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“Nas mais diversas culturas surge periodicamente a tendência para considerar o mundo como um texto e consequentemente o conhecimento do mundo é equiparado à análise filológica desse texto: à leitura, à compreensão, interpretação…

…o texto universal compor-se-ia por “textos da vida” e “textos da arte”: unicidade contra pluralidade, existindo entre estas um isomorfismo geral ou mesmo uma relação generativa.”
                                                                                        Lotman e Uspenskij, 1973

A partir destas afirmações de Lotman e Uspenskij, podemos pretender tomar um texto como expressão do universo.

O macrotexto – o universo seria composto de milhões de microtextos que, interligados, o estruturariam.

E ainda mais: textos de arte refletem por mimetismo – conceito encontrado na Arte Poética de Aristóteles – os textos da vida.

É a vida representada na arte.

Entretanto, o texto teatral é um dos muitos gêneros que, como muitos outros, reproduzem o mundo real através da “mimesis”.

“O indizível – aí é que começa a Arte”
                                                                                         Herbert Read

A palavra textus é o particípio passado de texere, empregado em sentido figurado, metáfora que considera o conjunto lingüístico do discurso como um tecido.

Compreende-se que a palavra textus tenha surgido num mundo judaico-cristão que possuía as tábuas da lei “escritas pela mão de Deus” (Êxodo, 31,18) que assim torna sagrado o próprio ato da escrita. E o teatro tem sua origem no sagrado também.

O texto expressa o mundo e a compreensão e interpretação dos textos é a compreensão e interpretação da vida e do mundo.

“A arte é a expressão da consciência humana em uma imagem metafórica única”                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Susanne Languer

O espetáculo teatral é uma narrativa que começou a ser analisada sistematicamente nos anos de 1915-1930, pelos formalistas russos que se apoiavam nas sugestões do grande folclorista Veselovskij. E foi ainda um folclorista, Propp, que nesses mesmos anos, levou mais longe o método de análise. Estas investigações foram retomadas a partir dos anos 50, com a contribuição de etnólogos como Levy-Strauss e teóricos da literatura como Todorov, Bremond.

Partindo do conceito de trama, tecido, urdidura, o espetáculo teatral é um tecido composto da urdidura e trama de diversas linguagens: o texto, o ator – corpo, voz, interpretação, cenário, figurino – ou seja, a plasticidade, a música, luz. Portanto o espetáculo tem ideias, emoções, música, plasticidade, movimento – corporalidade. Tem, além da ação dramática, a ação no sentido de fisicalidade, tão presente no teatro antropológico de Eugênio Barba.

Cada uma destas linguagens – e ainda há outras que se podem associar, como a linguagem de animação, do clown, do contador de histórias – têm, cada uma delas, que ser plenamente conhecida e dominada por seus executores, necessário que os criadores se apropriem das técnicas. Linguagem tem sentido, código, sintaxe. A luz tem significado. movimento é narrativa, o som, a música é texto, o ator em movimento é a fisicalidade do teatro, que tem significado.

Portanto, é necessário para uma expressão artística que aceita, comporta, tantas linguagens que cada uma delas seja plenamente exercida e que seu conjunto resulte num todo único e harmônico, esteticamente agradável, que passe emoção, prazer estético, que emocione e faça pensar. E o teatro para a infância como todo e qualquer teatro precisa de todos estes requisitos para ser teatro.

“A fábula deve ser constituída dramaticamente, isto é, deve compreender uma ação única, que forme um todo coerente e completo em si mesmo e tenha princípio, meio e fim, de modo que seja um perfeito organismo vivo que possa produzir o prazer o que lhe é peculiar.” (Aristóteles).

Hoje a cena do teatro infantil, pelo que se viu na amostragem / Brasil que acontece no Festival de Blumenau, a diversidade de técnicas atrai os realizadores. Teatro de marionetes, teatro de sombras, narrativa oral cênica, o clown e diversas outras formas de expressão cênica estão presentes no palco. No entanto, esta diversidade e complexidade de tramar todas estas linguagens, exigem do realizador um conhecimento profundo das técnicas das quais se utiliza.

Um cirurgião que não domina bem sua técnica, mata seu paciente, o criador, a sua criatura.

Muitas das vezes, percebemos a intenção do criador, mas percebemos também a sua falta de pesquisa, estudo conhecimento. O Festival de Blumenau propicia uma oportunidade única de debate entre criadores e especialistas, um momento muito mais vivo que uma crítica, pois permite o debate, os questionamentos, as dúvidas, perguntas e questões – reflexão.

