Brian Penido e Clara Carvalho estão nas farsas, paródias e poemas de Uma Peça por Outra

Crítica publicada em O Estado de São Paulo – Caderno Dois
Por Ilka Marinho Zanotto – São  Paulo – 17.09.1987

 Barra

Tardieu e a luta mais vã

O teatro Aliança Francesa tornou-se um endereço extremamente atraente desde que o Grupo Tapa veio do Rio para fixar-se em São Paulo. Depois de um priesplay refinado e cativante (O Tempo e os Conways) e de um brilhante Nelson Rodrigues (Viúva, porém Honesta), o Tapa presenteia a cidade com duas montagens de produção excepcional: Pinóquio, que é levado nas tardes de sábado e domingo, numa versão fiel do livro de Collodi, deliciando crianças e adultos pela beleza dos cenários e figurinos, pela garra das interpretações – destacando-se Ricardo Blat no papel título – e o fascínio das luzes e as músicas, e Uma Peça por Outra – coletânea de textos de Jean Tardieu -, espetáculo altamente sofisticado, que tem o mérito de encenar profissionalmente o dramaturgo francês pela primeira vez em São Paulo.

Jean Tardieu, nascido em 1903, de pai pintor e mãe musicista, é uma espécie de ponte entre o endiabrado Jarry e o profético Antoine e os vanguardistas do absurdo que aliaram a busca de novas técnicas e linguagens teatrais à preocupação em expressar a irracionalidade do real e o absurdo da condição humana. No mundo em ruínas do pós-guerra, recém-saído das primeiras explosões atômicas, somente uma linguagem demolidora poderia dar conta da fratura existencial. Tardieu, poeta do claro-escuro e do riso inquieto, pratica uma dramaturgia poética que, se não tem a profundidade abissal de um Beckett nem a amplidão temática de um Ionesco, consegue traduzir certamente a angústia do autor ante a ambiguidade das palavras e das idéias, a impossibilidade de apreensão e de comunicação, não somente da realidade como de seus significados mais profundos.

No prólogo de sua primeira antologia de poesias (Le Fleuve Caché – Poesies: 1938-1961) diz Tardieu: “Toda a minha vida é mostrada pela imagem desses rios, escondidos ou perdidos no pé das montanhas. Como eles, o aspecto das coisas mergulha e se mostra com a presença e a ausência”. É justamente o lusco-fusco das (?) que seu teatro visa a traduzir por meio de uma linguagem que sabe admiravelmente “dizer sem dizer”. Imbricação legítima do poema e do drama, seus diálogos, irônicos, mordazes, mas de uma alegria tenaz, têm inegável musicalidade, conservada nas ótimas traduções de Manuel Bandeira, Pina Coco e Renato Icarahy. Difícil tarefa a dos tradutores, porque Tardieu é mestre em desviar as palavras de seu sentido imediato ao colocá-las em sintaxes estranhas. Pondo em prática a teoria que enuncia no texto Meu Teatro Secreto, em que diz que o avesso dos cenários perfeitos é a ilusão desmascarada pelos bastidores que revelam a miséria dos materiais empregados, para edificar os inumeráveis trompe l´oeil, Tardieu, nos textos escolhidos pelo Grupo Tapa, oferece uma irreverente visão do teatro tradicional. Uma Peça por Outra vira pelo avesso as rotinas do palco, num delicioso exercício que alia à sutileza do jogo a incerteza fundamental em relação a todas as certezas. E, mais, a serie de esquetes, farsas, paródias ou poemas que sejam que compõem a seleção, desde o palco nu de Uma Voz sem Ninguém, até a confusão delirante de Uma Palavra por Outra, tem como pano de fundo o drama burguês, courtelinesco, que o autor tenta ampliar às dimensões de um sonho fantástico ou angustiante.

Assim, a aparente simplicidade de textos impagáveis como Um Gesto por Outro, Osvaldo e Zenaide ou Havia uma Multidão no Solar esconde uma multiplicidade de significados que o espetáculo de Eduardo Tolentino de Araújo explicita de modo inteligente e requintado. Tomando como fio condutor um questionamento do “fazer teatral” através do século XX – do realismo ao teatro de vanguarda -, Tolentino deu unidade à diversidade de estilos adotados, ambientando o espetáculo num cabaré literário. De onde a importância vital da direção musical de José Lourenço, que lançou mão de melodias fascinantemente adequadas aos textos, tocadas ao piano com grande ênfase por Hermes Giachieri. Os cenários instigantes de Ricardo Ferreira e os figurinos lindos de Lola Tolentino contribuem para a beleza de Uma Peça por Outra, cujo elenco, de total homogeneidade, atesta o sentido de equipe que domina o grupo carioca.