Viviane Juguerio. Foto: Eder Rosa

Bate-Papo com Viviane Juguero (01)
Por Clóvis Massa (02)

Caminhos para Lacatumba (03) – uma trajetória autoral na dramaturgia para crianças

Clóvis Massa: Para iniciar, gostaria de saber como se deu, ao longo da tua trajetória como artista e pesquisadora, o direcionamento como autora de peças para crianças?

Viviane Juguero: Eu comecei a fazer teatro, profissionalmente, em 1994, realizando uma peça de teatro para crianças e um espetáculo de rua, paralelamente. Sempre tive muito carinho, curiosidade e respeito pela infância. É interessante perceber que o meu trabalho com teatro para crianças tem um forte vínculo com experiências e discussões presentes no Teatro de Rua. As peças eram A Roupa Nova do Rei, com texto de Roberto Oliveira, com base no conto de Hans Christian Andersen e direção de Jessé Oliveira, (encenada no Teatro de Arena, que tive a honra de dirigir mais de uma década depois) e Panis et Circensis… Para o Povo, com roteiro e direção do Jessé. Nos próximos anos, realizei a graduação no Departamento de Arte Dramática da UFRGS, onde tive muitas experiências cênicas, período no qual estudei em diversos cursos de extensão na Faculdade de Música, como, por exemplo, o curso de composição musical ministrado pelo Professor Fernando Lewis de Mattos, recentemente falecido e a quem presto minha mais sincera homenagem. A musicalidade é um dos elementos fundamentais no trabalho que desenvolvo para crianças e, nesse sentido, destaco a formação com a professora Marlene Goidanich, não somente em diversas disciplinas na Faculdade, mas em muito tempo de aulas particulares, além de contar com ela na preparação vocal de diversos trabalhos.

No período da Faculdade, participei de várias montagens dentro e fora da UFRGS, pois integrava a Trupe de Experimentos Teatrais Bumba Meu Bobo. Com esse grupo, em 1999, montamos a peça A Guarda Cuidadosa, com texto de Miguel de Cervantes e direção de Jessé Oliveira, que sempre teve um trabalho vinculado à cultura popular brasileira. Eu compus e executava a trilha sonora deste trabalho, ao lado de Roger Kichalowsky. Para realizar a trilha, fiz uma longa pesquisa sobre cantigas de roda e coletei um número considerável de manifestações desta natureza. Fizemos o espetáculo, mas meu interesse por cantigas e brincadeiras populares só aumentou. Usamos algumas canções na trilha sonora e fiquei com muitas cantigas arquivadas. Em 2003, retomei a pesquisa de cantigas e escrevi uma contação de histórias, chamada Canto de Cravo e Rosa, na qual eu realizava todos os personagens e a narradora. Desta semente, surgiu o espetáculo (2007) e o livro de mesmo nome (2009), sendo este último foco dos estudos de Doutorado do Professor Fabiano Grazioli, também integrante do CBTIJ.

Realizei apresentações em algumas Escolas de Educação Infantil e fui convidada para dar aulas na Escola Curumim. Primeiramente, não aceitei o convite porque não tinha formação em Licenciatura, mas sim, Bacharelado em Interpretação Teatral e Especialização em Teoria do Teatro. A pedagoga da escola, Cristiane Abelha, e a diretora, Lorena do Nascimento, insistiram muito e, para aceitar, combinei com elas que apresentaria todos os planejamentos das aulas, detalhadamente antes de cada encontro com crianças de zero a seis anos. Eu tinha um planejamento cuidadosamente concebido, mas a base do trabalho era a escuta e a troca de experiências. Essa escuta era especialmente voltada às crianças, mas também respeitava, acolhia e dialogava com os pensamentos da comunidade escolar. Aprendi muito com esse trabalho. Tive que abrir mão de muitas ideias de “arte para criança para adulto ver” e entender a complexidade de partir da simplicidade que propicia o diálogo estético em contextos plurissignificativos. Nesta trajetória, destaco também, a parceria da diretora da Instituição de Educação Infantil Mãe Comerciária, Simone Bittencourt, cuja cumplicidade foi fundamental no desenvolvimento deste trabalho. Nesta época também tive acesso aos trabalhos teóricos de Vera Lúcia Bertoni dos Santos e Tânia Ramos Fortuna, que tiveram um papel muito importante nas reflexões e práticas que desenvolvi desde então.

