Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 10.09.1977

Barra

As crianças e o poder

Zé Capim, de Ricardo Mack Filgueiras, atual cartaz do Teatro Nacional de Comédia, foi a peça vencedora do Concurso e Dramaturgia Infantil do Serviço Nacional de Teatro, versão 1976. (Alias, já está na hora de ser aberto o edital para aversão 1977. Ou será que as dificuldades existentes com o concurso de dramaturgias de peças para adultos vão acabar prejudicando o sempre prejudicado teatro infantil?). Em fevereiro, quando saiu o resultado, chamei a atenção para o fato de que Zé Capim certamente tinha sido reescrita, pois era um texto com falhas muito visíveis (eu conhecia a peça por ter sido membro do júri do Concurso do Paraná). Na ocasião, escrevi: “A peça enfoca uma questão importante: como mostrar o exercício do poder para uma plateia infantil? Ninguém mais do que a criança enfrenta tão repetidas vezes durante um dia as dificuldades decorrentes de sua relação com o poder. Para as crianças, o poder é o colega mais velho; é a babá; é a mãe do vizinho; é o síndico; o porteiro; a escola; a família. E, na maioria das vezes, a criança se relaciona com os veículos do poder de forma passiva, conformada, obediente, comportada. A educação moderna ainda não conseguiu fazer com que, na prática, o poder seja exercido de uma forma aberta. Para a maioria das crianças poder é sinônimo de proibido. Isso permite, então, um belo campo de trabalho para o autor. Mas é preciso não se perder pelos caminhos. Principalmente não se perder pela confusão. As crianças devem receber estímulos adequados para compreenderem claramente o que se propõe. No caso específico de Zé Capim, as ideias não ficam claras: parecem estar inclusive, confusas na cabeça do autor. Desta forma, o texto dificilmente permitirá que as crianças tirem alguma relação viva com o seu dia-a-dia. A não ser, é claro, que a peça tenha sido reescrita”.

Logo depois, recebi uma carta de Ricardo Filgueiras confirmando ter feito várias revisões no texto. Isso se nota claramente quando se assiste a encenação (do próprio autor). O texto está mais enxuto e as ideias sobre o comportamento do ser humano quando do exercício do poder estão melhor expostas. Entretanto não foi totalmente resolvida à mudança de atitude do Zé Capim depois que se transforma em rei. Permanece ainda como algo muito arbitrário: sente-se que é o autor que, com seus fios manipula seu personagem-marionete.

O autor pinta um quadro sem saída: o governante é incompetente e inconsciente; entretanto, quando derrubado, tem como sucessor um representante do povo igualmente despreparado. Mas surge a solução: “acenda uma lanterna, não lamente a escuridão; não chore, não fuja, não corra, não morra, mas vá em frente com paixão.”

O espetáculo é gostoso, colorido e se desenvolve com muita firmeza. E enriquecido pela música ao vivo, pelas belas canções de Ubirajara Cabral, pela coreografia de Carlota Portella. O cenário de Isabel Barreto, entretanto, não está à altura do resto: passa muito a ideia do improvisado. Os figurinos (de quem?) são bonitos, mas dificultam a informação: Zé Capim está longe de se parecer com um camponês. O elenco funciona corretamente, com Jorge Bueno dando conta do recado no papel-título. Seu trabalho, entretanto, é prejudicado por um tom recitativo: Jorge canta um pouco criando um pouco criando uma atuação muito igual, sem variações. Esther Angélica, como a Pedra mostra mais uma vez uma forte presença cênica. Ricardo Filgueiras, como o rei, dá uma certo tom de comicidade; e ao mesmo tempo, é o responsável pelo pior momento da peça, ao tentar fazer um solo musical. Zé Capim, em cartaz no Teatro Nacional de Comédia, é um espetáculo que pode ser visto; é mais uma alternativa para os pais que se preocupam em levar seus filhos a um teatro de boa qualidade.