Denise Weinberg revela temperamento cômico em Uma Peça por Outra, cartaz do Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim

Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Macksen Luiz – Rio de Janeiro – 15.03.1987

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Assim é se lhe parece

A remontagem de Uma Peça por Outra, sete anos depois de sua estreia com o mesmo grupo Tapa que agora traz de volta essa coletânea de textos de Jean Tardieu, ganha uma repercussão suplementar.

No momento em que o teatro carioca se defronta com uma crise de identidade, que se estende dos graves problemas decorrentes das dificuldades de produção a uma política de repertório anárquica e a uma indefinição técnica e artística, as oito peças curtas escritas pelo francês Tardieu (1903) no início da década de 50 servem de base ao diretor Eduardo Tolentino de Araújo para atiçar a discussão sobre as regras do jogo teatral. Para discutir a extensão do uso da palavra no palco, as impliçações de recursos dramáticos já explorados em excesso e até mesmo a inesgotável questão do colonialismo cultural.

Tolentino se apropria da dramaturgia de Tardieu com o espírito brincalhão de quem deseja reciclar um universo cultural sobrevivente a vanguardas mal digeridas, até mesmo contestando a ressonância na contemporaneidade de um autor como Jean Tardieu. Produto do avant-garde francês, ao qual emprestou a sua sólida formação literária, Tardieu utiliza os elementos clássicos da linguagem teatral e romanesca para desmontá-la. O truque dramático ao que o autor recorre, constantemente, é o de subverter as intenções primárias da narrativa para colocar em seu lugar os múltiplos sentidos do confronto humano. Impregnada do teatro francês do final do século 19 e das primeiras décadas desse século, a dramaturgia de Tardieu reelabora as recorrências estilísticas de uma linguagem esgotada. O teatro desse autor se torna absurdo, sem ser exatamente um exemplo do gênero, pela inversão de papeis que atribui aos personagens na hipocrisia do jogo social. Em Só eles sabem o espectador está afastado da ação teatral. Os personagens desenvolvem em cena uma ação com a qual o público não compartilha. Em Um Gesto por Outro a vulnerabilidade das relações sociais é demonstrada através de atitudes bizarras (cuspir é um valor social enquanto comer é um ato vergonhoso) que põe a nu convenções vazias. Em Uma palavra por outra, Tardieu investe, diretamente, contra a elasticidade conceitual da fala (“as palavras não têm outro sentido a não ser o que nos apraz atribui-lhe”). O que falar quer dizer reforça essa ideia de “atribuição de sentido”. Osvaldo e Zenaide ridiculariza as réplicas e pausas do teatro burguês, enquanto Havia uma multidão no solar os monólogos são os alvos de contestação de uma dramática de efeito. Uma Voz sem Ninguém enrodeia em torno de uma sucessão de palavras e Conversão sinfonieta transfere para o verbo a sonoridade da música.

Na concepção de Tolentino todas essas alternâncias de crítica mordaz são tratadas de maneira inteligente e sempre participante. É verdade que a montagem se desequilibra, aqui e ali, pela diferença de climas cômicos que a direção estabelece. O espetáculo começa num tom sombrio e excessivamente europeu, com os atores se movimentando numa chave tensa que nem sempre completa a intenção de caricaturar a técnica teatral mal manipulada. A proporção que o espetáculo avança, o tom é encontrado, especialmente no entreato da conferência, realmente impagável, e no quadro que introduz o segundo ato (uma citação divertida ao tropicalismo). Em Sinfonieta, por exemplo, destacam-se a disciplina e a preparação vocal do elenco, além de um depuramento no humor. Às vezes há um descompasso entre a apropriação do material dramático e as intenções. Se em Osvaldo e Zenaide fica transparente o tipo de teatro que se quer sublinhar, em Só eles sabem a ideia não aparece tão clara. A dinâmica da cena em Havia uma Multidão no Solar e em Um Gesto por Outro não se repete em Uma Palavra por Outra. A inadequação de Uma Voz sem Ninguém, muito mais por sua má colocação na sequência das historias do que, propriamente, por sua qualidade.

O elenco do Tapa corresponde às exigências que lhe são feitas, ainda que haja problemas de ajuste de temperamento de intérprete ao estilo de representação imposto. Denise Weinberg é uma grata revelação de sensibilidade para a comédia. Clara Carvalho empresta sua figura delicada aos seus personagens maliciosos. Brian Penido é um Osvaldo com boa presença, enquanto Charles Myara se destaca quando a figura do narrador ganha maior soltura e improvisação. Eliana Fonseca utiliza bem a sua voz e estilo bonachão. Ernani Moraes, Guilherme Sant´Anna e José Carlos Machado se distribuem por vários papeis com rendimento satisfatório.

Uma Peça por Outra é uma divertida análise do fazer teatral, projeto de uma discussão cênica sobre os vários impasses de linguagem. Com a mesma seriedade e profissionalismo que acompanham as produções do grupo, o Tapa discute as suas próprias dúvidas com muito bom humor. Uma diversão inteligente que propõe com a dubiedade de sentidos a certeza da pluralidade.

Cotação: **