Publicada no O Estado de São Paulo – Caderno 2
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 18.07.2002

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Autores e Diretores Debatem Crise do Teatro Infantil

Há muito oportunismo e baixa qualidade nos palcos do País, quando o público-alvo é a criança; a convite do ‘Estado’, profissionais do setor sugerem rumos para esse gênero de dramaturgia.

Paulo Humberto / BVDA

Dib Carneiro Neto – No conjunto das artes produzidas heroicamente no País, o teatro infantil é tido como um dos segmentos mais sofridos, mais à margem da margem da margem. Há preconceito por todos os lados. Como livrar as produções infantis desse estigma de ‘pecinhas’? Como melhorar a qualidade do que se produz para as crianças nos palcos brasileiros, para que diminua esse preconceito?

No mês passado, um primeiro e solitário passo foi dado no sentido de discutir esse assunto com quem está à frente do teatro para crianças e jovens em São Paulo. Por iniciativa da empresa Panamco, que patrocina o único prêmio voltado exclusivamente para teatro infantil na cidade, o ator Ewerton de Castro, também jurado da premiação, coordenou o primeiro debate de série Encontros do Teatro Jovem. A ideia da Panamco é reunir mensalmente os profissionais do setor para troca de ideias sobre as dificuldades e os preconceitos que nivelam por baixo, e muitas vezes com razão, o teatro infantil no Brasil. O próximo encontro está previsto para o dia 6, no Café Aprendiz, na Vila Madalena.

“Acho que a realidade do teatro infantil hoje é a seguinte: por que gastar tempo escrevendo um texto, batalhar a sua encenação, correr o risco de ser mal aproveitado por uma direção duvidosa e interpretações amadoras e além do mais ter um retorno financeiro ridículo, ou até mesmo nulo?”, comenta Ewerton. “O teatro infantil está em pleno descrédito, sobretudo no que se refere ao retorno financeiro.”

Assim como acontece com a literatura para jovens e para crianças, a dramaturgia infanto-juvenil também é vista comumente de forma errada, equivocada, ou seja, a sociedade atribui às peças infantis um poder que elas não têm e não precisam ter: o poder de transformar as crianças em melhores crianças, em felizes crianças. Esse tipo de boa intenção só serve para embotar a criatividade de um autor e diminuir o valor artístico de seu trabalho. O teatro para jovens e crianças pode até conseguir complementar a tarefa dos pais e dos educadores, mas desde que não abra mão de sua condição de obra de arte, ou seja, se o artista estiver consciente das boas intenções, mas livre do compromisso de transmiti-las a todo custo.

Um bom texto de dramaturgia para jovens e crianças não é o que nasce querendo manipular, formar, educar, orientar, catequizar, mas o texto que faz disso tudo uma decorrência de sua condição livre de obra de arte.

Oferecendo liberdade em forma de arte é que se consegue formar pensadores, estimular reflexões, derrubar conformismos.

E fazer teatro infantil de olho na liberdade não significa pregar a bagunça, o descontrole, as liberalidades, as inconsequências. Não significa atropelar os cuidados com o ser humano em formação. Significa apenas criar uma dramaturgia infantil menos rotineira, menos aborrecida. Significa ousar mais, pensar muito mais nos quintais do que nas salas de aula. Há muito o que se fazer e se criar em cima de um palco. Sobretudo, há muito ainda o que se arriscar pisando em um palco. Fazer uma criança se espantar diante das infinitas possibilidades do jogo teatral significa fazê-la compreender que há infinitas possibilidades no jogo da vida.

Nesta edição do Caderno 2, convidamos seis profissionais da área para debater sobre todas essas questões: os autores Vladimir Capella, Aimar Labaki e Isser Korik, as diretoras Débora Dubois e Pamela Duncan e o ator Ewerton de Castro.

Questão 1 – A dramaturgia voltada para crianças e adolescentes tem cada vez menos autores novos. Na sua opinião, o que está levando a esse quadro?

Aimar Labaki – Não sei se há menos autores ou se há menos possibilidade de se produzir. Autores não se formam por geração espontânea. É preciso que sejam montados para que possam amadurecer. E até para que se saiba que eles existem. O mercado teatral está inchado e desarticulado. Nesse contexto é muito difícil abrir nichos novos. E o trabalho para adolescentes e jovens exige um grau de precisão e qualidade talvez até maior que o requerido no trabalho pra adultos.

Vladimir Capella – Esse assunto é extenso, digno de uma tese. Mas, para resumi-lo num pensamento ‘curto-e-grosso’, eu diria que esse quadro só se reverterá quando a sociedade como um todo puder ver a criança com outro olhar. Enquanto a criança for vista como um apêndice do mundo adulto essa situação tenderá a se eternizar.