Aprendi muito nesta trajetória e me apaixonei pelo universo incrível e desafiador que é a criação de trabalhos para a infância. A oportunidade de trabalhar com Dilmar Messias em diversos espetáculos, mas, em especial, na peça “Lili Inventa o Mundo”, com poemas de Mario Quintana, é de grande relevância neste percurso. Desde então, tenho tido experiências muito diversificadas, sempre tendo a responsabilidade de estudar muito, a alegria de aprender sempre e a atitude de perceber o mundo por meio do contexto e não do conceito, uma das premissas mais caras ao trabalho que desenvolvo como “dramaturgia radical”.

Eu comentei com maiores detalhes essa trajetória inicial do meu trabalho dedicado à infância em minha dissertação de mestrado e este relato está publicado no site do CBTIJ/ASSITEJ Brasil nos artigos “Gênese”, disponível no link https://cbtij.org.br/bando-de-brincantes-um-caminho-dialetico-teatro-para-criancas-capitulo-1/ e “Bando de Brincantes”, disponível no link https://cbtij.org.br/bando-de-bricantes-um-caminho-dialetico-teatro-para-criancas-1/

Clóvis Massa: Num contexto de diversidade de práticas coletivas e colaborativas de escrita como é o atual, qual a importância e o grau da relação com o grupo de artistas com quem trabalhas durante o processo de criação dos textos? Ou te consideras uma dramaturga de gabinete?

Viviane Juguero: Com base no pensamento de diversos autores de diferentes áreas, como Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Henry Giroux, dentre outros, eu entendo que toda a autoria de textos parte de processos coletivos de vida. Assim, em nossos textos artísticos ecoam nossas percepções de mundo, nosso ambiente cultural, familiar e socioeconômico, outras obras artísticas, etc., contendo, evidentemente, discursos, reflexões e valores que absorvemos de distintas pessoas em inúmeras situações do ambiente social em que estamos inseridos. Neste sentido, mesmo quem escreve em gabinete reflete ecos de coletividade em sua obra. Atualmente, eu compreendo a autoria com base na configuração das distintas proposições dialógicas realizadas por meio de escolhas estéticas e axiológicas (Bakhtin), materializadas em vetorizações de sentidos (Patrice Pavis) que indicam possíveis caminhos de leituras que irão dialogar com os referenciais dos demais artistas envolvidos na montagem e do público alvo, em situações de criação heterogêneas.

Eu já criei por meio de inúmeros processos distintos e, em todos eles, existe, sim, o momento de gabinete, ou seja, aquela hora em que serão feitas reflexões e escolhas, composição da linguagem, indicações de ação, etc. No entanto, não recordo de nenhum dos meus textos em que não tenha havido, de uma maneira ou de outra, um processo colaborativo. Nos trabalhos que realizo sob a direção do Jessé Oliveira, por exemplo, costumamos discutir os textos virtualmente e presencialmente, conforme cada processo e de acordo com as ideias de quem criou o projeto. Essa é uma questão sobre a autoria muito importante e pouco comentada, na minha opinião. A autoria dos projetos define muita coisa nos caminhos escolhidos para a criação das dramaturgias.

Clóvis Massa: Nessas propostas, as fontes e metodologias de criação geralmente são de que ordem?