De modo que vemos espetáculos de marionetes onde as pessoas não dominam a sutil técnica do fio, espetáculo de clown onde as pessoas não entenderam ainda esta linguagem. Parece que no teatro a ordem é fazer. Mas que fazer acontece se não traz o conhecer, o pesquisar, a técnica. O “achismo” ainda preside a maioria das nossas produções, com honrosas exceções.

E é nessa tessitura composta de miríades de linguagens que se revela o desconhecimento das linguagens dessa forma não se consegue chegar a um tecido uno, esteticamente agradável, onde a qualidade seja o que produz prazer estético, como diz o diretor inglês Peter Brook.: “A beleza de uma peça está na qualidade e na perfeição que público é nela capaz de identificar”.

Nesta era de globalização, a criança ao pé da Internet não é mais a criança ao pé da lareira, mas ainda essencialmente Criança. E nesta busca de manter viva esta Criança é que os criadores acompanham o seu tempo, com o olho no futuro, o pé em suas raízes e suas cabeças eternamente no sonho.

As múltiplas expressões artísticas mantêm uma interlocução cada vez mais intensa, caminham adiante sempre em busca de nova formas de expressão.

Narrativas e histórias encantam o mundo desde o tempo do em torno da fogueira até hoje quando sobe aos palcos dos teatros. As histórias – em suas diversas formas de manifestação dominam os espaços, os mais diversos ganham novos contornos. E mais uma vez, neste momento, literatura e teatro caminham juntos.

Teatro e literatura revivem – pois a história nos mostra momentos semelhantes – um processo criativo em construção de uma forma de expressão que tem sido predominante nos espetáculos apresentados para criança – a linguagem teatral e ator, a linguagem da narração e o contador se unem, interagem, se complementam e recriam o contar.

O mostrar inerente da dramaturgia e o contar inerente da narrativa épica, vêm se associando nos palcos; não do teatro infantil, mas do teatro adulto também. Mas no teatro infanto-juvenil predomina setenta por cento das produções, aproximadamente, no momento. Isto visto não só no próprio Festival de Blumenau, que nos dá essa visão Brasil, como no nosso ofício de crítico de teatro infantil do Jornal do Brasil.

A narrativa oral cênica domina os palcos. Nada contra a narrativa oral cênica. O teatro grego narrava às cenas mais cruentas de mortes e assassinatos e não mostrava, no cinema Stanley Kubrick em seu filme “A morte passou perto” de 1955, que o lançou para o mundo. Mas é preciso que todos estejam atentos a algumas questões:

1. O teatro mostra e isto o torna único.
2. Nada é proibido no teatro. Podemos, portanto mostrar e contar.
3. O contador de história que renasce precede ao teatro na história da humanidade e agora busca seu lugar no palco, sobre os refletores depois que as fogueiras se apagaram e se acenderam os televisores e DVDs.

No entanto narrativa dramática é uma coisa e narrativa épica é outra. Pode-se utilizar as duas no mesmo espetáculo, mas é imprescindível que quem as utilize domine as duas narrativas. Narrador não é contador. Narrador diz o texto independente de sua plateia, com ou sem quarta parede. O contador, sua história se faz na interlocução. O contador esboça seu personagem, rascunha, com um gesto, uma palavra, uma voz. O ator compõe integralmente seu personagem, com voz, corpo, sentimento, intelecto, sintaxe própria. Um ator ainda pode contar, embora tenha que se parar para isso, mas dificilmente um contador poderá atuar se não se preparar muito para isso.

O contador traz um figurino neutro ou que se referencie ao todo do que conta, o figurino do personagem ajuda a compor a personalidade dele. O contador é neutro, pois precisa dessa neutralidade para ser muitos, o personagem é definido, inteiro, íntegro.

E mais mil e umas nuances poderiam ser enunciadas, só que no modismo do contar e do mostrar as pessoas confundem narrador com contador, contador com personagem, e acabam por colocando o ator, sem preparo específico, a contar, perdendo, assim a força da palavra, e colocando o contador, sem preparo, para atuar, fazendo assim um teatro de má qualidade.

No teatro – e por que não na vida – tudo pode, mas com competência.

“Um galo sozinho não tece uma manhã,
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito e o lance a outro;
de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro;
e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.”

                                                                              João Cabral de Melo Neto

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Carlos Augusto Nazareth
Professor de Literatura, especialista em Literatura Infanto-juvenil, Escritor, dramaturgo, Diretor Teatral, Crítico de teatro infantil do Jornal do Brasil. Tem oito livros de ficção publicados

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau

Leia na página Artigos e Reflexões: Os Contadores de Histórias e o Palco: A Narrativa Oral, de Benita Prieto (2004/2005)