Pamela Duncan – Há uma tremenda desmotivação cultural e falta de políticas culturais em relação à dramaturgia infantil. E os produtores não apostam em nomes desconhecidos. Para os autores, falta tempo livre. A sobrevivência nos mata. O “ócio” aristotélico, no qual o artista pensa, reflete, observa, apreende e sonha, não é permitido nas grandes cidades.

Isser Korik – Produzir um espetáculo para crianças se torna tarefa arriscada, de retorno duvidoso. Logo, a demanda por textos é também menor.

Débora Dubois – Talvez a falta de incentivo aos novos autores teatrais seja mais antiga do que imaginamos ou talvez a gente não conheça suficientemente nossos jovens (e então o que dizer?). Talvez não estejamos dando espaço para aparecerem escritores espalhados pelo Brasil. Talvez o ensino escolar, nas aulas de Literatura, passe longe da dramaturgia.

Questão 2 – Aponte um atributo que, na sua opinião, é fundamental para um autor que queira escrever peças de teatro infantil. 

Ewerton de Castro – O autor de teatro infantil tem de ter essa consciência de seu dever social. Todo artista, incluindo os autores, sobretudo os que lidam com crianças, têm de se conscientizar de que são educadores. E essa função é da maior responsabilidade. Se nossa obrigação é ensinar, o que estamos ensinando para as nossas crianças e/ou adolescentes? Estamos, com o nosso trabalho, prestando um serviço ou um desserviço ao teatro já que somos formadores de espectadores?

Aimar Labaki – Responsabilidade, saber que está falando para um público “desarmado” que será inevitavelmente influenciado.

Vladimir Capella – Em primeiro lugar, deve ser um bom autor. Sem especificação. Isso é fundamental e raro. Depois, deve ser um adulto que ainda não tenha deixado morrer a criança que um dia ele foi. Não pode ter vergonha disso. E mais: precisa ter conservada intacta, em algum cantinho de si, a capacidade de chorar, de torcer e se emocionar ao ler um conto de fadas.

Pamela Duncan – Honestidade consigo próprio é o principal caminho.

Isser Korik – Dominar o ofício de escrever para teatro é fundamental. As especificidades da dramaturgia em relação à literatura ganham grande importância em teatro para crianças. Em seguida, ter contato com crianças e o seu universo.

Débora Dubois – Aliar criatividade com bom senso. Acho que isso vale para todos os envolvidos com teatro para crianças e jovens.

Questão 3 – Nas peças que você tem visto ultimamente, nos palcos de São Paulo, no horário da tarde, que defeito mais o incomoda? Quais os principais problemas que saltam aos olhos da plateia? 

Ewerton de Castro – São muitos, mas o maior deles é falta de texto. Os atores, atualmente, acham que basta colocar um nariz vermelho e improvisar uma ou duas situações é está realizado um espetáculo. Há uma grande diferença entre teatro e animação de festa infantil. Quando não improvisam um texto fazem tudo usando mímica. E esses “clowns” mal preparados gastam minutos intermináveis para canhestramente tentarem tirar um pé de sapato sem que isso esteja inserido em nenhum contexto dramatúrgico.

Vladimir Capella – Primeiro, o desconhecimento do universo receptor ou uma visão equivocada sobre ele. Segundo: uma velha e generalizada mania de ver o entretenimento como a única possibilidade de dialogar com o universo em questão. E terceiro, a inexpressividade enquanto realização artística.

Isser Korik – A falta de conteúdo. É como se, para agradar as crianças, não houvesse necessidade de ideias. A sensação que tenho é a que existe uma crença de que basta ter um visual (cenários, figurinos, maquiagem) vistoso para se “distrair” as crianças.

Débora Dubois – Falta de compromisso em se contar uma história séria, ou falta de objetivo ao contar uma história. Falta de criatividade e de bom senso, somados a um tratamento geral extremamente “infantilizado”. Nós, adultos, temos a terrível e assustadora tendência de nos tornarmos “imbecis” diante deles, na ânsia de agradá-los. Às vezes, nós, fazedores desta arte, nos perdemos, e aí já é tarde; outras vezes, estamos tão envolvidos no trabalho que não conseguimos enxergá-lo com distanciamento e senso crítico para entendê-lo e consertá-lo.

Questão 4 – Um autor de peça para adolescentes precisa levar em conta a agilidade da linguagem de videoclipe, os videogames, a internet, se não quiser correr o risco de ficar falando sozinho. Você concorda com isso? Por quê? 