Viviane Juguero: Tive a oportunidade de poder participar de projetos com os mais diversos processos, desde improvisações do grupo que está realizando a montagem ou, ao contrário, a criação de um texto que servirá de base para o espetáculo, mas que será livremente adaptado pelo grupo. No teatro adulto, muitas vezes trabalhei com obras de referência. Já no teatro para crianças, trabalho com referências do folclore popular e do universo infantil. Nas minhas criações para crianças, há citações de narrativas populares, de forma explícita ou subliminar, mas elas nunca determinaram o enredo, seja em dramaturgias convencionais ou performativas (que não apresentam a narrativa concreta de uma história). Outro ponto muito importante diz respeito às condições de produção porque elas determinam muita coisa. No mundo concreto, a criatividade precisa dialogar com a possibilidade. Manejar a escassez é uma habilidade que precisa ser desenvolvida por quem cria dramaturgias, especialmente para teatro. Nesse aspecto, o tempo disponível para a criação é um fator crucial e intimamente relacionado com a realidade socioeconômica do projeto e de quem realiza a criação da dramaturgia. Eu, particularmente, que sou uma trabalhadora que vivo da minha arte, com muitas responsabilidades concretas da vida prática, como sustentar casa, comida, escola, etc., preciso sempre ter o pé bem enraizado na terra junto as divagações feéricas de minha criatividade. A relação dialética da materialidade das minhas condições de produção e da minha responsabilidade como ser social que dialoga com a sociedade por meio de objetos estéticos constituem a complexidade estrutural que embasa a criação das minhas dramaturgias. No caso do meu texto publicado pela Editora da PUCRS, Lacatumba, experimentei algo bem especial e distinto de todos os trabalhos anteriores. É a primeira vez que escrevo um texto de teatro para uma publicação de dramaturgia sem estar envolvida com a produção da montagem. Isso me deu uma liberdade muito grande para brincar com as possibilidades de cena, já que ainda não há um projeto de realização do espetáculo. De qualquer maneira, a minha experiência como produtora sempre está lá, dialogando com as possibilidades que acho minimamente viáveis.

Em geral, os meus textos para crianças, até o momento, resultam de processos de muitos anos, com colagens de distintas atividades, experiências, canções, que, por vezes, foram criadas em contextos diversos. Eu não tenho como comentar o meu processo de criação em relação aos grupos de artistas “em geral” porque eles são todos muito diferentes. Cada contexto resulta em um processo no qual possibilidades e limitações estão diretamente vinculados à criação artística e à realidade sociocultural e econômica daquele trabalho.  Seria possível explicar os processos no contexto de cada montagem, mas me parece que seria muita coisa para o objetivo desta entrevista.

Clóvis Massa: Na tua opinião, qual a situação do teatro para a infância e juventude atual?

Viviane Juguero: O teatro para crianças tem algumas vertentes diferentes. Tentando simplificar algo que é bastante complexo, existem, pelo menos, alguns extremos, entre os quais há distintas possibilidades gradativas e de combinação. Enquanto produção, a situação é altamente paradoxal. Por um lado, existem pouquíssimos projetos de incentivo à produção específica de teatro para crianças. As peças, em geral, concorrem com trabalhos adultos em editais, havendo, na maioria das vezes, uma forte desigualdade entre os dois campos, com prejuízo às montagens de caráter infantil. No audiovisual isso tem sido diferente nos últimos anos, com diversas categorias voltadas à infância, em editais bastante bem elaborados. Por outro lado, voltando ao teatro, a demanda espontânea social é maior para o teatro para crianças, em especial no que diz respeito a atividades realizadas junto às escolas, seja levando a escola ao teatro ou o teatro à escola. Devido a essa realidade, ainda hoje persiste o que já denunciava Maria Clara Machado desde a década de 1980, devido ao trabalho que desenvolvia no Rio de Janeiro, desde a década de 1950, no teatro-escola O Tablado. Esta autora e diretora teatral denunciava a enorme quantidade de peças realizadas para crianças impulsionadas somente pelo interesse econômico e não pela motivação de construção estética. Nesse campo, ainda hoje, encontramos a maioria dos trabalhos artísticos produzidos para crianças, sendo realizados, muitas vezes, por pessoas sem qualificação que reproduzem clichês e imagens da grande mídia, ou, ainda, por profissionais, que, embora com formação artística, não procuram aprofundar os conhecimentos específicos do universo infantil, como exigido em todas as demais áreas do conhecimento. Por exemplo, poderia uma pediatra ou um psicólogo não ter conhecimentos específicos sobre a infância?

