A Fada que Tinha Ideias: Elvira Rocha, Lígia Diniz, Rita Viana

Jardins de Infância: A memória é o espetáculo

Matéria publicada no Jornal da ACET – pág.11 e 12
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – Dez 1983

Barra

Teatro: Na Ciranda da Memória

O teatro às escuras. Silêncio completo no palco e na plateia. Subitamente projeta-se luz forte sobre um único elemento cênico: um enorme balanço vazio, que oscila para frente e para trás, num ritmo lento, como se movido apenas pelo vento. Como se tivesse sido abandonado há bem pouco tempo. Ou convidasse alguém a ocupa-lo imaginária ou literalmente. É assim que inicia e termina um dos melhores espetáculos da atual temporada de teatro para crianças: Jardins de Infância, belo exemplo da maturidade artística alcançada pelo Grupo Além da Lua depois de um trabalho conjunto há três anos, sempre voltado para o público infanto-juvenil.

Luz fraca. Poucos personagens em cena. Todos em trajes circenses e, cada um por sua vez, se agrupando num circulo ao centro de uma arena vazia. De repente, das mãos destes atores, surge, de modo meio mágico, uma pequena e colorida lona circense que passa a recobrir um picadeiro estranhamente deserto. E que permanecerá assim nesta que é a cena final de Viva o Circo!”,  peça que marcou a primeira incursão de Naum Alves de Souza, como autor, no teatro infantil.

O balanço de Jardins de Infância e o circo de Naum, imagens gêmeas não só por exibirem espaços vazios, mas por aquilo que, teatralmente, as enche de significação: jogo entre estas lacunas e um teatro infantil que escolhe a  memória como meio privilegiado de comunicação com seu público e de representação da infância. Imagens estas que parecem evocar a trajetória do teatro para crianças em 1983 em direção a uma retomada lírico-crítica do universo infantil. Ora sob a forma de adaptações ou remontagens de algumas de suas boas lembranças literárias ou teatrais, ora sob a ótica de um memorialismo crítico ou nostálgico, a grande personagem do teatro infantil carioca este ano foi a memória.

A Incrível Viagem: L’Astorina e Cláudia Jimenez

Cecília Meireles, Monteiro Lobato, Perrault, Fernanda Lopes de Almeida, Ziraldo, Graciliano Ramos: estes, os participantes do grande desfile de adaptações teatrais de obras literárias a cada ano mais numerosas nos palcos cariocas. O que determina a escolha das obras adaptadas? Difícil dizer. Às vezes é nítido o intuito comercial. Opta-se por um Menino do Dedo Verde e a sedução do público antecede o próprio espetáculo. Às vezes é uma certa ansiedade em torno da brasilidade dos personagens infantis que parece presidir a escolha. Este é o caso do Pererê, de Ziraldo, muito bem montado por Zeca Ligiero e Luca de Castro. As vezes o texto literário funciona como uma espécie de desafio aos que tentam adaptá-lo à linguagem teatral. Desafio capaz de proporcionar espetáculos instigantes como Ou Isto ou Aquilo, do Grupo Hombu; ou A Terra dos Meninos Pelados que, na versão de Bia Lessa, Tonico Pereira e Mauro Perelmann, trouxe para o teatro infantil em 1983 um oportuno sopro de despojamento e secura, em oposição ao tom excessivamente açucarado e sentimental de certo teatro infantil que parece pensar na criança como se se tratasse de algum chato caramelo puxa-puxa. Às vezes adaptar significa colocar em diálogo dois modos de perceber um mesmo núcleo ficcional. Isto é o que faz, por exemplo, Maria Clara Machado no seu Chapeuzinho Vermelho adaptado do conto de Perrault com o charme tabladiano de sempre. De qualquer modo, a adaptação é sempre uma maneira de trazer à memória um texto marcante por este ou aquilo motivo. Neste sentido, caberia perguntar: quem não leu Os 12 Trabalhos de Hércules? Quem nunca imaginou um Visconde, um Lelé e um centauro ao vivo? Foi a estes desejos que procurou responder um dos maiores sucessos infanto-juvenis do ano: a adaptação de Carlos Wilson Silveira da primeira parte do livro de Monteiro Lobato.

Variáveis as motivações, é, no entanto, por trazem à cena vivências literárias relevantes que algumas adaptações teatrais encontram maior eco do que outras. O importante é que convidem o espectador a perceber o “já lido” como “não visto”. A literatura que vira teatro e põe em confronto semelhanças e diferenças entre os dois meios de expressão.

O Chapeuzinho Vermelho: As árvores e o tronco da floresta

Hora da Saudade

Nem só de nostalgia literária viveu o teatro infantil em 1983. Outras memórias foram remexidas também. E antigas montagens sofreram cuidadoso trabalho de restauração ou reinterpretação, dando margem à retomada do marco inaugural do teatro infantil brasileiro que é O Casaco Encantado, de Lúcia Benedetti, por Thais Balloni; dos poemas de Maria Mazetti por Denise Mendonça num musical alegre como A Casinha Torta; do texto de Maria Clara Machado, A Bruxinha que Era Boa, por um dos professores do Tablado: Toni nho Lopes; de Putz, A Menina que Buscava o Sol, numa montagem que não chega a dar conta da peça de Maria Helena Kühner.