Ewerton de Castro – A magia do teatro independe de modismos e ritmos alucinantes. Teatro é teatro, videogame é videogame e internet é internet. Cada coisa no seu devido lugar. Cada coisa com a sua linguagem. O teatro pode usar outras linguagens desde que não despreze a sua, que é a da magia absoluta.

Aimar Labaki – Se por “levar em conta” você quer dizer “se adequar” , não concordo. Teatro tem uma lógica diferente. É óbvio que é preciso compreender as dificuldades de concentração do público de videoclipe – nesse sentido, fazer uma peça longa pode ser um erro. Mas é possível levar o espectador jovem a experimentar outro ritmo, outra possibilidade de fruição de um espetáculo, na medida em que se consiga sintonizar seus interesses e suas questões.

Vladimir Capella – Um autor de teatro, para qualquer idade, precisa levar em conta o ser humano. Ajudá-lo a encontrar significados para a vida. Trabalhar com as questões essenciais que o atormentam, fornecendo subsídios para que ele possa identificar-se, projetar-se, rir, chorar, reflexionar e construir sua história. E isso pode ser feito com uma linguagem ultramoderna ou clássica. Assim como um diretor pode conceber um espetáculo cibernético ou com velhas caixas de papelão.

Pamela Duncan – Acho que a gente fica falando sozinho quando se acha na obrigação de ser “moderno” e coloca tecnologia sem sentido no palco, sem conteúdo.

Débora Dubois – Acredito que o teatro também deve viver suas delicadas mudanças e o uso da tecnologia é uma das formas, se for pensada de forma criativa, procurando e pesquisando maneiras diferentes de utilizá-la no palco.

Isser Korik – Sou contra. A agilidade que procuro é puramente teatral. Ritmo tem a ver com emoção.

Questão 5 – Você acha que existe uma linguagem específica para falar com criança no teatro ou você acha que todo tipo de segmentação é castrante? 

Ewerton de Castro – Há assuntos que interessam mais às crianças, mas a linguagem é uma só, a teatral. Ou podemos correr o risco de se fazer um teatro debiloide. A criança deve ser tratada como gente.

Aimar Labaki – No caso da criança, não acho que seja uma questão de segmentação, mas sim de adequação e responsabilidade. Fora isso, existem tantas linguagens possíveis quanto o número de peças a serem escritas. Criança é ainda mais aberta que o adulto. Embarca na linguagem e no jogo propostos. Se forem bons.

Vladimir Capella – Não dá para dizer que não há uma certa especificidade. Há sim. Mas não se pode fazer disso um bicho de muitas cabeças, senão vira teatrinho infantil. Quem pode nos dar parâmetro é aquela criança interior que eu falei anteriormente. Se ela estiver viva dentro da gente, ela sabe o que podemos ou não fazer e dizer.

Isser Korik – Acho importante que o autor saiba a quem se dirige. Para mim, o entendimento de um texto tem a imagem de uma espiral ascendente. Uma criança menor entenderá os fundamentos da história, se envolverá com os personagens, saberá onde começou, onde terminou, quem “ganhou”… Uma criança maior perceberá mais detalhes. E os pais refletirão com profundidade sobre os valores propostos, a linguagem estética. O bom texto é o que atinge todos os níveis da espiral.

Débora Dubois – Penso numa “linguagem específica” para cada tema e espetáculo e tenho medo de me estagnar e me tornar repetitiva. O que acho importante é se ter uma faixa etária clara para ser atingida; isso pode ajudar muito, tanto o autor como o diretor, para não se perder e poder criar um espetáculo claro.

DEFEITOS MAIS COMUNS NAS PEÇAS DE CENSURA LIVRE

Acompanhe abaixo uma lista de equívocos que invadem os palcos nos horários vespertinos

Há um festival de equívocos nos palcos do teatro infantil e isso faz aumentar o preconceito dos adultos com relação a esse tipo de arte. O oportunismo chega ao ponto de se criar a seguinte situação: quando uma peça é boa e recebe elogios nos jornais, outros grupos montam textos com títulos parecidos ao do espetáculo elogiado, para criar a confusão de nomes e conseguir atrair o público mais desavisado. A seguir, uma lista dos defeitos mais comuns. Nas fotos em destaque, aparecem dois exemplos de peças em cartaz atualmente em São Paulo: uma que dificilmente vai se encaixar em algum dos itens abaixo, a criativa Bzzz! O Retrato de Janete, no SESC Consolação, e outra que, ao contrário, talvez não fique de fora de nenhum dos problemas citados abaixo, a péssima Chapeuzinho Vermelho – O Musical, montagem carioca em temporada no Teatro Ruth Escobar.

1) Excesso de intenções didáticas 

Não é preciso ser explícito, criança é capaz de entender sugestões, simbologias. Arte é feita de alegorias, de metáforas. Estranheza é saudável. Criança tem capacidade de interpretar o que vê.