No outro extremo, estão os discursos artísticos e pedagógicos embasados em verdades prontas sobre o que seria bom para crianças. Inúmeras verdades absolutas pré-estabelecidas têm ganhado terreno em certos ambientes intelectualizados, criando trabalhos e discursos que são lindos para adulto ver, mas que, muitas vezes, não partem de uma busca de diálogo com o pensamento infantil.

Por outro lado, grupos que realmente se dedicam às crianças e procuram dialogar com elas, têm realizado lindos e sérios trabalhos em Porto Alegre. Eu dou alguns exemplos no artigo “Gênese” que citei acima.

Evidentemente, todos os assuntos relacionados ao teatro para a infância me interessam sobremaneira e procuro acompanhar as produções na medida do possível. No entanto, cabe salientar que o meu trabalho como investigadora é voltado à criação estética do teatro para crianças e não à análise de espetáculos de outras pessoas. Saliento isso porque existe pouca pesquisa acadêmica em relação à especificidade da criação estética do teatro para crianças e isso faz com que, por vezes, haja uma certa dificuldade de entendimento da natureza de minha investigação. Na minha experiência, diversas vezes, ao comentarem minha pesquisa sobre teatro para crianças, muitas pessoas já vinculam, compulsoriamente, ao estudo de como ensinar teatro às crianças (o mais frequente), ou ao estudo sociocultural de todos os demais espetáculos para a infância, o que exigiria uma investigação específica e que nunca foi o foco dos meus estudos. Na verdade, a minha investigação acadêmica parte da minha prática artística de muitos anos e dos autores que me acompanharam nesse período de mais de 15 anos de arte para a infância e quase 25 anos de teatro. O que procuro agora é, por meio da práxis, compreender e aprofundar as relações entre teoria e prática nesse processo, com base na proposição de João Pedro Gil de uma investigação dialética no campo do teatro. Minha intenção é contribuir com as reflexões sobre esse campo de atuação e, ao mesmo tempo, aprimorar e desafiar o meu próprio trabalho. Outro aspecto que considero fundamental, no contexto específico de minha pesquisa, é que sempre trabalho com teatro para adultos, simultaneamente. Como estou interessada em entender as especificidades de linguagem, procuro pensar como diversos temas são abordados na arte para adultos e crianças, inclusive no que se refere a assuntos tabu, como morte, identidade de gênero e diversidade racial.

Clóvis Massa: Mas como teus trabalhos mais recentes se inserem nesse campo?

Viviane Juguero: A inserção de meu trabalho no campo sociocultural é algo complexo de explicar porque a realidade econômica é sempre um complicador original. Como é possível constatar em prêmios e inúmeras deferências públicas, o trabalho que desenvolvo junto ao Bando de Brincantes, têm bastante reconhecimento.  Eu adoraria montar o meu texto que será lançado pela PUCRS, por exemplo, um musical repleto de números circenses e coreografias, com músicos em cena e truques de ilusionismo. No entanto, não tenho como ter certeza se irei conseguir estrutura para tanto. O nó que ainda não consegui desatar, é que, no teatro, sempre sou a produtora dos trabalhos e isso exige grande investimento temporal e estrutural. Por vezes, essas questões determinam o tamanho das produções e muitos outros aspectos, sem jamais influenciar o meu posicionamento ético perante o que produzo. Sempre fiz trabalhos que acredito, com a maior seriedade, pesquisa e muito investimento afetivo também, assunto que tem sido negligenciado nas discussões cotidianas do campo das artes e que considero merecer maior atenção. Ao mesmo tempo, ao ingressar no audiovisual, a parceria com a Bactéria Filmes tem propiciado que eu realize o meu trabalho nas áreas que dizem respeito à atuação profissional que realmente me interessa, ou seja, tudo o que concerne à criação artística e ao posicionamento político-pedagógico. Vale ressaltar que a minissérie de animação JOGOS DE INVENTAR, na qual assino o projeto original, roteiros, canções e integro a equipe de criação de vozes e que conta com a direção de Pedro Marques e a produção da Bactéria Filmes, sob a coordenação de Dani Israel, terá estreia internacional nos Estados Unidos, no mês de dezembro de 2018, no dia 01 no Overture Center for the Arts e no dia 05, no Children’s Museum.