Importante, neste sentido, foi a revisão de alguns de seus melhores números e de seu próprio estilo entre o teatro, o circo e o show apresentada pelo Grupo Manhas e Manias, no meio do ano, no Circo Esperança. Foi fascinante assistir a um espetáculo em que grupo e plateia viravam as folhas de um álbum de retratos que marcou a forte incorporação da linguagem circense no teatro, a invenção de um tipo de interpretação clownesca característica ao Manhas e, depois, disseminada pelos grupos de teatro infantil cariocas. Memória de um passado recente no caso do Manhas, remoto caso da remontagem por M. Clara Machado do Chapeuzinho Vermelho de 27anos atrás. E viagem igualmente sedutora do espectador por estas montagens-reedições, onde dialogam dois tempos diversos, e não dois modos de expressão como nas adaptações de textos literários. Diálogo impulsionado por este misto de pêndulo e balanço em que se transforma, por vezes, o espetáculo teatral.

Mamãe é Mulher do Papai, o Grupo Lyrio Branco presta provas

A Bruxinha que era Boa, Guta França em ação

O Soldadinho e a Boneca. Graça e fantasia

O Túnel do Tempo

Para que se estabeleça um diálogo entre o Ou Isto ou Aquilo, Cecília Meireles e o do Hombu, entre o Tablado de 56 e de 83, entre Graciliano Ramos e teatro, as memórias infantis dos integrantes do Grupo Além da Lua e a plateia ainda em plena infância que os assiste, quais os canais de ligações possíveis? Os mais importantes e eficientes são, sem dúvida, a qualidade e a empatia das montagens. Neste caso, o que ressaltar em 83?

Do ponto de vista da dramaturgia para as crianças, poucas novidades. Fora As Sete Quedas, de Tônio Carvalho, o texto de Naum Flávio de Souza e o texto coletivo de Jardins de Infância, apenas remontagens e adaptações.

Além de algumas peças com precária construção textual. Do ponto de vista dos produtores profissionais, é evidente o desânimo na área. À exceção de Elvira Rocha, há um ano em cartaz com A Fada que Tinha Idéias: e de Ivan Merlino, responsável em 1983 pela montagem de Tistu e da Casinha Torta. A exceção dos grupos cooperativados como o Hombu, o Além da Lua, o Ponto de Partida, sempre tendo que se desdobrar cada artista em divulgador, tesoureiro, costureiro e mais mil e uma atividades. O que nem sempre implica em perda de qualidade.

Basta lembrar os excelentes trabalhos de direção de Fernando Berditchevsky em Tá Faltando Um e Jardins da Infância; Bia Lessa e Tônico Pereira; Carlos Wilson Silveira em Os 12 Trabalhos de Hércules; interpretações como as de Carlos Loffler, Lícia Manzo, Cristiana e Adriana Maia, Rogério Fabiano e Mariana Sabino, do Além da Lua; de Cássia Foureaux, Rubens Camelo e Ana Luisa Lacombe em A Bruxinha que Era Boa; de Ivan Alves e Emmanoel Santos nos Meninos Pelados; Amicy Santos e Humberto Montenegro em Chapeuzinho Vermelho; Elza de Andrade e Ângela de Castro em Pererê; Alice Viveiros de Castro em A Fada que Tinha Ideias; Cláudia Jimenez em A Incrível Viagem; Henrique Diaz e Felipe Martins nos Doze Trabalhos de Hércules.

Basta lembrar a direção musical de Mauro Perelmann nos Meninos Pelados e Caíque Botkay na Incrível História do Bolotero, a coreografia de Claudio Gaia em Jardins de Infância; os cenários de Carlos Wilson para Chapeuzinho Vermelho; os figurinos de Naum Alves de Souza para Viva o Circo; e de Manfred Vogel e Esné de Souza para Pererê; a luz de Cláudio Neves para Hércules e Chapeuzinho Vermelho; a vitalidade de Maria Clara Machado e do Tablado.

Pererê: Imaginário brasileiro segundo Ziraldo

Putz, a Menina que Buscava o Sol. Um grande texto de Maria Helena Kühner

Estes são alguns dos pedaços deste túnel do tempo construído a cada ano, por aqueles que escolhem este meio de expressão tão delicado que é o teatro. Tão delicado que qualquer falha pode jogar ao chão a lona mágica do circo de Naum. E, ao contrário, quando o espectador aceita o convite para o balanço, inicia-se essa viagem sempre a dois, sempre com um outro – cúmplice ou antagonista – pela memória, pela infância e suas cirandas.