Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 02.08.2013

Barra

Sonhos de criança viram lindas coreografias

Gustavo Kurlat, autor, compositor e diretor, traduz em Uma Trilha Para Sua História, com muito talento, o universo onírico infantil

Que ideia magnífica a de produzir um espetáculo de dança para crianças cujo tema é o sonho! Assim é Uma Trilha Para Sua História, que você e sua família não podem perder de jeito nenhum. Não só pela chance de iniciar seus filhos no mundo da dança contemporânea, contribuindo para diminuir o preconceito que prejudica tanto essa modalidade de arte. Mas principalmente porque o produto e o sentido de nossos sonhos – o que a gente sonha, como a gente sonha, por que a gente sonha – nunca foram tão bem retratados em cena nos últimos tempos. Puro encantamento.

O mago à frente dessa maravilha se chama Gustavo Kurlat, nome de extremo respeito no meio teatral paulistano, sobretudo pelas trilhas de grande competência e talento que compõe com bastante frequência. Aqui, além de sua função mais conhecida de autor da música (em parceria com Ruben Feffer), ele também é o autor do texto e o diretor geral do espetáculo, recheado de alusões a números circenses e ao circo-teatro.

Quando a narradora abre a boca para dizer as primeiras palavras, você já sente de cara a qualidade diferenciada do texto que Gustavo Kurlat escreveu. É um texto que flui, não emperra nunca o espetáculo, ‘alimenta’ as coreografias com alta dose de poesia, metáforas lindas e certeiras, enfim, uma rica radiografia do ato de sonhar – tudo pelo olhar muito sensível de uma criança: “Os meus sonhos são como um liquidificador que mistura tudo e faz um suco de todas as coisas que eu vi, inventei, tive medo, adorei…” Para descrever a bagunça que aprontamos em nossos sonhos, quase sempre desconexos, misturados e frenéticos, existe imagem mais correta e lúdica do que essa do liquidificador? “Um sonho tem que fazer sentido? Mas o que é fazer sentido?”

Nas ótimas coreografias de Dafne Michellepis e Marina Caron, cada dança é um sonho diferente da menina narradora: ela sonha com videogame, filme mudo, bichos, príncipes, bailarinas… Kurlat ‘costura’ isso tudo com suas palavras sapecas, valorizadas pelo carisma da atriz Thaís Pimpão, a narradora. Graças à intimidade do autor com o universo da música, ele chega ao requinte de se preocupar com a prosódia infantil, deixando a fala da narradora até cadenciada. Uma das frases, por exemplo, começa com: ‘Não é que…?’ Quem tem crianças em casa sabe muito bem como essa construção de frase é comum nas perguntas que elas nos fazem, pedindo por confirmação de algo. Preocupar-se com esse nível de acerto de linguagem é um mérito muito grande do autor-diretor.

O mais curioso é que o texto surgiu bem depois das músicas e das coreografias, já durante a fase de ensaios. O ponto de partida foi mesmo a música, com canções instrumentais dos mais variados ritmos e uma delas com letra, cantada por Zeca Baleiro no final. Um trabalho primoroso, com profusão de gêneros e de arranjos. A definição de trilha sonora que li no programa da peça é sensacional: “Trilha sonora é um conjunto de música que ajuda a dar o tom da história – mais alegre, mais triste, mais engraçada… As músicas ajudam a plateia a embarcar e a percorrer o clima de aventura, terror ou suspense que pode ter uma peça. Vai ver que é por isso que é chamada de trilha – um caminho feito de sons e sensações diferentes.” Aliás, vale a pena elogiar o programa, com textos da jornalista Gabriela Romeu dirigidos diretamente às crianças, mas longe de serem bobocas ou didáticos demais, ao contrário, até acompanham o tom do texto da peça.

Figurinos de Isabela Teles e Edson Braga, cenografia e adereços de Marco Lima e iluminação de Wagner Freire embarcam completamente na proposta onírica do espetáculo. Uma mãe arquetípica com uma saia imensa que flutua e o delicado vestido da princesa, cuja capa é suspensa no ar por balões de gás, são dois picos de criatividade. Outra cena cativante é a dos meninos atrapalhados, príncipes da vida real, tentando entregar rosas para garotas da plateia. O que um bailarino faz com a bicicleta no palco também é de aplaudir em cena aberta.

Mas, imbatível mesmo é a cena final, em que a menina finalmente dorme– embalada nos braços de todos os bailarinos, que sopram no ar novas possibilidades de sonho. Você vai se arrepiar. Depois das emoções e de tantas delicadezas de Uma Trilha Para Sua História, saímos da sala com a certeza do que de mais lindo as artes cênicas podem proporcionar a uma plateia: no teatro, você não precisa dormir para sonhar.

Serviço

SESC Pompeia
Rua Clélia, 93, Pompeia
Tel. (11) 3871-7700
Ingressos: de R$ 2,00 a R$ 8,00
Último espetáculo da temporada: domingo, dia 4, às 12h (sábado não haverá espetáculo por prévia programação do SESC).

SESC Santo Amaro
Rua Amador Bueno, 505, tel.: (11) 5541-4000
Datas da temporada: 11 e 18 de agosto; 1, 8, 15 e 22 de setembro
Sempre aos domingos, às 16h.

SESC São Carlos
Av. Comendador Alfredo Maffei, 700, Jardim Gibertoni – São Carlos
Tel.: (16) 3373-2300
Datas: 18/09 – uma apresentação. 19/09 – duas apresentações (uma pela manhã e outra no período da tarde)
Horários a confirmar