Clóvis Massa: Qual o teu papel junto ao Grupo Caixa Preta, núcleo de trabalho que desde 2002 tem realizado produções cênicas com temática afro e ações culturais com a presença de integrantes negros?

Viviane Juguero: O grupo Caixa Preta é dirigido por Jessé Oliveira que concebe os projetos que são realizados. Eu fui uma colaboradora desde o princípio. O Jessé é um grande parceiro profissional há muitos anos e todos os trabalhos que desenvolvemos sempre tiveram um perfil comprometido socialmente. O Caixa-Preta é um grupo de teatro negro que aborda a temática racial por meio de um enfoque estético que é crítico, mas não dogmático. O Caixa-Preta iniciou uma atuação pioneira e revolucionária em Porto Alegre que abriu caminho para as múltiplas manifestações de teatro negro que a cidade abriga hoje em dia. De minha parte, como uma mulher mestiça, afro-latina, brasileira, oriunda de grupo social de classe média bem baixa, sempre busquei encarar a discussão racial com a complexidade que encontro em minha mestiçagem, na certeza de que não sou branca e no sentimento de pertinência e identificação com o tema. No Caixa Preta, trabalhei como colaboradora na equipe de produção e divulgação dos trabalhos Transegun e “Hamlet Sincrético”, além de ter escrito a dramaturgia dos trabalhos Antígona BR e Ori Oresteia, criados a partir de ideia original de Jessé Oliveira, com base em distintos textos de referência. Sobre essa temática, ainda sob a direção do Jessé e com base em ideia original elaborada por ele, escrevi a dramaturgia do espetáculo Cavalo de Santo, encenado na Alemanha, em 2016 e 2017, sob o nome Das Pferd des Heiligen. Este texto será publicado pela FUNARTE em breve, junto a outros trabalhos de dramaturgia negra.

Clóvis Massa: Como essa vertente do teu trabalho se relaciona com a tua produção voltada para crianças?

Viviane Juguero: No Caixa Preta, o Jessé desenvolveu e aprofundou princípios que já existiam no trabalho que fazíamos na “Trupe de Experimentos Teatrais Bumba Meu Bobo”, na década de 1990. Essas experiências ecoam de forma muito contundente em todos os meus trabalhos para crianças, em inúmeros aspectos, desde as temáticas abordadas até os profissionais envolvidos. Nas equipes do Bando de Brincantes sempre foi possível ver a diversidade em cena, desde a pluralidade étnico-racial, etária e socioeconômica até às diferenças de formação profissional.

A proposta de potencializar a percepção da diversidade sempre esteve presente nas dramaturgias que desenvolvi no Bando de Brincantes, seja no sentido estrito (enquanto texto para teatro escrito), seja no sentido amplo (enquanto discurso da encenação). Por exemplo, Canto de Cravo e Rosa abarca, diretamente, a temática da diversidade e foi montado com uma equipe predominantemente afro-brasileira. Jogos de Inventar, Cantar e Dançar abarca a diversidade seja no inusitado encontro da lula e da aranha, seja nas ilustrações do livro, criadas por Mônica Papescu, no elenco e nos bonecos da peça, ou, mais atualmente, na diversidade étnica dos personagens mestiços da minissérie de animação audiovisual Jogos de Inventar.

O espetáculo Quaquarela foi criado com base em brincadeiras populares, em uma dramaturgia performativa que traz a temática racial na eloquência de nossa presença no palco, assim como ocorre em Peteca, Pião e Pique-Pessoa, escrito com a co-autoria de Jorge Rein, que também abarca assuntos tabu de forma subliminar, como as questões de gênero e de abandono afetivo, vinculadas à morte simbólica. Em LACATUMBA, a temática da diversidade de pessoas é central, além de ser ampliada pela pluralidade de expressões artísticas e de buscar aproximar a modernidade e a tecnologia de manifestações do folclore popular.

Clóvis Massa: Identificas princípios e elementos comuns entre essas experiências?