2) Uso de humor fácil e grosseiro

Muitos autores lançam mão de bordões televisivos para fazer a plateia rir (“da hora”, “fala sério”, “faz parte”). Isso cria no autor um falso retorno de aprovação do humor da peça. Essa facilidade de recorrer a bordões chulos e vazios da TV é um recurso pobre, que só escancara a incapacidade do autor de criar situações risíveis por elas mesmas.

3) Excesso de efeitos multimídias 

Muitos autores ficaram com ideia de que, para atingir o jovem no teatro, basta levar para o palco os recursos tecnológicos a que esse jovem está acostumado a lidar, ou seja, a linguagem de videoclipe, a rapidez da internet, as cenas pré-gravadas em vídeo e exibidas em telões em cima do palco. Mesclar linguagens artísticas diferenciadas é uma atitude até coerente com o universo adolescente. Mas abusar disso é lamentável e afasta os autores das especificidades da carpintaria dramatúrgica.

4) A obsessão pela lição de moral 

Teatro infantil não tem a obrigação de encerrar em si uma bela lição construtiva. Em vez do dedo em riste e da lição de moral, vale mais a pena, e é até mais honesto,tentar contar livremente uma história e deixar que a criança se identifique, que a criança a vivencie por si mesma. Não é necessário invadir o imaginário da criança com regras de conduta.

5) Edulcoração dos contos de fadas

Os contos de fadas nasceram muito mais realistas, muito mais cruéis do que eles são hoje. Hollywood e os estúdios de Walt Disney transformaram tudo em final feliz, valorizando excessivamente o triunfo do amor e da bondade. Reduziram o poder transformador de um conto de fadas, minando neles a capacidade de fazer uma criança amadurecer. Um conto de fadas oferece significados em muitos níveis diferentes e enriquece a existência da criança em muitos modos.

6) Participação forçada da plateia 

Até hoje, muitos autores de teatro infantil reproduzem aquela velha cena em que um personagem se esconde do outro e quem procura se dirige à plateia com a infalível pergunta: “Pra onde ele foi?” A garotada e até os pais entram no jogo e lá se vão uns dez minutos de “Foi pra lá”, “Não, foi por ali”, “Agora, está aqui” e assim por diante. O autor fica feliz porque acha que conseguiu promover uma interação do espetáculo com o público. Quem foi que disse que, para estar interagindo com o espetáculo, uma criança tem de berrar, sapatear, gritar? O profundo silêncio de uma plateia, muitas vezes, é a maior prova da interação, da comunicação com o espetáculo.

7) Obsessão pela segmentação 

Existe hoje uma tendência mercadológica castrante e limitadora, que segue distribuindo rótulos em profusão às manifestações artísticas, enquadrando tudo em faixas etárias, dividindo o mundo em categorias fechadas, acomodando a arte em gêneros estabelecidos. Teatro infantil é, antes de tudo, teatro. E como tal, no máximo, pode ser classificado por sua boa ou má qualidade.

8) Uso abusivo e despreparado da linguagem dos clowns

Proliferam pelos palcos montagens em que os autores encaixam uma bola vermelha na ponta do nariz e acham que isso, por si só, já faz um espetáculo teatral. A linguagem do clown é difícil, especializada, deve ser trabalhada com rigor, com muito critério e criatividade. As crianças são submetidas no palco a típicos shows de palhaços de festinhas de aniversário e os pais saem achando que levaram o filho ao teatro infantil. Isso também vale para os espetáculos de bonecos. Não bastar comprar fantoches no loja da esquina e montar um espetáculo. Artistas estudam anos e anos para entender da arte de manipulação de bonecos.

9) Diálogos mal escritos e ineficientes 

Dramaturgia é antes de tudo literatura e, por isso, deve ter todos os compromissos com a profundidade e a criatividade da literatura, sem perder o pé da oralidade. O discurso teatral é uma expressão artística que tem de ser encarada com responsabilidade, porque o texto dramático tem a capacidade específica de reproduzir as falas sociais, as aspirações, os sonhos e as esperanças. Peça infantil com diálogos descuidados, frases mal construídas, ideias truncadas, é um mau teatro.

10) Mercantilização do espetáculo teatral 

Há quem não seja tão rigoroso com relação a esse aspecto, mas realizar sorteios de produtos no final dos espetáculos é um desvirtuamento da função do teatro, é um mercantilismo desnecessário. A criança tem de levantar da poltrona concentrada no que viu, na arte que desfilou pelo palco o tempo todo e não preocupada se o número de sua poltrona vai ser o número sorteado para ganhar os brindes. Teatro não é programa de auditório.