Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 13.01.1979

 

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Viagem ao mundo da imaginação

Viagem ao Mundo Azul de Itaporanga, de Adalberto Nunes, em cartaz no Teatro da Gávea, é uma peça que se propõe a participação das crianças, preocupando-se mais com o jogo dramático do que com literatura dramática. Com um simples estímulo (quem é que quer ajudar a menina a voltar para a cidade dela?) o elenco consegue a adesão da platéia infantil para brincar e interferir criativamente no desenvolvimento do espetáculo. O texto é um roteiro aberto a várias possibilidades e poderia ser sintetizado desta forma: o prefeito de Itaporanga sente que sua cidade está triste e feia e resolve modificar isso apelando para a fantasia e a criatividade das crianças (no caso, a menina). A menina recebe o convite e não sabe voltar para Itaporanga. Ajudada pela platéia infantil ela retorna e auxilia o prefeito a tornar a cidade mais humana. Depois, chega um professor e fala da necessidade de achar a paz.

Parece que contei a peça. Não contei. A verdadeira peça é a viagem de volta; e o que acontece nessa viagem é conseqüência da participação das crianças. No dia em que vi a peça a viagem foi feita a barco, o barco furou, os tripulantes nadaram até uma ilha, fugiram de tubarão, pescaram para matar a fome. Mas o roteiro permite que a viagem seja de carroça, de trem ou qualquer outro veículo. E o ideal seria que o elenco procurasse variar ao máximo o meio de transporte (as crianças sugerem e o elenco escolhe um) para que a peça ficasse sempre viva para os atores.

A encenação, do próprio autor, está intimamente ligada à proposta do texto e se caracteriza pelo estímulo à imaginação. Não há elementos de cena, todos os objetos necessários ao desenvolvimento da ação são imaginários e quando há necessidade de se materializar alguma coisa é uma pessoa (ator ou público) que se transforma numa rolha, numa bóia, num mastro. O mapa é invisível como invisíveis são as tintas, os pincéis, as casa da cidade. As músicas auxiliam bastante o tom de brincadeira, os figurinos funcionam a não ser a roupa do professor Benevides que destoa totalmente do restante. Aliás, o próprio professor Benevides destoa como personagem: ele é absolutamente desnecessário, a mensagem que ele vem trazer, pelo discurso, já foi lançada, na sua essência, pela ação da peça; o próprio texto tem um certo tom de sermão e a maneira professoral escolhida pela direção ainda agrava mais isso. Este é, inclusive, o momento em que a brincadeira cai bastante no seu desenvolvimento e comunicação pois a cena do professor utiliza uma linguagem totalmente alheia a toda proposta.

O elenco está bem, criando o essencial: o clima para que as crianças se sintam motivadas a participar. Entretanto há sempre o risco de se fazer teatro de participação; o elenco tem que estar sempre muito atento e tem que saber reelaborar tudo quando surge o inesperado. Sobre isso há dois exemplos bastante claros. Um dos atores chega atrasado no barco e uma criança diz que ele tem de voltar porque o barco já tinha saído e ele só poderia chegar nadando. O ator volta e alcança o barco a nado. A peça vai em frente. Em determinado momento descobre-se um furo no barco e o mesmo ator grita: E agora? Eu não sei nadar!. A criança não perdoa, repete em cima: Mas você entrou no barco nadando! Esse exemplo caracteriza um momento da desatenção do ator, um grave mas facilmente sanável. O segundo exemplo já é mais complexo: um menino, desde o início muito ligado na brincadeira, passa a interferir decisivamente (e com muita percepção) e era visível que tudo partia do impulso natural de quem estava muito envolvido. Isso fazia com que a participação dessa criança só auxiliasse a brincadeira a prosseguir. A partir de determinado momento, incentivado pelo público e pelo próprio elenco (“Você que é mais inteligente vai ser o prefeito” (?.?) – frase que diminui as demais crianças e que nem é um dado real) o menino passa a interferir apenas por vaidade, chegando ao cúmulo de pedir aplausos da platéia para suas intervenções. O elenco não soube aproveitar o que a criança tinha de bom e teve de aguentar o que ela trouxe de negativo: o espetáculo ficou emperrado e essa criança, que era um elemento enriquecedor, acabou se tornando um elemento inconveniente.

Esses riscos são inerentes ao tipo de proposta. Temos de ficar atentos para solucioná-los, impedindo assim que prejudiquem seriamente o trabalho.