Viviane Juguero: Todos os meus trabalhos para crianças, de uma maneira ou de outra, surgem de relações que estabeleço entre o universo infantil e a cultura popular. Muitas vezes, algumas pessoas, elogiando o meu trabalho (e sou muito grata por isso), consideram-no contraponto ou reação aos malefícios da tecnologia contemporânea, o que nunca foi a minha intenção. Considero serem pertinentes muitas críticas ao uso abusivo e inadequado de equipamentos tecnológicos, mas não concordo com as generalizações.  Por isso, em Lacatumba, procuro brincar com possibilidades criativas que envolvam a cultura popular e a tecnologia.

Clóvis Massa: Para finalizar, na tua visão de autora, do que Lacatumba trata? Quais as matrizes culturais presentes em sua criação e como foi aproximar elementos aparentemente tão distantes?

Viviane Juguero: A temática central de Lacatumba é, novamente, a diversidade humana, contemplando a diversidade de percepções em distintos contextos socioculturais. Cito, como exemplo as cenas em que os habitantes do povoado Lacatumba estranham hábitos do ser andrógino alienígena e, ao mesmo tempo, aproveitam de sua ingenuidade ao inventar costumes culturais para justificar algumas de suas atitudes.

A unidade de Lacatumba surge da mesma matéria-prima de meus outros trabalhos anteriores para crianças: o universo infantil e a cultura popular. O título, inclusive, é uma referência à brincadeira popular “Tumbalacatumba”, presente na cena que apresenta o clímax da peça. Lacatumba traz um misto de seres fantásticos do imaginário popular presentes no Brasil e em diversos países do mundo: lobisomem, bruxa, múmias, alienígenas, bicho-papão, zumbis, etc.
Em Lacatumba tenho a intenção de, por meio de uma linguagem divertida e envolvente, legitimar a cultura popular da contemporaneidade, dialogando com elementos tradicionais. Um referencial bastante evidente é “Thriller”, de Michael Jackson, um trabalho que aborda uma lenda tradicional de uma maneira incrivelmente pop. No campo das artes para crianças, fico preocupada com a polarização que predomina entre o que seria “puro e natural”, como brinquedos de madeira, jogos artesanais, etc., em oposição ao que seria artificial, ou seja, tudo o que é de plástico e que diz respeito à tecnologia. Não acredito nesta polarização de forma alguma e encontro nela uma postura elitista e excludente. A maioria das crianças da contemporaneidade possui fortes referenciais oriundos da televisão, dos videogames, videoclipes e bonecos industrializados. Aliás, os brinquedos de madeira e jogos educativos na atualidade são muito mais acessíveis às camadas social e intelectualmente privilegiadas.

Pré-condenar certas experiências desqualifica muitas importantes vivências sensoriais e emocionais das crianças da atualidade, criando uma polarização que condena e estigmatiza, partindo do conceito e não do contexto. Insisto nesse ponto porque para a radicalidade do trabalho que proponho, ele é essencial. Saliento que entendo radicalidade com base nas proposições de “educação radical” de Paulo Freire, que estão fundamentadas no diálogo, sendo, portanto, completamente distintas da noção corriqueira de “radicalismo” que indica atitudes intransigentes e pensamentos dogmáticos.

Eu acho fundamental que as crianças tenham acesso a brincadeiras, cantigas, quadrinhas e folguedos populares. Todo o meu trabalho testemunha meu esforço nesse sentido. No entanto, isso não significa desmerecer as fortes referências culturais presentes na cotidianidade das pessoas. O pensamento crítico não pode estar dissociado do afeto e nem perder a humildade. Todo o conceito que antecede o contexto, é pré-conceito, ou seja, preconceito.

