texto, feita para público adulto, pelo italiano Carmelo Bene. E, ancorados ainda, nos excelentes resultados de outra adaptação do grupo, a de O Anel e a Rosa, de Thackeray, há três anos.