Entendo que o desenvolvimento estético precisa estar associado à afetividade, com base na qual são construídas as proposições críticas nos sentidos propostos pelas vetorizações da dramaturgia. No caso de Lacatumba, procuro proporcionar reflexões sobre a relatividade dos padrões de beleza impostos, buscar novas percepções sobre a questão da constituição de gênero, bem como ressaltar que existem diferenças de pensamento nas distintas configurações culturais. Acho muito importante que as crianças percebam, desde cedo, ainda que subliminarmente, que nossos valores são construídos socialmente e podem ser questionados, pondo em evidência os “conformismos lógicos”, conforme Émile Durkheim, que determinam muitas percepções sobre a vida. Lacatumba traz algumas colagens de personagens, canções e situações que elaborei em distintos contextos nos últimos quinze anos. As múmias, por exemplo, surgiram de um poema que fiz para ilustrações de Mônica Papescu e que, inclusive, estão publicados no nosso livro “Amor de Múmias”, lançado pela Editora Papo Abissal. Em minhas pesquisas, descobri o quanto o Egito está presente no imaginário brasileiro, com grande intensidade em todo o Rio Grande do Sul, onde inúmeros estabelecimentos recebem nomes egípcios para estarem vinculados a uma percepção mística de seus produtos. Evidentemente que os veículos de comunicação de massas, em especial certas telenovelas, potencializaram essa percepção significativamente. O Egito imaginário onde está situado o povoado Lacatumba também é uma referência à África árabe, abrindo caminhos que possibilitem representações da cultura africana de maneira mais plural do que a repetição de algumas imagens sempre reincidentes. Lacatumba é, propositadamente, um reflexo da globalização cultural, sem entendê-la como perda de identidade. Entendo a construção de identidade como um processo dialético que sempre esteve em permanente mutação e que se constitui no movimento da vida. É um assunto complexo, que não pode ser reduzido à sectarização e oposição cultural. Por essas razões, Lacatumba navega por diferentes ritmos e requer múltiplas técnicas artísticas. Procurei trabalhar com a contradição em muitos aspectos, como, por exemplo, na construção não-maniqueísta dos personagens, pois nenhum deles é completamente bom ou mau e todos estão sujeitos à transformação. Pelo menos, essa é minha intenção, já que a autora ou o autor não pode determinar, mas sugerir, os sentidos de sua obra. Ainda bem, né?

Obs.

(01) Associada ao CBTIJ/ASSITEJ Brasil, Viviane Juguero está, atualmente, nos Estados Unidos, onde realiza fase conclusiva de seu Doutorado sobre dramaturgia, por meio do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior da CAPES, na Universidade de Wisconsin-Madison, sob a supervisão de Manon Van de Water. Em março de 2019, Viviane retorna ao Brasil para finalizar esta investigação no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da UFRGS, sob a orientação de João Pedro Gil.

(02) Clóvis Massa é pesquisador acadêmico no campo da dramaturgia e da história do teatro, da teatralidade, da poética e da estética teatrais. Docente no Mestrado e Doutorado do PPGAC da UFRGS, universidade onde leciona também na Graduação na área de História do Espetáculo, Dramaturgia e Teoria do Teatro.

(03) Lacatumba, é um dos treze livros escritos por dramaturgas gaúchas lançados pela Editora da PUCRS, sob a coordenação editorial de Antonio Hohlfeldt.  As publicações resultam de ações do coletivo As DramaturgA, coordenado por Patrícia Silveira e Fernanda Moreno, que compõem o grupo ao lado de Carina Corá, Dedé Ribeiro, Elisa Lucas, Jéssica Barbosa, Jéssica Lusia, Lourdes Kauffmann, Natasha Centenaro, Patsy Cecato, Stella Bento, Vika Schabbach, além de Viviane Juguero, cujo livro conta com prefácio escrito por Jorge Rein.

O lançamento foi realizado no dia 17 de novembro de 2018, na Feira do Livro de Porto Alegre, englobando leituras dramáticas, na Sala de Música do Multipalco e sessão de autógrafos, no Memorial do Rio Grande do Sul. A leitura dramática de Lacatumba, contou com direção de Jessé Oliveira e teve Joana Orth, Fabiola Orth, Ana Caroline Ledur, Isadora Dahmer Hanauer e Gabriela Mauss, no elenco, além de Dirce Orth e Michelle Perceval, na equipe de produção, em uma realização do Bando de Brincantes e da Associação Cultural Artística e Esportiva Educando para o Futuro de Harmonia (ACEFH). A apresentação contou com a participação especial de Daniel Soares Duarte ao piano, realizando a ambientação sonora.

Para ter acesso a uma degustação gratuita do livro, ofertada pela Editora da PUCRS, acesse o link http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/livro/lacatumba